A cada
enxadada, fincando o chão seco, duro e praguejado, o suor escorrendo pelas
costas abaixo, sob um sol impiedoso, Gregório, involuntariamente, matuta. Se ao
menos essas lembranças o abandonassem um pouco, a força dos braços seria mais
viva. Qual o quê! Ferem seu corpo como espinhos, ficam como acordes de tristeza
a lhe tocarem a alma. Pensamentos teimosos! Por que não se vão, feito a chuva?!
Gregório
para um pouco... Tira o chapéu. Os cabelos grudados à testa, o suor caindo-lhe
sobre as pálpebras enrugadas. Sente-se um caco! Olha a sua volta,
demoradamente, depois ergue seus olhos para o céu. Nada de nuvens! O céu
infinitamente azul, e o sol, majestoso, reinando tirano. Tem sede... Olha para
a moita de arbustos lá adiante, e sente-se desanimado calculando a distância
que o separa da sua moringa. O jeito é arranjar forças pra chegar até lá. Sem
água nem é possível pensar, quanto mais continuar! Descansa a enxada sobre o
torrão de terra que acabou de revirar e segue em direção dos arbustos.
Farto,
saciado com a água fresca da moringa de barro, pensa num cigarrinho... Afinal,
pressa num dia como hoje é bobagem! O corpo não suporta aquele calor infernal!
Tem consciência de que hoje o trabalho rende pela metade.
Passa
a botina pelo capim seco como se limpasse o chão, e solta o corpo num sentar
extenuado. Passa a mão no embornal e dele retira um pedaço de fumo, o canivete,
a palha de milho. A mão esquerda em forma de concha protege os fiapos de fumo
que ele vai picando. Cheiro forte e bom! Não resiste... Coloca um naco na boca.
Cinco
anos já se passaram desde que sua mulher se foi... Cinco anos doídos,
arrastados, vazios. Doença maldita! Tudo tão rápido que não teve nem tempo para
se acostumar com a ideia. Teve de se acostumar, precisou se arranjar mergulhado
na dor. Ficou muito difícil, tanto que até hoje não se resignou.
Nessa
época do ano ainda é pior! Dezembro lhe dá um desconsolo, um desamparo... A solidão
é tamanha que parece transpirar pelos poros. Bom seria se não existisse este pedaço
do ano!
Amanhã
é Natal. Diacho de dia mais bobo! Ainda bem que já se preveniu... A garrafa de
pinga o aguarda! É sempre assim. Começa a beber à noitinha e vara as outras
vinte e quatro horas numa carraspana sem fim! Duro mesmo é o outro dia! Um vazio
no estômago, enjoo, tremura no corpo, suadeira fria e um desânimo de dar pena!
Pelo menos durante algumas horas não pensa. Apenas dorme. Se nos intervalos,
entre um gole e outro, aquela saraivada de pensamentos teimosamente tenta
chegar, Gregório não vacila. Sorve goles rápidos e constantes até que adormece.
É assim o seu Natal. Nem abre as portas da casa! Pra quê? Não carece.
Mas
agora, ali sentado, dando tragadas longas e repetidas no seu cigarro de palha,
sóbrio, não tem como afugentar suas ideias. Se ao menos um filho viesse! Que
nada! Isso só aconteceu no primeiro ano. Depois, foi tudo só. Ele e a vida...
Tem
dia que fala sozinho, ou mesmo com seu pangaré. Fala pra ouvir o som da própria
voz. Naquele fim de mundo, não arranja nem companheiro pra dar uma prosa! Às
vezes, fica pensando se ainda sabe falar. Passa dias e dias, semanas inteiras sem
dizer palavra. Fica feliz quando vê, pela poeira da estrada, uma boiada a
caminho. Sabe que ali vai um peão e que vai lhe sobrar um dedo de prosa. A
conversa é sempre a mesma. A saudação, o calor, a falta de chuva ou uma doença
que apareceu em alguma rês. Ele se empolga tanto nestas proseadas que, às
vezes, chega a acompanhar o peão, beirando a estrada, por um bom trecho do
caminho! Só para ter o gostinho da companhia.
Na
vila não se anima muito a ir. Só vai mesmo quando a necessidade manda. É muito
distante e seu pangaré anda muito judiado pela seca. Se forçar muito pode ser
desastroso! Imagina perder seu companheiro! Só lhe restará falar sozinho!
O seu
cachorro também se foi. Velho, já com o focinho branco, cego feito tamanduá...
Foi definhando, ficou encaramujado e, numa manhã, Gregório o encontrou
estirado. Dia triste!
Agora
lhe resta o pangaré. Está um traste velho, mas ainda lhe serve de companhia! É
só a chuva chegar e ele estará mais forte. A idade não tem jeito, mas o capim
gordo lhe trará novas carnes. A chuva não tarda. O dia dos Santos Reis está por
aí, e na vinda sempre traz chuva!
Gregório
ergue o chapéu, reverenciando os Santos. É assim. Mesmo quando pensa, quando
invoca os santos de sua devoção, não deixa de reverenciá-los com seu chapéu.
Santa veneração!
Joga o
cigarro e, com a botina, o pisoteia várias vezes até se certificar de que
realmente não há risco nenhum da brasa queimar o capim seco. Tem pavor de
queimadas! Já viu tantas, mas não consegue se acostumar a elas. Fogo é bicho
que teme!
Hora
de recomeçar a lida. Se bem que a vontade é nenhuma, mas a praga tem que ser
vencida agora, nesse tempo. É na terra seca que a raiz morre. É bem verdade que
a sementeira fica na terra, mas até a chuva chegar, ela não germina. Dá tempo
de recuperar o ânimo e preparar a nova roça. Nem sabe quantas vezes já capinou
este mesmo trecho! Nem é bom pensar... Desanima!
E lá
está Gregório novamente. Só se ouve o resvalo da lâmina na terra seca. Dezenas
e dezenas de braçadas para capinar um pequeno trecho. A cada quarto de hora, ergue
o corpo, espicha a coluna para trás colocando as mãos nas cadeiras. Serviço
bruto! Pior ainda com aquele sol a lhe castigar o lombo!
Suspira
fundo e volta à capina. O assa-peixe este ano está de matar! Há touceiras tão
imensas que chegam a desanimar. Gregório procura nem olhar o que está por
fazer. Prende os olhos no trecho em que labuta. Que adianta olhar? Nem
desanimar adianta. De quando em quando lá está ele, parado. As mãos servindo de
encosto do queixo no cabo da enxada. Fica tempo olhando, perdido, nem sabe
onde! Sente pavor do escurecer! De noite, a solidão é mais triste. Muito
mais...
Olha para
o céu. O sol já está indo, baixo. No horizonte, um vermelhão só. Sinal de que a
seca continua. Santo Deus, até quando?!
Gregório
acelera o ritmo. Parece não querer parar. Quer prolongar o dia. Ah! Se pudesse...
Já está bem escuro. Quase não consegue distinguir o trecho já pronto e bate
várias vezes a enxada em torrões já revirados. Não adianta. É noite. Véspera de
Natal!
Com a
enxada nos ombros, o embornal de lado, a moringa na mão, pega o trilho de casa.
Nem assobia. Está com o corpo aniquilado, seus passos são curtos, pausados.
Quer demorar ainda mais a chegar.
Apesar
do cansaço do corpo, andaria a noite toda se isso lhe tirasse da cabeça todas
aquelas lembranças. Daria tudo e faria qualquer coisa para não estar sozinho.
Se ao menos tivesse alguém, uma única viva alma pra prosear!
Bobagem!
Ali só está ele. Ele e Deus, como costuma pensar. Pena hoje Deus não se tornar
homem e passar o Natal ali, com ele! Poderiam conversar, comemorar, beber
juntos. Arre, cada pensamento!
Gregório
chega em sua casa. Nem tem vontade de acender a lamparina. Banho então, nem
pensar! Pra quê? Daqui a pouco se encharca de pinga e aí é uma água só! Antes,
porém, precisa comer alguma coisa. Ainda bem que deixou uma panela de arroz
sobre o fogão de lenha, e tem linguiça dependurada na despensa. É o suficiente.
Enquanto
acende a lamparina, faz uma oração para o Menino Jesus. Afinal, é o Seu dia!
Tem que rezar agora porque, depois não vai lembrar nem do seu nome, quanto mais
de oração!
Junta
ao arroz uns pedaços de linguiça, atiça as brasas do fogão, coloca umas palhas
de milho para aumentar o fogo e aquece a comida. O cheiro é divino! Chega a lhe
dar água na boca!
Arranca
as botinas, tira a camisa, passa as mãos pelos cabelos e puxa o banco para
perto da mesa. Ia enfiando a primeira colherada de comida boca adentro, quando
ouve uma voz:
- Ô, de casa!
Gregório
estremece de susto. Quem poderia ser a essa hora da noite? Pela voz, imagina
ser uma pessoa idosa. Voz rouca, trêmula mesmo!
- Ô, de fora! Já tô indo!
Ainda
sem se refazer do susto, sai rapidamente pela porta da cozinha, levando a
lamparina nas mãos. Assusta-se ainda mais diante do que vê. Meu Deus, que trapo
humano! Um homem, as roupas em farrapos, pés descalços, cabelos ensebados,
barbas enormes, corpo magro, arqueado, rosto bem-feito, mas incrivelmente
abatido. Olheiras escuras e profundas. A magreza excessiva deixa-lhe os ossos
da face saltados, salientes. À primeira vista, uma visão chocante, aterradora!
Aos poucos, vai se aproximando e a chama da lamparina vai delineando mais seus
traços. Olhos serenos, incrivelmente serenos!
- Boa noite! O que o traz aqui?
- Boa noite! Estou apenas à procura de um
prato de comida. Espero que tenha sobrado alguma coisa por aqui. Estou faminto!
Há vários dias que não sei o que é comer de verdade...
Gregório
pensa na comida que acabou de esquentar e que estava prestes a devorar. É tudo
que tem, mas não tem importância. Afinal, já almoçou hoje e não irá sucumbir se
não comer agora. Rapidamente, gira o corpo sobre o calcanhar e entra pela
cozinha. Passa a mão no prato de comida sobre a mesa, volta e o entrega ao
estranho visitante.
O
homem ávido por alimento, num instante abraça o prato e, com colheradas rápidas
e incessantes, vai pondo fim a sua fome. Gregório fica espantado com a
voracidade, com a rapidez com que o visitante esvazia o prato. Coitado! A que
situação chegou!
Gregório
está aturdido. Tanto que só agora percebe que não convidou o homem para se
sentar! Meu Deus, ele devorou tudo aquilo de pé?! Que distração!
- Desculpe a pergunta, mas qual é sua
graça?
- Mariano, meu bom homem. Mariano, seu
criado!
- Vamos chegar, Seu Mariano!
Ao ser
convidado a entrar, o homem vira-se para o lado, abaixa o corpo e pega um
pacote que estava no chão.
Já
dentro da cozinha, Gregório diz:
- Puxa a cadeira e senta um pouco...
- Vou aceitar, Seu...
- Gregório, isso... Meu nome é Gregório.
Mariano
vai entrando. É realmente alto, tem que se curvar, baixar a cabeça para passar
pelo batente da porta. Senta-se na cadeira de palha e encosta um cotovelo sobre
a mesa. Gregório senta-se no banco, do outro lado, de frente para ele.
- Então, Seu Mariano, agora que já comeu,
amansou o estômago, conta aqui pra esse velho, o que faz por estas bandas?
- Nada, não faço nada, Seu Gregório! Eu
sou assim mesmo! Ando sempre, sem parada. Passo as noites ao relento, e vou
comendo aqui, acolá, onde me dão um prato de comida... Hoje é diferente! É
véspera de Natal! Não queria ficar sozinho pela estrada. É uma noite muito
bonita pra guardar só comigo! Lá da estrada vi a luz da lamparina, e pensei que
bom seria juntar a minha alegria desta noite com a de mais alguém, ou até mesmo
dividi-la. Espero não estar atrapalhando!
- De maneira alguma, Seu Mariano! Eu tava
até meio encabulado de ficar aqui sozinho hoje. Já fiz até minha oração
porque... pensava em dormir cedo, não tinha nada que fazer!
Gregório
sente vergonha de dizer que havia rezado antes porque planejara tomar um porre
e cair pelas tabelas. Fica quieto. Apenas se cala, não vai mudar nada!
- Sabe, Seu Gregório, quando começou a
escurecer, eu estava passando diante da sua porteira. O senhor estava na lida e
parei pra observar. Vi que o senhor estava ansioso, querendo capinar mais e
mais... A noite já havia caído e a enxada ainda zunia na escuridão. Deu-me a
impressão de que não queria voltar pra casa. Estou enganado?
Gregório
fica meio sem jeito de saber que foi observado, pensa um pouco e resolve falar.
- Não, Seu Mariano. É isso mesmo! Não
queria voltar porque a noite é muito triste, principalmente a de hoje. Sem
família, sem ninguém pra conversar. Juro mesmo, minha vontade era de...
- Beber até cair, não é Seu Gregório?
- Isso mesmo! Queria beber, beber até
perder o tino e descansar esta velha cabeça que não para nunca. O senhor sabe o
que é viver neste fim de mundo, sem escutar uma voz, tendo na cabeça as
lembranças dos dias passados?! Fechando os olhos e vendo as crianças correrem
de um lado pro outro, a patroa indo e vindo, cuidando da lida da casa... Abrindo
os olhos e vendo o vazio, o silêncio, só isso, silêncio e solidão. É um fim de
vida muito triste, Seu Mariano! Nunca pensei chegar a isso!
- Não acontece só com o senhor, Seu
Gregório! Quantos solitários há por esse mundo de Deus?! Nem por isso a vida acaba!
É preciso saber trabalhar essa solidão, esse silêncio! Pensamentos amargos e
lembranças que machucam não ajudam em nada! Temos que aprender a enriquecer a nossa
fé. É no silêncio que alimentamos nossos mais nobres sentimentos! O silêncio
não é inexistência de palavras. Elas soam e falam para a nossa consciência. É a
maneira mais pura, mais verdadeira de conversar. Se todos ouvissem essa
conversa silenciosa a que me refiro, todos seriam mais felizes, mais completos,
mais íntegros! É preciso ouvir, ouvir muito.
Gregório
presta muita atenção em tudo que o visitante diz. Se entendeu direito, ele fala
que ficar sozinho e em silêncio não é de todo ruim. Passa a mão pela cabeça,
como se com isso ajeitasse os pensamentos e guardasse cada palavra dita pelo
visitante. Afinal, a fala dele é um presente para os ouvidos! Há quanto tempo
não proseia tão demoradamente com um amigo?! Ele, ali, hoje, só pode ser um
presente do céu!
Gregório
fica como que embevecido com a conversa do visitante. Nem se lembra da pinga,
da aflição da tarde, para dizer a verdade, nem fome sente! É como se as
palavras do amigo lhe tivessem abastecido o estômago, a alma. Só uma coisa lhe
intriga! O pacote que o visitante trouxe à mão e que, cuidadosamente, protege
durante todo o tempo. Que será que tem dentro?
Conversam
muito, até altas horas da noite. Na verdade, nem sabem que horas são, mas o
sono vem chegando. O andarilho, cansado da caminhada, e Gregório, extenuado
pelo trabalho da capina. Percebendo o sono do amigo, adianta-se em arrumar uma
cama no chão, ao lado da sua. Logo os dois estão deitados. Gregório tem vontade
de continuar a prosa, até tenta, mas o cansaço é tamanho que nem consegue
completar o pensamento. Dorme. Sonha sem parar... Sonhos bons!
É
madrugada ainda quando Gregório acorda. No escuro, fica um tempo meio confuso. Os
sonhos, o dia anterior, o anoitecer, a noite, o visitante... O visitante!
- Seu Mariano!
No
escuro, ele chama pelo amigo. Ninguém responde.
- Seu Mariano!
Intrigado
por não ouvir resposta, Gregório se levanta e acende a lamparina. Ninguém mais
no quarto... A cama, estendida como na noite anterior. Ele havia se deitado!
Deve estar na cozinha! Corre a casa toda. Nada! O visitante não está em canto
algum. A casa continua toda trancada por dentro. O que teria acontecido?!
Os
olhos de Gregório começam a percorrer tudo novamente. Aos poucos, sua cabeça
vai compreendendo tudo o que aconteceu ali. Olha a cozinha, demoradamente. Fixa
o olhar na mesa, onde conversaram. O pacote está lá, bem no centro. Fica
curioso. Que será que traz? Por que será que o amigo deixou o embrulho sobre a
mesa?
Indeciso,
Gregório começa a rasgar o papel. Fica receoso, mas sente que é um presente para
ele. Finalmente, a embalagem toda lacerada mostra o presente. Que encanto de presente!
Um rádio!
Sorri,
satisfeito. Liga-o, gira o botão sofregamente e, numa sintonia ruidosa, quase
inaudível, entrecortada, acha uma emissora. Está começando a oração da manhã. A
voz é rouca, doce, pausada, fala com o coração. Gregório apura os ouvidos... Conhece
essa voz! Soa como a voz do visitante.
Não
fica impressionado, nada o assusta. Afugenta as interrogações, não quer quebrar
o encanto... Apenas entende. E reforça a sua fé.
Regina Ruth Rincon Caires
1 comentários:
Assim se faz quando o talento é mais do que reconhecido. Grato por existir!!!
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