Domingo. Dia de louvar o Senhor. Carlos Emannuel sentado no primeiro banco do templo. Para adorar e orar. Vestido como um manequim de vitrine de shopping americano. Calça Balmain de 2 mil dólares. Camiseta Versace de 540 dólares. Peças saídas das prateleiras dos seus armários de madeira de lei e dos seus cabides com monograma de ouro. Nos pés, mocassins de Salvatore Ferragamo de 800 dólares. Uma roupa informal. Que faz parte do seu closet de 3 x 5 m recheado de ternos Armani de 3 mil dólares — cada um. Carlos Emannuel é uma vitrine de marcas importadas. Importadas como a universidade que ele cursou até o último ano para agradar o pai. Princeton.
Agradava o pai, irredutível em suas opiniões, ou ia para o olho da rua dormir em uma vaga num cortiço. Ou para o puteiro, a convite de Doriana Michelle, que pagaria para poder gemer e foder de verdade com ele o que era teatro o restante da noite. Agradava o pai integralmente ou pegava dois ônibus lotados para chegar a um supermercado lotado e se enfiar num depósito lotado de caixas de hortaliças e vinhos baratos e sabões em pó que o fariam espirrar — alergias desde bebê —, e dar uns amassos durante o intervalo de almoço na Izildinha do caixa. Ele e ela, irmanados pelo gosto da mesma marmita: cebola e alho. Boca, peito, caralho, buceta fedendo à cebola e ao alho da boca um do outro. Um festival de temperos explodindo em arrotos durante a safadeza. Os dele, sonoros e descarados. Os dela, mais discretos e entrecortados pela respiração acelerada de um quase gozo. Quase. Porque nem era gozo aquele livramento silenciado. Ele tampando a boca oleosa de Izildinha para impedi-la de gritar. Ela engolindo toda a porra dele para não deixar vestígios. Se fossem pegos, poderiam dizer que era desejo, fogo, paixão, preliminares. Trepada, não. Ninguém podia provar nada.
Carlos Emannuel e essa imagem recorrente que inventou nos anos de faculdade para se vingar do pai que o obrigava ao exílio acadêmico nas terras do Tio Sam. Tio de merda. Que permitia a ele somente uma montanha de livros entediantes. E duas ou três mulheres branquelas que ele podia convidar para sair no fim de semana graças à mesada generosa que o pai lhe mandava.
Agradeciam-se assim. O pai e ele. Ele, por não ter que encarar a vida num supermercado. O pai, por vê-lo se transformar no seu orgulho, no seu filho de ouro.
Graduou-se. Fez doutorado. Trocou o Oi! por um Hi, there! esnobe que o afastava da maioria das pessoas. Das pessoas interessantes que ele queria conhecer.
Até que o pai morreu. Deixando para trás dívidas que nenhum credor perdoou. E a mãe idosa. Ah, sim! E a educação em Princeton. Impecável.
Foram-se embora, ele e a progenitora, de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, onde havia mais campo de trabalho para ele. Foram-se calados, apenas as malas e alguns objetos de casa dentro de um carro velho que fedia a pelo molhado de bicho. Empréstimo de um primo. A mãe, ele e um cachorro velho que morreu atropelado nas primeiras semanas da sua vida carioca.
Carlos Emannuel. Anos indo do trabalho para casa, de casa para o trabalho, do trabalho para casa. Anos agradecendo ao pai morto que lhe permitiu ser alguém. Anos ouvindo da mãe que era por mérito que ele estava reconquistando tudo na vida. Anos remoendo uma
pergunta na cabeça: Que mérito? Não era mérito ele ter podido estudar em Princeton. Não era mérito ele não conhecer os ônibus lotados, nem os supermercados lotados, nem as carnes lotadas de tesão de Izildinha.
Resolveu pedir perdão a Deus. A quem mais? Virou homem de igreja. Escolheu o melhor templo, o melhor pastor, e deu o melhor dízimo. Conheceu outros como ele: filhos do mérito. Participou de vigílias em grupo. Noites e dias de Bíblia e negócios. Viajou com eles, orou com eles, pescou com eles. Associou-se comercialmente a eles. Uma espécie de máfia de Cristo. Tudo o que tocavam virava ouro. Para honra e glória.
Riqueza, um antigo status que voltava. E com isso as roupas, os carros, a cobertura em Ipanema. A praia que ele nunca frequentou porque não tinha tempo sobrando nem para a piscina da própria cobertura. Esqueceu-se da pergunta que o remoía. Tornou-se, freneticamente, um homem do trabalho e de Deus. E do dinheiro.
Casou-se com Maria Isabel. Filha de um concorrente. A concorrência virou sociedade. Tiveram dois filhos. Que também foram para Princeton. Ou para Yale. E agora têm três netos. Os primeiros a chegar ao colégio, à escola dominical, aos acampamentos da igreja, transportados por um motorista sorridente que todos os dias agradece ao Senhor Jesus pelo emprego que conseguiu na igreja. Agradece também a Carlos Emannuel. Com quem atravessa a cidade, no carro importado, para levá-lo ao único barbeiro em quem o patrão confia, na Zona Norte. Barba e cabelo no capricho. Todo sábado pela manhã. O único lugar em que Carlos Emannuel pode ouvir as gargalhadas de outros homens, felizes por coisas que só foram dele por alguns anos — os de luta. Ou que só lhe pertenceram no sonho em que havia Izildinha. A prestação atrasada do carro, o dinheiro contado para a cerveja no boteco da esquina, a vaquinha para o churrasco de aniversário, a transa apressada, os preços da passagem de ônibus, da luz, da água, da carne. A falta de segurança, as discussões sobre política e futebol — quase brigas —, o quarto ou quinto filho a caminho, o piquenique com a família e os amigos no parque, o remédio do câncer em falta na rede pública, a cunhada espancada pelo companheiro, o pai com Alzheimer, as três batidas na madeira para isolar as coisas ruins.
Domingo. Dia dos homens de mérito. Dia de agradecer no templo. Agradecer. O que Carlos Emannuel sabe fazer melhor. Além, é claro, de transformar em ouro tudo o que toca.
Ele está no primeiro banco. Reservado aos empresários que vão palestrar para os outros homens da Nação dos 159. Que vão demonstrar como é possível enriquecer pelo mérito, pelo dízimo, pelo agradecimento. Aleluia! Que vão ensinar o toma-lá-dá-cá que eles precisam praticar para conquistar posição, respeito e, obviamente, muito, mas muito dinheiro e prestígio. O banco dos que não pecam. Porque pecado é não agradecer — ao pai; ao Pai. Porque pecado é não pagar o dízimo. Porque pecado é ser vagabundo. Porque pecado é ser gay. Porque pecado é foder a Izildinha. Porque pecado é não ter uma cobertura em Ipanema.
Carlos Emannuel está calado. Pensando na véspera. Na barbearia em que ele conheceu Raimundo. Que ganhou de presente do padrinho barba, cabelo e bigode. Com direito a massagem no rosto e toalha quente. Porque era dia do seu casamento. Raimundo. Vinte e quatro anos. Carregador no supermercado do bairro. Raimundo. Que não via a hora de dizer “minha esposa” para a namorada Izildinha, caixa do turno da noite no mesmo supermercado. Que ria, feliz, enquanto contava que as tias e as irmãs iam passar o dia na cozinha preparando salgados, caldos, estrogonofes — Vai ter de frango e de carne!, ele dizia agitado — e docinhos, muitos docinhos. Para os convidados. A tia confeiteira estava fazendo um bolo-surpresa. De três andares. E os quatro engradados de cerveja, recebidos de presente dos dois gerentes do supermercado, já estavam gelados. Raimundo. Que convidou todo o mundo para a festa. Vai ter música até de manhã!, garantiu orgulhoso.
Domingo. No templo, Carlos Emannuel se levanta do primeiro banco. Uma a uma, vai tirando e largando pela nave central toda a roupa que cobre (em louvor de dólares) o seu corpo ainda rijo pelos ferros da academia. Respira fundo. Sorri. Gargalha. E caminha nu em direção à rua. Pensando em lírios do campo, cebolas e alhos.
(Conto publicado originalmente na Antologia “Conte outra vez – 30 contos inspirados em canções de Raul Seixas”; Editora Escriba Encapuzado, agosto de 2019, 1ª Edição, Organização: T.K. Pereira)
(Conto publicado originalmente na Antologia “Conte outra vez – 30 contos inspirados em canções de Raul Seixas”; Editora Escriba Encapuzado, agosto de 2019, 1ª Edição, Organização: T.K. Pereira)
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