– Ser prefeito é uma merda! – repetia sempre Rodrigo
Rodrigues, prefeito de Santo Onofre de Minas, pequena cidade do Vale do
Jequitinhonha. Repetia sempre essa frase, é certo, mas já era prefeito pela
terceira vez – na primeira vez, não se reelegera, mas voltou quatro anos depois
e conseguiu vencer os opositores, garantindo o segundo mandato – e seu nome já
era sugerido para suceder o atual governador de Minas. Eleger-se governador
seria um feito e tanto, pois o Brasil só pensa no Vale do Jequitinhonha como
uma das regiões mais pobres de seu vasto território, razão pela qual, nos anos
1970, o humorista Henfil plantara ali os personagens de seus quadrinhos que
ridicularizavam a propaganda otimista da ditadura militar. Repetiu essa frase
novamente para a esposa naquela noite que passara em Diamantina, via telefone
celular. Ao saber do falecimento do bispo, correu para a sede da Diocese:
queria que os jornalistas o vissem sentado na primeira fila, chorando uma
amizade que nunca tivera com o bispo, a quem só encontrava nas constantes
cerimônias de crisma nas quais apadrinhava algum adolescente, filho de
correligionários católicos. Tão logo despedira-se da esposa, tratou de
encomendar a seu poeta de estimação versos em homenagem ao religioso, para
serem publicados em jornais locais e também na capital, em nome dele mesmo,
Rodrigo Rodrigues, que ambicionava também uma cadeira na Academia Mineira de
Letras. E que os versos fossem logo enviados, pois queria recitá-los ao
amanhecer diante da Catedral de Santo Antônio e postar o vídeo nas redes
sociais.
Acordou cedo, sentou-se à mesa do primeiro bar que
abriu próximo ao templo azul e branco, pediu um café, copiou numa folha de
papel os versos recém-chegados e já ia ordenar ao seu fiel escudeiro que
segurasse o celular enquanto ele recitava as quatro oitavas de molde camoniano,
quando o referido escudeiro engasgou-se com o café diante de uma manchete de O Estado de Minas: “Médium Alvinho dos
Santos acusado de abuso sexual.”
– Ser prefeito
é uma merda! – reafirmou, lembrando da importância de Alvinho para a cidade. A
fama do médium atraía doentes dos mais distantes pontos do país, em busca de
sua água fluidificada, dos passes e das preces que prometiam milagres. Uma rede
de hotéis e restaurantes brotou na cidade após o aparecimento do médium, bem
como triplicou-se o número de taxistas registrados na prefeitura que, todos os
dias, carregam dezenas de turistas ao centro onde o líder religioso atende aos
fiéis.
Sorte tem quem se torna prefeito de Aparecida: a
imagem da Padroeira está lá, naquele grande Santuário, e de lá não sairá: o
fluxo de fiéis será sempre constante. Já os médiuns são mortais, como todos
nós. Rodrigo ainda se lembra do que padeceu Marcos Montes Cordeiro, que era
prefeito de Uberaba em 30 de junho de 2002, quando morreu o mundialmente famoso
Francisco Cândido Xavier – que, segundo alguns acreditam, teria servido de
inspiração a Stan Lee para criar o personagem Charles Xavier, líder dos heróis
X-Men –: um mês após o falecimento do
grande psicógrafo, metade dos quartos de hotéis da cidade estavam vazios e os
taxistas parados: a economia da cidade sangrava. Rodrigo não queria que tal dor
se repetisse em sua cidade e, por isso, já a estava preparando para sobreviver
à morte de Alvinho, quando tal acontecesse – e todos criam que demoraria, pois
o homem ainda não atingira os 70 anos, mas quem sabe? Mas para surpresa de
todos, parece que ao invés da morte do corpo físico, avizinhava-se a morte
moral de Alvinho.
Rodrigo fingiu não se abalar com tão amargas notícias.
Tal como o guerreiro I-Juca Pirama, do poema de Gonçalves Dias, “com plácido
rosto, / sereno e composto”, os fúnebres versos ali declamou. Postado o vídeo
para os seguidores de seu canal, engoliu o café, devorou as torradas, correu
para a catedral e de lá não se retirou até que o esquife fosse depositado em
sítio privilegiado à espera do Juízo Final. Quem não podia esperar era o
município. Quando não havia jornalistas por perto, o prefeito sacava o celular
do bolso e enviava instruções aos seus homens de confiança.
Terminado o sepultamento, Rodrigues correu de volta
para Santo Onofre. Ainda no carro, discutia com o redator-chefe do principal
jornal da cidade:
– Pelo amor de
Deus! Não publiquem uma linha contra Alvinho agora!
– Mas, senhor
prefeito, mais de 50 mulheres já denunciaram o médium por estupro. Dessas, ao
menos 12 eram menores de idade quando foram abusadas.
– Esperem o
desenrolar das investigações, ao menos!
– Seria tapar o
Sol com a peneira. Se O Estado de Minas,
o principal jornal das Alterosas, dedica uma página inteira ao caso, como
podemos nós nos calar?
– Eu compro uma
página inteira. Escrevam uma página inteira sobre o mamógrafo que eu instalei
no hospital municipal.
– Senhor
prefeito, o mamógrafo foi instalado em
outubro, durante a campanha mundial contra o câncer de mama, o famoso Outubro
Rosa, e já estamos em março!
– Não importa!
Câncer de mama dá o ano inteiro!
A despeito das belas cachoeiras, do doce de jabuticaba
e do queijo Minas tombado como patrimônio imaterial pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), Alvinho dos Santos ainda era
a principal atração turística de Santo Onofre de Minas – e essas acusações logo
pesariam na economia do município e no bolso de Rodrigues, sócio do maior hotel
da cidade. A destruição da imagem de Alvinho desestabilizaria o turismo antes
que a prefeitura pudesse divulgar, como queria, as belezas naturais da cidade e
suas tradições gastronômicas – há um ano, o prefeito convencera a Associação
Comercial a patrocinar dois filmes de curta metragem de estudantes de Juiz de
Fora, gravados na cidade, que agora andam sendo exibidos em mostras universitárias de cinema, e o
grande hotel Roseiras tem dado
cortesia a quantos jornalistas ali queiram passar seus fins de semana, em troca
de elogios à cidade na mídia de outros estados. E, desestabilizado o turismo
suscitado pela crença nos poderes milagrosos de Alvinho, como impedir que o
líder da oposição, Osório Esteves, sócio de uma fábrica de papel, ali
instalasse uma filial, poluindo de vez os cursos d’água, justamente eles, que
Rodrigues queria transformar em atrativos turísticos? Mais: a fé na mediunidade
de Alvinho, somada à tradição católica, era o que impedia o crescimento dos
pentecostais na cidade, e foi nas igrejas pentecostais do Sul de Minas,
fronteira com o Rio de Janeiro, que Osório Neves buscara os votos que o fizeram
deputado. A desmoralização de Alvinho poderia garantir a Osório a cadeira de
prefeito nos próximos pleitos e aí, adeus, águas cristalinas!
Todas essas questões Rodrigo Rodrigues expôs a seus
sócios e correligionários, em reunião a portas fechadas numa suíte do hotel Roseiras. Seu Expedito, gerente da
agência dos Correios e primeiro suplente do partido na Câmara Municipal, pediu a palavra:
– Senhor
prefeito, a minha agência dos Correios fica na esquina da Rua João Guimarães
Rosa com Irmã Josefina Neves. Aliás, oficialmente, na Rua Irmã Josefina Neves
78.
– E o que tem
isso?
– Daí que eu criei um blog sobre a história de nossa
cidade, que diz quem foi cada pessoa que dá nome às nossas ruas. Todo mundo
sabe que João Guimarães Rosa é o imortal autor de Grande Sertão: Veredas, mas ninguém sabe quem foi Irmã Josefina
Neves. Eu sei.
– E quem foi?
– Uma freira que lecionava Geometria num colégio
católico de Belo Horizonte, mas aqui nasceu e aqui morreu de velhice. Por
acaso, era prima de minha bisavó e irmã da bisavó de Osório Esteves. E se cada
um de nós encomendar uma missa, cada uma numa igreja diferente de diferentes
cidades, em dias diferentes, agradecendo graças alcançadas pela intercessão de
Irmã Josefina? E se os jornalistas e poetas da cidade começarem a divulgar as
bênçãos alcançadas pela fé em Irmã Josefina? Se a fama dela se espalhar, não
poderá substituir de forma mais duradoura a fama de Alvinho? Osório Esteves
usará a fé pentecostal contra a memória de uma parente sua?
Rodrigo Rodrigues mandou uma mensagem para o
presidente estadual do partido. O nome de Seu Expedito deveria ser levantado
para deputado federal.
(30 de dezembro de 2018.)
1 comentários:
Adore...me trouxe lembranças, boas lembranças. Parabéns!!!!
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