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sábado, 30 de novembro de 2019

No Jequitinhonha


 – Ser prefeito é uma merda! – repetia sempre Rodrigo Rodrigues, prefeito de Santo Onofre de Minas, pequena cidade do Vale do Jequitinhonha. Repetia sempre essa frase, é certo, mas já era prefeito pela terceira vez – na primeira vez, não se reelegera, mas voltou quatro anos depois e conseguiu vencer os opositores, garantindo o segundo mandato – e seu nome já era sugerido para suceder o atual governador de Minas. Eleger-se governador seria um feito e tanto, pois o Brasil só pensa no Vale do Jequitinhonha como uma das regiões mais pobres de seu vasto território, razão pela qual, nos anos 1970, o humorista Henfil plantara ali os personagens de seus quadrinhos que ridicularizavam a propaganda otimista da ditadura militar. Repetiu essa frase novamente para a esposa naquela noite que passara em Diamantina, via telefone celular. Ao saber do falecimento do bispo, correu para a sede da Diocese: queria que os jornalistas o vissem sentado na primeira fila, chorando uma amizade que nunca tivera com o bispo, a quem só encontrava nas constantes cerimônias de crisma nas quais apadrinhava algum adolescente, filho de correligionários católicos. Tão logo despedira-se da esposa, tratou de encomendar a seu poeta de estimação versos em homenagem ao religioso, para serem publicados em jornais locais e também na capital, em nome dele mesmo, Rodrigo Rodrigues, que ambicionava também uma cadeira na Academia Mineira de Letras. E que os versos fossem logo enviados, pois queria recitá-los ao amanhecer diante da Catedral de Santo Antônio e postar o vídeo nas redes sociais.
Acordou cedo, sentou-se à mesa do primeiro bar que abriu próximo ao templo azul e branco, pediu um café, copiou numa folha de papel os versos recém-chegados e já ia ordenar ao seu fiel escudeiro que segurasse o celular enquanto ele recitava as quatro oitavas de molde camoniano, quando o referido escudeiro engasgou-se com o café diante de uma manchete de O Estado de Minas: “Médium Alvinho dos Santos acusado de abuso sexual.”
 – Ser prefeito é uma merda! – reafirmou, lembrando da importância de Alvinho para a cidade. A fama do médium atraía doentes dos mais distantes pontos do país, em busca de sua água fluidificada, dos passes e das preces que prometiam milagres. Uma rede de hotéis e restaurantes brotou na cidade após o aparecimento do médium, bem como triplicou-se o número de taxistas registrados na prefeitura que, todos os dias, carregam dezenas de turistas ao centro onde o líder religioso atende aos fiéis.
Sorte tem quem se torna prefeito de Aparecida: a imagem da Padroeira está lá, naquele grande Santuário, e de lá não sairá: o fluxo de fiéis será sempre constante. Já os médiuns são mortais, como todos nós. Rodrigo ainda se lembra do que padeceu Marcos Montes Cordeiro, que era prefeito de Uberaba em 30 de junho de 2002, quando morreu o mundialmente famoso Francisco Cândido Xavier – que, segundo alguns acreditam, teria servido de inspiração a Stan Lee para criar o personagem Charles Xavier, líder dos heróis X-Men –:  um mês após o falecimento do grande psicógrafo, metade dos quartos de hotéis da cidade estavam vazios e os taxistas parados: a economia da cidade sangrava. Rodrigo não queria que tal dor se repetisse em sua cidade e, por isso, já a estava preparando para sobreviver à morte de Alvinho, quando tal acontecesse – e todos criam que demoraria, pois o homem ainda não atingira os 70 anos, mas quem sabe? Mas para surpresa de todos, parece que ao invés da morte do corpo físico, avizinhava-se a morte moral de Alvinho.
Rodrigo fingiu não se abalar com tão amargas notícias. Tal como o guerreiro I-Juca Pirama, do poema de Gonçalves Dias, “com plácido rosto, / sereno e composto”, os fúnebres versos ali declamou. Postado o vídeo para os seguidores de seu canal, engoliu o café, devorou as torradas, correu para a catedral e de lá não se retirou até que o esquife fosse depositado em sítio privilegiado à espera do Juízo Final. Quem não podia esperar era o município. Quando não havia jornalistas por perto, o prefeito sacava o celular do bolso e enviava instruções aos seus homens de confiança.
Terminado o sepultamento, Rodrigues correu de volta para Santo Onofre. Ainda no carro, discutia com o redator-chefe do principal jornal da cidade:
  – Pelo amor de Deus! Não publiquem uma linha contra Alvinho agora!
 – Mas, senhor prefeito, mais de 50 mulheres já denunciaram o médium por estupro. Dessas, ao menos 12 eram menores de idade quando foram abusadas.
 – Esperem o desenrolar das investigações, ao menos!
 – Seria tapar o Sol com a peneira. Se O Estado de Minas, o principal jornal das Alterosas, dedica uma página inteira ao caso, como podemos nós nos calar?
 – Eu compro uma página inteira. Escrevam uma página inteira sobre o mamógrafo que eu instalei no hospital municipal.
 – Senhor prefeito,  o mamógrafo foi instalado em outubro, durante a campanha mundial contra o câncer de mama, o famoso Outubro Rosa,  e já estamos em março!
 – Não importa! Câncer de mama dá o ano inteiro!
A despeito das belas cachoeiras, do doce de jabuticaba e do queijo Minas tombado como patrimônio imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), Alvinho dos Santos ainda era a principal atração turística de Santo Onofre de Minas – e essas acusações logo pesariam na economia do município e no bolso de Rodrigues, sócio do maior hotel da cidade. A destruição da imagem de Alvinho desestabilizaria o turismo antes que a prefeitura pudesse divulgar, como queria, as belezas naturais da cidade e suas tradições gastronômicas – há um ano, o prefeito convencera a Associação Comercial a patrocinar dois filmes de curta metragem de estudantes de Juiz de Fora, gravados na cidade, que agora andam sendo exibidos em mostras universitárias de cinema, e o grande hotel Roseiras tem dado cortesia a quantos jornalistas ali queiram passar seus fins de semana, em troca de elogios à cidade na mídia de outros estados. E, desestabilizado o turismo suscitado pela crença nos poderes milagrosos de Alvinho, como impedir que o líder da oposição, Osório Esteves, sócio de uma fábrica de papel, ali instalasse uma filial, poluindo de vez os cursos d’água, justamente eles, que Rodrigues queria transformar em atrativos turísticos? Mais: a fé na mediunidade de Alvinho, somada à tradição católica, era o que impedia o crescimento dos pentecostais na cidade, e foi nas igrejas pentecostais do Sul de Minas, fronteira com o Rio de Janeiro, que Osório Neves buscara os votos que o fizeram deputado. A desmoralização de Alvinho poderia garantir a Osório a cadeira de prefeito nos próximos pleitos e aí, adeus, águas cristalinas!
Todas essas questões Rodrigo Rodrigues expôs a seus sócios e correligionários, em reunião a portas fechadas numa suíte do hotel Roseiras. Seu Expedito, gerente da agência dos Correios e primeiro suplente do partido na Câmara Municipal, pediu a palavra:
 – Senhor prefeito, a minha agência dos Correios fica na esquina da Rua João Guimarães Rosa com Irmã Josefina Neves. Aliás, oficialmente, na Rua Irmã Josefina Neves 78.
 – E o que tem isso?
– Daí que eu criei um blog sobre a história de nossa cidade, que diz quem foi cada pessoa que dá nome às nossas ruas. Todo mundo sabe que João Guimarães Rosa é o imortal autor de Grande Sertão: Veredas, mas ninguém sabe quem foi Irmã Josefina Neves. Eu sei.
 – E quem foi?
– Uma freira que lecionava Geometria num colégio católico de Belo Horizonte, mas aqui nasceu e aqui morreu de velhice. Por acaso, era prima de minha bisavó e irmã da bisavó de Osório Esteves. E se cada um de nós encomendar uma missa, cada uma numa igreja diferente de diferentes cidades, em dias diferentes, agradecendo graças alcançadas pela intercessão de Irmã Josefina? E se os jornalistas e poetas da cidade começarem a divulgar as bênçãos alcançadas pela fé em Irmã Josefina? Se a fama dela se espalhar, não poderá substituir de forma mais duradoura a fama de Alvinho? Osório Esteves usará a fé pentecostal contra a memória de uma parente sua?
Rodrigo Rodrigues mandou uma mensagem para o presidente estadual do partido. O nome de Seu Expedito deveria ser levantado para deputado federal.
(30 de dezembro de 2018.)

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