Contava vinte e um anos,
velha para os quereres dos moços da região, e, por isso e mais um pouco, com a
ânsia de menos uma boca para dar de comer, Alberina meteu-se a alcovitar a
filha para deus e o mundo – com posses. Dizia que a filha era “moça casta e
prendada”, dona dos saberes domésticos e divinos; que não era desse mundo. Dizia,
inclusive, que ela mesma, a melhor pessoa, tratou de ensiná-la as rezas e os
preparos de feijão verde, carne de sol, a mistura completa; e uns tantos pratos
extravagantes quanto ela.
De muito se botar na
mercearia de Dom Sebastião, andou se engraçando e cobiçando mais. Ia e vinha,
brejeira que só ela, penteada e ajeitada, com os seios quase saltados, à base
de excepcional aperto, para ver se conseguia ao menos um tiquinho de atenção;
se lhe sobrava, claro, uns vinténs. Mas o fragor, que sacudia o peito do velho,
era o viço da mocidade; pele morena de desejo, de um corpo enclausurado na
pureza, que não tinha tino para essas coisas vãs.
Aliás, vale salientar, o
senhor do sertão era o dono da única mercearia da cidade; e a única que poderia
abastecer três cidades circunvizinhas. O ditoso reluzente, de ouros espalhados
pelo corpo, com uns três ou quatro dentões à mostra; o autointitulado Dom,
muito mais que qualquer doutor que pudesse aparecer na região, esforçava-se para
sugar o frescor de Divanira, uma espécie, também, de rejuvenescimento, como um
legítimo drácula, para abastecer-se de sangue novo; totalmente diva, divina,
aos seus olhos, e para isso seria capaz de tudo. Dos pés à cabeça, a donzela
era dotada de real inocência, que o veterano em provocar agruras, bufava em brasas
para ser o primeiro a adentrar as entranhas do incógnito ser.
A mulher cavilosa, falava
abertamente, sugerindo a troca de bens, a filha pelos mantimentos abundantes
vislumbrados. Se preciso fosse, para acariciar o seu ego, daria um pouco do seu
mel para adoçar a história. Ledo engano. Disparate. O velho nem tchuiu; era um
cachorro Canindé alvoroçado atrás da caça.
Passou a incutir na
cabeça da filha o valor de ter um homem bom, endinheirado, ainda que gastado,
normal, para dar segurança à família. Que pensasse em seus pais e seus avós.
Que não fosse egoísta, alma sebosa. Que seria uma oportunidade única, para
saírem de desdita antiga. E que, além do mais, concorreria, para ganhar, à
fortuna do solteirão, pois que não tinha ninguém para deixar - e esse alguém,
então, só poderia ser ela.
Divanira elucubrava em
ânsias de vômito. Não conjectura tamanha dor. Seu peito arfava, no rarear.
Andava feito barata tonta dentro de casa. Não aguentava a ansiedade. Saía,
amiúde, para se esconder debaixo de um pé de planta frondoso, para,
simplesmente, se perder no tempo; e se esconder, e quedar-se, sutil, em posição
fetal. Imaginava que se sair de uma situação dessa seria uma desfeita à sua
família, uma desgraça eterna, maior do que a miséria comezinha, já acostumada a
passar.
Evitava sequer o
confronto de olhares. Mas Alberina insistia em mandá-la “resolver a vida” por
lá, na mercearia. Pedia um pacote de arroz, para meia hora depois pedir mais um
pacote de feijão. O velho botava na conta, para cobrar caro mais adiante. A
moça, olhando para o chão, não conseguia, no entanto, desviar-se dos gracejos:
“Moça, olhe para o seu bem, esse velho que lhe quer!”. “Moça, dê um tiquinho de
tempo; olhe para mim e deixe um sorriso, assim ficarei feliz!”. “Darei o que me
pedir!”. Alberina nem sonhava a potência dessa última frase, senão forçaria o
desconjuro; a agressão de amancebá-la, desse no que desse.
Já não vislumbrava se
desvencilhar das amarras, tão cerradas, do destino. Quando pisava em casa, o
pai acabrunhado por acolá, olhava torto, dando conta da tensão (decerto o único
a defender Divanira); a avó, na toada de rezar o terço bento e rebento, pedia,
em voz alta, que a neta arranjasse um homem bem rico, para terem um de-comer
que prestasse, que isso era vida de cão; que não aguentava mais a dor, a falta
do pão e da água; que, se fosse assim, preferia morrer a ter de continuar nessa
podridão. O avô, seu Camundo, o sábio e que provia de tudo a família, homem
respeitado e que há distantes tempos conseguiu reunir duzentas cabeças de bois,
hoje estava completamente prostrado e alucinado no fundo da rede – entregue às
baratas, não fosse Divanira, porque não servia mais às necessidades da família;
e, inclusive, Alberina dizia que era castigo por ter botado tudo a perder.
Atolada na solidão,
apartada da vida, não mais conseguia discernir o que era certo ou errado. Sentia-se
órfão, deslocada. Até que, num ímpeto de loucura, sacudiu a peixeira que
guardava no cós de uma calça escorada no mato seco, que usava para esfolar os
bodes e os porcos; desusada, enferrujada, também, porque não prestava mais
serviços. Pegou-a com gosto, como se carniceira fosse; pôs por dentro, aparada
na cintura, para não chamar a atenção dos passantes, e saiu rumo à casa.
Uma légua não foi capaz
de dissuadi-la do plano há pouco maquinado. Quem a via percebia o semblante
diferente; um zumbi nas terras escassas - talvez pela falta de sustância,
vagava. Na porta de casa, o dilema a cercou; um aviso, um fio de lucidez brotou.
Ainda chegou a pegar no cabo; a mão pesou.
...
A notícia logo se
espalhou na cidadezinha, porque, dizem, desgraça é bicho que corre solto: pendurada
pelo pescoço, corda sisal grossa, no mesmo pé de juazeiro. Coruscou a aura de santidade
no sertão. Liquidou o seu mundo singular. Pensou que, sendo assim, melhor se
resolver com o homem lá de cima, com nossa senhora. Cria em vários mundos; que
o mundo dela realmente não era esse, de intrigas, ambições e imprecações.
2 comentários:
Texto fluído e intrigante!
Grato pela leitura! Um abraço!
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