Não há
palavra ou expressão que, por si só, conceitue ou determine as unidades
elementares de nossa existência, ou qualifique, com êxito, o ser humano – e
tampouco todos os vocábulos e todas as sintaxes fracassariam em nos
representar. O próprio indivíduo, ao descrever-se em um ou dois atributos,
padece, pena, sofre e hesita – à exceção de Jaime II, que se definia como coaching
quântico-motivacional, digital influencer e personal trainer.
Oficial da
reserva do exército, atlético e pretenso inocente, por sua clientela era
admirado feito um Apolo de Belvedere cujas tatuagens – a mais simbólica delas,
a frase Missão Dada É Missão Cumprida, pintada no antebraço em escrita cursiva
– retratavam não só os ideais de sua geração, mas uma história alusiva a
culturas masculinas e aos derradeiros guerreiros. Assim acreditava-se, um
soldado ou lutador, e assim forjava-se para, em contrapartida, manifestar os
defeitos característicos aos homens de sua classe: o orgulho colossal, a
severidade, o ego infantil.
Nenhuma
das limitações assomava como trágica à Michele quando o casal de namorados
decidiu, numa ação impulsiva, compor vidas e trançar destinos após seis meses
de relacionamento. Jaime mudou-se para a casa de Michele e consigo levou,
somente, Fritz, o dogue alemão, e seus halteres. Um homem precisa apenas de
halteres para sobreviver – era um dos mantras espirituosos de Jaime e o mais
proferido nos seus seminários.
Ao mutualmente
habituarem-se às suas manias e máculas, Michele julgou-o intransigente e
autoritário, ou machista, e Jaime enervou-se com perfeccionismo e a teimosia
que ela manifestava ao ser contrariada. Michele era sansei, a terceira geração
de imigrantes japoneses, e era professora de educação infantil e vegetariana, e
apesar dos trinta anos paramentava os ombros com um xale de crochê. Vangloriava-se
de seus parâmetros morais e julgamentos minuciosos, e a si confiava a redenção
do mundo e da espécie humana. Nas apresentações pessoais declarava-se, sorridente,
como virginiana. Era Michele, enfim, abominável como Jaime. Este, com o suceder
das semanas, e devido ao seu instinto de caçador, identificou nela uma
instabilidade nervosa ou taciturnidade acachapante – e tais comportamentos ele
inferiu como naturais à infância da união. Mas ao regressar de viagem em certa circunstância,
e ao estacionar o automóvel na garagem e adentrar o lar, flagrou-a com as
pupilas dilatadas, ofegante, a desprender um calor estranho à pele. Jaime afastou
o dogue Fritz, abraçou-a e beijou-a, e antes de conversarem sucumbiram ao
sangue. Comprometido aos braços da paixão após o amor de crepúsculo, entre a
vigília e o território dos sonhos recordou-se de Michele e sua condição, dos
olhos condensados e malditos, o desespero– e concluiu: ela consumira
entorpecentes.
Incapaz de
confrontá-la – pois apesar de orador e coach suas palavras eram apropriadas a
encorajamentos e exortações, não aos meandros da emoção e dos sentimentos –,
precisou, além de constatar em Michele a recorrência de uma disposição soturna,
flagrá-la novamente em um estado alterado de consciência para agir – justo ele,
cuja vida principiava-se no verbo.
Na manhã
de um sábado Jaime levantou-se cedo, preparou café, salada de frutas, despertou-a
com afagos e com a paciência dos subjugados e convidou-a para o desjejum.
Enquanto ela fartava-se à mesa, ele admirava os traços de sua face, a expressão
plácida e complacente, oposta à de seus ápices de melancolia, e ao término da
refeição segurou as mãos da namorada, encarou-a e perguntou:
O que há,
Michele?
Incontinente,
os olhos dela soçobraram-se em lágrimas.
Qual narcótico
a derrotou?
Michele,
aos prantos, balbuciou:
É muito
forte, amor. É uma sensação, e só. Me obriga a atos abomináveis. Me derruba e
me alça aos céus, falou ela e mais não disse malgrado a carinhosa persistência
do namorado. Orgulhoso com o primeiro dos numerosos, futuros embates
inevitáveis a sua admissão de vício, Jaime congratulou-se. Autênticos
guerreiros não escolhem batalhas, falou para si, de frente ao espelho. Então
começou a, de semana em semana, sitiar e fustigar Michele, e apesar de sua
insistência ela não confessava, permitia-se apenas as lágrimas.
Nós
haveremos de vencer, bradava Jaime para Fritz, em vislumbres de Júlio César.
Numa
segunda-feira de angústia e antes do almoço, e por entrever a namorada em seus
pensamentos, abandonou a ordenação das palestras e a assunção de novos
compromissos e rumou para casa. No caminho comprou um buquê de flores e bombons
sem glúten e lactose. Como era de intenção surpreendê-la, estacionou o carro na
rua, longe da garagem e das grades. Sempre assustava amigos e familiares, e
sempre compensara suas diabruras. Com cautela abriu e fechou o portão, passou
pela monstruosa casa do cachorro, por canteiros cultivados, abriu e fechou a
porta de entrada. No hall, ruídos incomuns alarmaram-no. Era o arfar de
exaustão e eram os gemidos contidos, ou dolorosos, e era a úmida consistência
do ar, e ao julgar com pressa Jaime inferiu que a amada se aproveitava da
solidão e da folga matinal para ceder-se aos entorpecentes e aos narcóticos.
James
renunciou a propósitos anteriores e, presumindo-a no quarto de casal, correu,
atravessou a sala, cortou o corredor e adentrou o recinto onde presenciou uma
cena cuja sordidez não será retratada em pormenores: Michele, de gatinhas sobre
a cama – mas sob o cachorrinho –, em pleno ato sexual.
Amor,
gaguejou ele.
No umbral
da porta, estupefato e petrificado, assistiu a namorada rolar para além de
Fritz, o dogue alemão, e gritar:
Eu sou
assim, Jaime, eu sou assim!
Confinado
às esferas da desilusão, ele percorreu a lateral da cama e sentou-se no
colchão. Dissipavam-se os marcos da realidade, as sensações e naturezas.
Michele, deitada em posição fetal, chorava. Fritz, deitado em posição fetal,
lambia os testículos. James II tremeu ao abrir a porta do armário e a primeira
das gavetas. De entre as cuecas apanhou um revólver calibre trinta e oito,
herança do pai. Malgrado sua resolução fosse a de com celeridade findar a
sucessão de exigências conhecida por vida, e a ciência de seus sofrimentos, uma
lágrima tocou a ponta do cano antes de ele efetuar um disparo quântico contra o
céu da boca.
No velório
de Jaime, ao lado do esquife, Michele, de óculos escuros, abraçava Fritz, o
dogue alemão.
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