Meu
filho ensaia um solo em sua guitarra. A música me trouxe lembranças daquele sábado,
em julho de 1969. Alguns dias depois eu completaria meus seis anos de idade. Um
ano antes, minha mãe e uma cartilha “Caminho Suave” abriram um novo mundo para
mim: além de ouvir o que se passava no rádio e no nosso televisor Philco Solid
State, eu já conseguia decifrar algumas notícias e os caracteres que percorriam
a tela em preto e branco. Também das revistas e jornais.
Tudo
se transformava rapidamente. Criança, eu não percebia muito do Regime Militar
implantado no Brasil. Não sabia o que era censura, até o dia em que minha
professora, no ano seguinte, explicou-me para que serviam os rótulos da Censura
Federal exibidos antes de cada programa: se podia mostrar na TV o que não fosse
contrário ao Governo. Talvez tenha sido por isso que na mesma época canções
como “Eu te amo meu Brasil” passaram a ser cantadas nas escolas.
Meu
pai trabalhava muito. Comprara nossa primeira casa e juntava dinheiro para adquirir
a sua tão sonhada Aero-Willys 65. Guardávamos o dinheiro em casa, numa lata depositada
sobre o balcão do armário da cozinha. Ela se enchia de cédulas de dez cruzeiros
novos. As notas de maior valor na época, continham, além do “carimbo” que
eliminou três zeros, a figura de Santos Dumont estampada na frente e seu 14 Bis
no verso. Eu admirava as chancelas do Presidente do Banco Central e do Ministro
da Fazenda e sonhava um dia assinar minhas próprias cédulas.
Naqueles
dias, meus pais se preparavam para a festa de casamento de uma das filhas de
nossos antigos vizinhos, uma família descendente de imigrantes italianos.
Minha
mãe escolheu, numa revista com catálogo de roupas, um conjunto de blusa e
maxissaia. As mulheres mais ousadas usavam minissaias. Os botões eram alguns
dos detalhes mais importantes na vestimenta feminina. Meu pai passou a cultivar
um bigode fino, comprou um terno, camisa e abotoaduras.
Poucos
dias antes daquele 20 de julho, meu pai ganhou de presente um compacto do grupo
“Os Incríveis” com a regravação de uma música instrumental chamada “O
milionário”. Só havia um problema: não tínhamos uma vitrola para tocá-lo.
Ouviríamos pela primeira vez na festa de casamento, pois era certo que lá
haveria uma, de alta fidelidade.
Vivíamos
uma “revolução” política, o Milagre Econômico Brasileiro, uma efervescência
cultural: com a realização de festivais da canção (meu primeiro caderno tinha
uma fotografia de Chico Buarque na capa e na contracapa a letra de “A Banda”,
vencedora do festival de 1966), movimentados por vaias e aplausos, motivados
por pensamentos políticos; com a influência da Jovem Guarda inspirada no
Beatlemania e com uma identidade brasileira surge a Tropicália, misturando
ritmos e estilos. Tudo isso, só fui compreender mais tarde.
Chegou
o dia do casamento de Pierina. Na festa muita música e gente que falava alto, com
sotaque e com as mãos. Num evento como aquele, não havia muita ocupação para os
pequenos. Eu fui salvo por um aparelho de TV, pendurado num galpão da casa da
família.
A
música se alternava entre tradicionais italianas, canções italianas com versões
em português, MPB e Jovem Guarda. Eu, “escondido” debaixo de uma mesa, com a
barriga cheia de tubaína, tentava ficar o mais próximo possível da televisão,
que durante o dia todo fazia chamadas para a chegada do homem na Lua. Eu me
esforçava para ouvir a narração de Hilton Gomes em meio as interferências da
transmissão e aos gritos dos jogos de cartas, embalados por muito vinho e pelas
canções reproduzidas na vitrola.
Poucos
na festa prestaram atenção, mas eu fui uma das 600 milhões de pessoas que assistiram
aquela transmissão ao vivo, uma das primeiras, no mundo inteiro. Hoje parece
uma coisa muito simples, pois cada um faz a sua própria transmissão,
instantaneamente, no seu smartphone, para qualquer lugar do mundo, mas naquela
época, transmitir ao vivo era um grande feito. Transmitir diretamente do
espaço, da superfície da Lua, mais ainda.
Me
esforcei para ficar acordado, até às 23h56min, quando finalmente Neil Armstrong
deu seu “pequeno passo para um homem, um salto gigantesco para a
humanidade". Meu pai, no exato instante, com ajuda do noivo, colocava “O
Milionário” para tocar.
O
presidente americano Richard Nixon realizava o sonho de seu rival John Kennedy
de colocar o homem na lua até o final da década de 1960 e “superar” os russos
na Corrida Espacial, durante mais um episódio da Guerra Fria. Falou de seu
gabinete na Casa Branca diretamente com Armstrong, Audrin e Collins, os dois
primeiros na superfície da Lua.
No
rádio, a chegada do homem à lua foi eternizada pela narração de um jornalista
da Rádio “Voz da América”, que dizia em uma gravação, transportada para o
vinil: “Você sentiu, ao vivo, todas as emoções da descida dos primeiros homens
no satélite da Terra. Viveu com eles este momento histórico de absoluta
grandeza. O que você ouviu hoje é notícia, amanhã será documento. Guarde,
portanto, essa gravação e no futuro, mostrando-a aos seus netos, voltará a
sentir orgulho de ter sido contemporâneo da conquista do espaço”. Acredito que
depois disso eu tenha pegado no sono, pois só lembro do dia seguinte na casa de
minha avó.
Desde
então, a Lua me fascina. Durante bons anos de minha infância pilotei
espaçonaves feitas a partir de cadeiras de cozinha e viajei no espaço sideral
formado por cobertores. Acredito que tais lembranças inspiraram algumas de
minhas histórias de ficção científica, desafiaram a minha imaginação e a de
tantos outros. A conquista da Apollo 11 nos deu maiores esperanças de nos
lançarmos com mais ousadia ao espaço, pois a curiosidade humana transforma a
Terra num lugar pequeno para a nossa inquieta mente, que faz com que a nossa
imaginação não tenha limites.
Vivo
sempre no mundo da Lua, com a esperança de que a natureza humana não nos torne
extintos antes de consolidarmos o nosso caminho no espaço.
Meu
filho desconecta a guitarra. Solar “O milionário” era um de meus sonhos, não
tive habilidade suficiente. Ele fez por mim.
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