Lá
fora, o tempo desaba. Esquento o café e preparo uma tapioca com manteiga. Arrumo
os pratos na mesa, dois copos, talheres bem dispostos, como se ela estivesse
aqui. Sento e reflito. Cada gole de café, um pensamento demorado. Vou à sala, invariavelmente,
para pegar o álbum de fotografias do seu batizado. Como ela era fofa e
sorridente… Fernanda foi uma menina muito feliz. Aos dezoito, resolveu que
deveria ter uma vida independente e, para isso, teria de flanar por aí. “Pai,
estar com você é maravilhoso, mas preciso conhecer o mundo”. Ela, como a mãe
artista, precisava viajar, conhecer novos lugares; em suas palavras: se
encontrar. Sequer cogito, hoje, a hipótese de Fernanda vir morar comigo. Um
acaso do destino nos colocaria frente a frente, depois de seis anos longe. Ela
estava em Barcelona, seu ponto de apoio, pois tinha um namoradinho lá. Na
última ligação, estava afobada, demonstrando medo. Falamos pouco. Ela disse que
precisava desligar, porque teria de cumprir uma missão para um trabalho. Poxa,
quase não tive tempo de me despedir. Aflição de pai é uma desgraça; passo horas
cogitando desastres. Ficamos, depois, dois dias sem contato. Já a postos com o
telefone da Embaixada, Fernanda me ligou, relatando o ocorrido: descobriu que o
namoradinho era um fino receptador de produtos roubados. Segundo ela, teria
outra residência para comportar câmeras, celulares e inúmeros objetos roubados
dos turistas. Foi o motivo de Fernanda se debandar para Madri, onde, segundo ela,
poderia se esconder na casa de uma amiga. O dito cujo ainda tentava contato,
ligando insistentemente. Soube que ele foi a Madri. Como não conseguia falar
com Fernanda, pediu para um amigo ligar e contar que tudo não passava de um
mal-entendido; que, na verdade, os produtos replicados eram da coleção de seu
avô falecido; que o avô havia morrido há um mês e não tivera tempo de se
desfazer legalmente. Ela, sensata, preferiu não pagar para ver e despachou o
sujeito. O indivíduo insistiu e foi o motivo para ela requerer uma medida
protetiva, que, logo depois, se transformou em prisão. Ela não me contou
detalhes, mas deve ter passado por maus bocados. Decidida como a mãe, deu por
encerrado a história. Mas a melhor notícia é que Fernanda, após o aperreio,
virá para passar uns dias com o pai. E, lógico, farei tudo que for possível
para manter sua aura perto da minha: hei de estar vivo e disposto para a
próxima primavera, quem sabe, ao seu lado. Se ela vem, tudo flori.
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