De entre
escombros e ruínas, de vidros estilhaçados e metais retorcidos, de corrimentos
e manchas e afluxos, de entre o selo das intempéries assomava a mansão negra e
seus andares. Assentada num jardim onde o mato estabelecera seus domínios e
propósitos, onde uma fonte de mármore glorificava três anjos ou gárgulas
infantis cujos olhos lacrimosos, e cujo desespero, advinha das chuvas, a casa
destoava do antigo bairro industrial ao erigir-se em detalhes: vidraças
incólumes, não obstante a mantilha de poeira; cortinas e fechaduras; sinal nenhum
de violação.
A
desbravar a rua, sujeito ao itinerário das entregas, o Carteiro exercia sua
liberdade com os olhos, e as ruínas ele escrutou até acreditar na inocência das
sombras ou no descaso dos sons. Atarracado e forte, sua existência era
circunscrita ao uniforme, e de parar em frente à mansão, de admirá-la em
silêncio e através do silêncio, da bolsa retirou um envelope retangular,
branco, e leu as faces do papel. Então contemplou a porta, o número acima dela,
e contemplou a grade e seus vãos e, por fim, a maçaneta do portão. Colocou o
invólucro embaixo do braço, bateu palmas.
Um
segundo, soou o grito oriundo das basculantes frontais.
No rosto
do Carteiro o sol firmava sua carranca, e a camisa embebia-se em suor. Pelas
cercanias o chirriar de duas corujas manifestava-se como o bater de um coração
oco e malfadado. A porta escancarou-se e do breu distinguiu-se um homem alto e
magro, calvo, o terno negro a contrastar com o alvor da cútis. Ao passar pelo
umbral ele abriu a sombrinha de hastes enferrujadas, aprumou-se, ateve-se à
escuridão por si concebida e caminhou até estacar diante da grade que
delimitava o terreno. O Carteiro encarou-o, dir-se-ia assombrado com
extravagância da figura ou com a ausência de cabelos, sobrancelhas, cílios ou
rugas.
Pois bem,
disse o Estranho, e sorriu.
O Carteiro
estendeu e enfiou a mão por entre duas barras, o envelope em evidência. Do
pulso avançar o Estranho cingiu-o e segurou-o e, com um movimento vertiginoso,
além das apreensões, mordeu-lhe o antebraço.
Demônio,
gritou o Carteiro e lutou para soltar-se, atuou em oposição. Malgrado o sol não
o atingisse, não violasse o manto das trevas ou a castidade dos tecidos, o Estranho
recuou. Em seu rosto o sangue emoldurava-lhe a boca, e os olhos, continuamente
abertos, também se sujeitavam às sortes do vermelho.
Maluco dos
infernos, gritou o Carteiro assim do Estranho evadir-se para dentro de casa, não
antes de renunciar à sombrinha e ao ato de trancar a porta. Como se em busca de
socorro ou de testemunhas o Carteiro voltou-se às ruas, às bocas de lobo e ao
meio-fio, e abandonado por Deus e por seus irmãos ele encetou uma fuga incerta
e desesperada. Ao cansar ou julgar-se seguro, distante da mansão, sentou num
murinho de tijolos e examinou o ferimento. Não era profundo, e o sangue cessara
de manar. Da bolsa ele retirou um frasco, sacudiu-o e borrifou a lesão, e, entretanto, não acusou o açoite do álcool. Tremia o pulso injuriado, tremiam as
mãos. Enfaixou o antebraço com as ataduras do kit de primeiros socorros e
retomou sua caminhada.
Na Central
da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, aos curiosos, fingiu a verdade.
Um cachorro avançou, disse, à guisa de esclarecimento. Nada de mais, mas vou ao
médico, asseverou, não obstante na garganta o sobrelevar de veias e vasos
sanguíneos reclamasse maiores e melhores motivos. De volta às ruas ao fim do
expediente, entre o anoitecer e os tantos outros sóis da metrópole, e desmentindo
as próprias palavras, seguiu para sua casa, onde, convalescente, delirou de
febre e esvaiu-se em suores de coloração amarelada. Refeito à manhã, o rosto
corado e macio como se rejuvenescido, com o seu automóvel dirigiu-se à mansão
maldita. Era sábado. Estacionou em frente às grades e, de dentro do veículo,
escrutou os arredores, a casa em si, e nem o céu salvou-se de julgamentos e
sentenças. Porém não acusou a visão do estranho ou de arbitrariedades incomuns.
A porta encontrava-se fechada, e assim as janelas e basculantes. Atrás dos
vidros, cortinas assomavam feito tapumes. Regressou ao lar.
Segunda-Feira,
e do ferimento restara um hematoma. O Carteiro não comera e mal dormira, e anunciava-se
em olheiras e alvores faciais. Mordia os lábios, então ressecados e violetas, e,
todavia, cantarolava e sorria, murmurava a sós. De ingressar na Central, renunciou
a curiosos e curiosas e pôs-se a trabalhar. Separou a cota diária de cartas,
definiu seu itinerário, emudeceu ao examinar o último dos envelopes. A missiva,
subscrita por um tal de Dr. Nigel, e procedente da Transilvânia, era endereçada
à mansão negra. O destinatário chamava-se Almon Sarif. Após verificar os
carimbos, se abas e dobras estavam seladas, jogou os demais invólucros na bolsa
e, apressado, troteou até o covil do sanguessuga. Era um dia de sol como para
ele sempre haveria de ser. Ruas desoladas, silêncios acintosos. Defronte à
casa, amarrotado e suado, bateu palmas. Em dois, três minutos, a porta abriu-se,
e do vestíbulo destacou-se o homem de preto, a sombrinha aberta, o rosto
inexpressivo e branco. Aproximou-se ele do portão e, ao parar, nada falou,
somente estendeu a mão livre, coberta por uma luva de couro. O carteiro não
entregou a carta, não se moveu, mas, levantando-a, disse,
Vem pegar.
Antes de
terminar a frase o Estranho segurava-lhe o pulso por entre as grades, e ao ser
forçado contra as barras o Carteiro reagiu e socou e esmurrou a sombrinha, livrou-se
das garras alheias e evitou de ser abocanhado. O Estranho posicionou o
guarda-chuva sobre si e, sob gritos e insultos, em desesperos debandou rumo ao
interior da casa. Tomado de fúria, com a íris dos olhos esfumaçadas, à pedradas
o Carteiro arrebentou dois ou três vidros, gritou. A pele da face e dos braços
avermelhara-se como se há muito exposta ao sol. Ele afagou-se, passou a mão
testa e grunhiu, aos saltos distanciou-se. A carta, além da cerca, restou por sobre
a grama.
Na Central,
tirou sua garrafa de água da bolsa e sentou-se. Petrificado contra o encosto de
uma cadeira, o olhar perdido nos mais evidentes vazios da parede, desatarraxou
a tampa e sorveu um gole. De pronto convulsionaram-se os músculos e nervos do
pescoço, enegreceram-se as gengivas. Ele cuspiu o líquido no pavimento, com
força ou ódio jogou a garrafa longe, massageou a garganta. Balbuciava
profanidades quando uma das estagiárias aproximou-se, indagou acerca de seu
estado.
Tudo bem
por aí?
Era alta,
corpulenta, e o sorriso bondoso lhe maculava o semblante.
Tudo,
retrucou o Carteiro, a face voltada para o chão. É o calor, a minha pressão,
acrescentou, e fios de saliva rosada pendiam dos lábios.
Vou chamar
o supervisor, disse ela e, ao virar-se, alinharam-se o traseiro e o rosto do Carteiro.
Este levantou a cabeça. O bumbum, formado por duas circunferências exatas,
distorcia as estéreis linhas do corredor. Ele abriu a boca. Pontiagudos e
longos, os caninos assomaram da escuridão. Antes de a menina andar, o Carteiro
agarrou-lhe as pernas e mordeu-lhe uma das nádegas.
E essa é a
sua história.
Ou, ao
menos, a estória que, prestes a ser condenado, narrou ao juiz da vara criminal.
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