Ulisses
era um menino esperto. Segundo a mãe, “muito acima da média”. Era considerado
um mini gênio pelos que o conheciam. Logo foi incentivado a ir a programas de
televisão. “Todos têm o direito de saber do prodígio”. Saiu, veja só, em rede
nacional, num programa dominical. A mãe e o pai já projetavam uma vida à la
Maisa – aquela. Ora, se o menino, aos três anos, proferia os nomes de quase
todos os países do globo, além dos estados e capitais do País, e ainda “falava
inglês” – claro, há um tremendo exagero, se ela mal sabia falar o português –,
poderia render um bom futuro. Os seus olhos se transfiguravam em cifras,
monetização pura, quando se tocava no nome do filho. Para isso, o pequeno
Ulisses tinha de passar as tardes, que adentravam as noites, decorando cada vez
mais coisas; era um escravo do “conhecimento”. O pai se dizia visionário, e o
colocava no alto posto de apresentador de televisão, porque tinha “traquejo
para a coisa”. Prevendo a fama, os pais foram à escolinha de bairro para
determinar que o pequeno só ficaria ali – o que seria uma honra para o colégio
– se tivesse uma educação especial, com uma professora à sua disposição. A
diretora entendeu a necessidade, mas relatou que a escolinha já mantinha uma professora
e uma psicóloga, que atendiam muito bem os casos de crianças com superdotação,
altas habilidades e outros casos particulares do gênero. Refutando, o pai e a
mãe, em uníssono, disseram que a escola negligenciava, e não tinha condições de
educar um “fenômeno”. A diretora contestou, delicada, relatando que Ulisses não
era o único na escola. Para que ela foi dizer isso? Retiraram arbitrariamente a
criança, que, agora, ficaria aos cuidados dos pais – ora com um, ora com outro,
e o maior tempo com a babá. Como os contatos dos curiosos não faltavam, a mãe
resolveu pedir as contas do “empreguinho” que tinha de vendedora de uma loja no
centro da cidade. A avó de Ulisses, mãe de Tânia, esperneou, gritou, falou que
os pais estavam doidos: Ulisses era só uma criança, que precisava viver como os
demais, no meio da criançada de sua idade. Com o primo Artur, a mãe fez questão
de cortar a relação – ainda que o filho insistisse em vê-lo –, e arrumou uma
tremenda briga com a cunhada, mãe do menino, porque ele era um “mau exemplo”
para o Ulisses; não estudava que prestasse; não tinha nada interessante a
oferecer; era meio “leso”; e gostava de “brincadeira de pobre”. Afonso Lucas, o
pai, contava o dia para, também, pedir as contas da firma. Calculava que em
dois anos seriam, no mínimo, milionários. “Tânia, aquela menina lá da tevê saiu
da miséria no segundo ano em que aparecia nos programas, porque foi contratada
pelo Raul Gil. Temos de dar um jeito de ele ir lá”. Mas o menino não tinha um
pingo de carisma. Era introvertido, com muito medo de gente. Para completar, pouco
se movia ou falava; não olhava nos olhos; era um bichinho arredio, “de dá
dó” – como no bom coloquialismo se diz. Fizeram de tudo para empurrá-lo ao dito
programa: ligavam insistentemente para a televisão, falaram com produtores, com
diversos funcionários do canal, e, enfim, marcaram o dia da apresentação. O
menino, coitado, não sabia de nada. E, para completar, exibia uma espécie de
cansaço pelo ritmo que levava – os pais, contudo, atribuíam isso à preguiça,
brigavam com ele e forçavam-no a cumprir o cronograma traçado. Foram a São
Paulo. Receberam tratamento de reis, com passagens, hotel e alimentação. “Tá
vendo, Tânia, é daqui para melhor!”. Ficaram três dias na cidade que não para.
A apresentação seria ao vivo, no sábado; e voltariam no domingo. A criança só
saiu do quarto no dia da exibição, pois tinha muito o que decorar. Ulisses logo
se encabulou com o grande carro da emissora. O motorista, simpático, tentava
manter contato, e nada recebia de volta. Ao chegarem, cinco horas antes, foram
encaminhados a uma sala preparada para as crianças e seus pais. De todos que
ali estavam, Ulisses era o único que era mantido em clausura, estudando. Não
deu outra: quando o “Seu Raul” chamou o menino ao palco, anunciando-o
efusivamente, ele voltou correndo para os braços da mãe, em completo desespero.
Seu Raul, então, foi tentar buscá-lo na coxia, mas o menino soltou berros e deslanchou
a chorar. A cena foi chocante; a sensação era a de que o menino estava num
matadouro, gritando como um porco a caminho do abate. O apresentador abortou a participação
do menino, chamando, assim, outra criança. Tentaram mais uma vez; não teve jeito.
Ao término do programa, Seu Raul foi tentar conversar com o menino mudo, que
havia se enfiado embaixo de uma cadeira; nem os pais conseguiam arrancá-lo de
lá. Foi levado à psicóloga da televisão, que recomendou ao menino um
acompanhamento, pois que tinha indícios de autismo. Em Fortaleza, a constatação:
era, sim, autista. Os pais rejeitaram o tratamento, agredindo a médica que os
atendeu, chamando-a de incompetente. A saga terminou – ou começou uma nova – quando
o menino foi internado, com estafa e síndrome do pânico. Os genitores decidiram
que o filho problemático ficaria com a avó materna: não tinham tempo para lidar
com isso. Ulisses, agora, é uma criança muito diferente, menos ansiosa e, sobretudo,
amorosa. A avó, ele diz, é a sua “razão de viver”.
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