Com
um suspiro de satisfação, Raquel colocou o símbolo final no longo e trabalhoso
texto que passara os últimos dois dias a escrever. Fora complicado, estivera,
até, várias vezes à beira de desistir ou, no mínimo, de o simplificar, mas
ainda bem que não o fizera, estava uma maravilha, modéstia à parte...
E
iria, sem dúvida, melhorar imenso a sua posição no grupo, quem sabe, poderia
até ser o necessário para lhe dar acesso ao Clube Platina de que todos falavam,
embora sem grandes certezas de que existisse. Mas fazia todo o sentido que um
organismo tão complexo como aquele não se ficasse por um mero escalão de Ouro a
que até nem era muito difícil aceder.
Depois
de se estirar várias vezes, muito “à gato”, para tentar contrabalançar as
muitas horas que passara sentada, Raquel dirigiu-se para o abastecedor de
bebidas e serviu-se de um bom café simples e forte. Não que precisasse de se
manter acordada, mas, após tanto tempo parada, sabia que devia ir fazer uma
pequena, mas enérgica, caminhada e precisava de uma injeção de cafeína que a
aguentasse até a adrenalina entrar em ação.
Depois
de mudar de roupa, desligou e meteu no seu esconderijo o pequeno tablet que
usava para os trabalhos dos Simbólicos, ativou os alarmes, os oficiais e os que
criara, e só depois saiu de casa.
Como,
afinal, se sentia mais enérgica do que seria de esperar, decidiu ir até ao
parque mais próximo, onde havia bons trilhos de caminhada. Assim não teria de
estar atenta a veículos e outras pessoas, podendo divagar à vontade.
E
foi o que fez. Enquanto respirava o ar puro daquele espaço verde e acelerava o
passo numa quase corrida pôs-se a pensar na primeira vez que ouvira falar dos
Simbólicos e do muito que evoluíra desde então.
Estava
no seu último ano de estudos e decidira tentar, mais uma vez, fazer uma pequena
pesquisa na biblioteca. Esta estava às moscas, como sempre, só lá ia quem
queria investigar “livros a sério” e, muito francamente, só muito poucos os
conseguiam ainda ler. A língua, ou antes, as línguas tinham mudado
radicalmente, tendo dado lugar a uma nova linguagem de abreviaturas e símbolos
sem regras gramaticais ou outras e que estava sempre a evoluir. E a maior parte
dos elementos das gerações mais novas já só comunicavam, por escrito ou
oralmente, usando este idioma universal e muito simplificado.
Para
os mais idosos, e o avô de Raquel era um deles, não passava de uma algaraviada
sem nexo. Mas poucos resistiam e estava, de facto, a tornar-se a única língua
vigente no mundo.
Ficou,
pois, intrigada ao ver um grupinho de três jovens sentados a uma mesa com
vários calhamaços à sua frente. Falavam entre si e tiravam notas copiosas,
outra arte em extinção, a conversão automática de voz em texto matara-a.
Reconheceu
vagamente um dos rapazes, tinham pelo menos uma aula em comum e via-o sempre
sozinho, tal como ela. Decidiu, pois, aproveitar essa vaga ligação para
investigar o que estariam a fazer.
E
fora assim que descobrira os Simbólicos.
Eram,
basicamente, um grupo de pessoas de todo o mundo que queriam usar os idiomas
tal como existiam antes da disseminação descontrolada da nova linguagem. A
ideia até nem era fazer voltar tudo ao antigamente, só queriam ter a
possibilidade de escolherem livremente.
E
foi com grande espanto que Raquel descobriu que eram vistos como um grupo
anarquista e perigosíssimo, a ser destruído a todo o custo! Também esta era uma
atitude comum a todos os governos do mundo, qualquer que fosse a sua “cor”, com
exceção, claro, de uma ou duas chamadas ditaduras que, remando contra a maré, proibiam
era a nova língua.
Daí
o enorme secretismo que rodeava todo este movimento. Raquel veio eventualmente
a saber que só lhe tinham revelado a situação porque o tal rapaz conhecido, o
Jorge, já a vira várias vezes a ler pequenos textos antigos, por isso decidiram
iniciá-la quando ela lhes falou naquele dia.
E
Raquel aceitou, entusiasmada, pareceu-lhe tudo uma brincadeira muito divertida.
Basicamente,
e como a nova língua só usava abreviaturas e símbolos, os fundadores do grupo
tinham criado uma lista em que esses mesmos elementos não representavam
palavras mas sim frases inteiras escritas em “língua de gente”, como lhe
chamavam.
Por
exemplo, um Sol pequeno queria dizer “Bom dia, como estás?”
E
a ideia era os membros escreverem algo a sério que depois convertiam no que
parecia ser, à primeira vista, um texto moderno.
É
claro que havia o problema de já ninguém sabia ler ou escrever a sério – exceto
os poucos que ainda estudavam línguas antigas e que eram fortemente
desencorajados a fazê-lo, começando pelo custo caríssimo e sem a menor bolsa de
estudo... Mas tinham contornado esse problema dando acesso a meios de
aprendizagem que começavam por ser muito simples, pelo aspeto teriam até sido
para crianças!
E,
pequeno detalhe, eram aconselhados a ter um tablet totalmente reservado para
este uso e a guardá-lo muito bem a menos que quisessem vir a ter problemas com
as autoridades.
Raquel
lançou-se de corpo e alma aos estudos e às mensagens, tornando-se em breve
fluente na lista que lhe tinham enviado. E foi quando descobriu que havia
vários níveis no movimento, ao ser convidada a passar para o Grupo Madeira.
Novos
estudos e listas foram-na fazendo subir de nível, estando agora no Ouro, com
uma listagem de 33 000 elementos, muitos deles a representarem frases e
ideias bem complexas. E não era nada fácil, como há um número finito de
símbolos e de abreviaturas, isso fora contornado acrescentando-lhes pequenos
detalhes, pontos em vários sítios, sombreados diferentes, enfim, um sem acabar
de detalhes capazes de mudarem totalmente o significado de um texto ou, até, de
o transformar numa algaraviada sem nexo.
Os
textos também eram agora diferentes, de simples mensagens a outros elementos
tinham passado a autênticas dissertações sobre vários assuntos, alguns propostos,
outros de livre escolha, e, até, a composições originais. Como a que passara
dois dias a compor e que fora, muito francamente, o seu melhor de sempre.
Inicialmente
perguntara-se – e indagara abertamente – porque se davam ao trabalho de fazer a
conversão simbólica. Mas se tivesse pensado um bocadinho teria logo visto que
isso permitia estar a escrever ou a ler em público, desde que tivesse
memorizado a lista. Quanto aos elementos desta, bom, era facílimo introduzi-los
no aparelho usado em vez dos que vinham de fábrica.
É
que as precauções aconselhadas, e que aumentavam de nível à medida que se ia
progredindo, só diziam respeito ao tablet que continha o material de estudo e a
lista completa, ou seja, símbolo e significado. No aparelho público, fosse de
que tipo fosse, só podiam estar os símbolos, sem mais nada, tal como se fossem
os da língua que era, para todos os efeitos a oficial.
Assim,
quanto mais decorassem mais podiam divertir-se a escrever coisas proibidas à
vista de todos. E Raquel fora sempre muito boa nisso, mal subia e tinha uma
nova lista atirava-se a ela e não descansava enquanto não a soubesse de cor.
E
era por isso que suspeitava que tinha de haver algo mais acima do Ouro, pelo
menos mais um nível ou, quem sabe, vários. É que uma boa parte das dificuldades
que tiveram com o seu último texto tinham vindo, precisamente, da ausência de
simbologia que dissesse o que queria dizer.
Infelizmente,
não podia perguntar a ninguém, só conhecia pessoalmente o grupinho da
biblioteca e tinham perdido o contacto, exceto com Jorge, mas este tinha
desistido pouco depois, por isso não a poderia ajudar.
Refrescada
pelo passeio e ar puro, Raquel decidiu voltar para casa. E durante todo o
percurso, uma única ideia repetia-se vezes sem conta na sua cabeça, “Será que
tenho uma mensagem de passagem de nível à minha espera?”
Luísa Lopes
Foto de Unseen Studio na Unsplash
0 comentários:
Postar um comentário