Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

quinta-feira, 9 de março de 2023

Simbologia precisa-se


 

Com um suspiro de satisfação, Raquel colocou o símbolo final no longo e trabalhoso texto que passara os últimos dois dias a escrever. Fora complicado, estivera, até, várias vezes à beira de desistir ou, no mínimo, de o simplificar, mas ainda bem que não o fizera, estava uma maravilha, modéstia à parte...

E iria, sem dúvida, melhorar imenso a sua posição no grupo, quem sabe, poderia até ser o necessário para lhe dar acesso ao Clube Platina de que todos falavam, embora sem grandes certezas de que existisse. Mas fazia todo o sentido que um organismo tão complexo como aquele não se ficasse por um mero escalão de Ouro a que até nem era muito difícil aceder.

Depois de se estirar várias vezes, muito “à gato”, para tentar contrabalançar as muitas horas que passara sentada, Raquel dirigiu-se para o abastecedor de bebidas e serviu-se de um bom café simples e forte. Não que precisasse de se manter acordada, mas, após tanto tempo parada, sabia que devia ir fazer uma pequena, mas enérgica, caminhada e precisava de uma injeção de cafeína que a aguentasse até a adrenalina entrar em ação.

Depois de mudar de roupa, desligou e meteu no seu esconderijo o pequeno tablet que usava para os trabalhos dos Simbólicos, ativou os alarmes, os oficiais e os que criara, e só depois saiu de casa.

Como, afinal, se sentia mais enérgica do que seria de esperar, decidiu ir até ao parque mais próximo, onde havia bons trilhos de caminhada. Assim não teria de estar atenta a veículos e outras pessoas, podendo divagar à vontade.

E foi o que fez. Enquanto respirava o ar puro daquele espaço verde e acelerava o passo numa quase corrida pôs-se a pensar na primeira vez que ouvira falar dos Simbólicos e do muito que evoluíra desde então.

Estava no seu último ano de estudos e decidira tentar, mais uma vez, fazer uma pequena pesquisa na biblioteca. Esta estava às moscas, como sempre, só lá ia quem queria investigar “livros a sério” e, muito francamente, só muito poucos os conseguiam ainda ler. A língua, ou antes, as línguas tinham mudado radicalmente, tendo dado lugar a uma nova linguagem de abreviaturas e símbolos sem regras gramaticais ou outras e que estava sempre a evoluir. E a maior parte dos elementos das gerações mais novas já só comunicavam, por escrito ou oralmente, usando este idioma universal e muito simplificado.

Para os mais idosos, e o avô de Raquel era um deles, não passava de uma algaraviada sem nexo. Mas poucos resistiam e estava, de facto, a tornar-se a única língua vigente no mundo.

Ficou, pois, intrigada ao ver um grupinho de três jovens sentados a uma mesa com vários calhamaços à sua frente. Falavam entre si e tiravam notas copiosas, outra arte em extinção, a conversão automática de voz em texto matara-a.

Reconheceu vagamente um dos rapazes, tinham pelo menos uma aula em comum e via-o sempre sozinho, tal como ela. Decidiu, pois, aproveitar essa vaga ligação para investigar o que estariam a fazer.

E fora assim que descobrira os Simbólicos.

Eram, basicamente, um grupo de pessoas de todo o mundo que queriam usar os idiomas tal como existiam antes da disseminação descontrolada da nova linguagem. A ideia até nem era fazer voltar tudo ao antigamente, só queriam ter a possibilidade de escolherem livremente.

E foi com grande espanto que Raquel descobriu que eram vistos como um grupo anarquista e perigosíssimo, a ser destruído a todo o custo! Também esta era uma atitude comum a todos os governos do mundo, qualquer que fosse a sua “cor”, com exceção, claro, de uma ou duas chamadas ditaduras que, remando contra a maré, proibiam era a nova língua.

Daí o enorme secretismo que rodeava todo este movimento. Raquel veio eventualmente a saber que só lhe tinham revelado a situação porque o tal rapaz conhecido, o Jorge, já a vira várias vezes a ler pequenos textos antigos, por isso decidiram iniciá-la quando ela lhes falou naquele dia.

E Raquel aceitou, entusiasmada, pareceu-lhe tudo uma brincadeira muito divertida.

Basicamente, e como a nova língua só usava abreviaturas e símbolos, os fundadores do grupo tinham criado uma lista em que esses mesmos elementos não representavam palavras mas sim frases inteiras escritas em “língua de gente”, como lhe chamavam.

Por exemplo, um Sol pequeno queria dizer “Bom dia, como estás?”

E a ideia era os membros escreverem algo a sério que depois convertiam no que parecia ser, à primeira vista, um texto moderno.

É claro que havia o problema de já ninguém sabia ler ou escrever a sério – exceto os poucos que ainda estudavam línguas antigas e que eram fortemente desencorajados a fazê-lo, começando pelo custo caríssimo e sem a menor bolsa de estudo... Mas tinham contornado esse problema dando acesso a meios de aprendizagem que começavam por ser muito simples, pelo aspeto teriam até sido para crianças!

E, pequeno detalhe, eram aconselhados a ter um tablet totalmente reservado para este uso e a guardá-lo muito bem a menos que quisessem vir a ter problemas com as autoridades.

Raquel lançou-se de corpo e alma aos estudos e às mensagens, tornando-se em breve fluente na lista que lhe tinham enviado. E foi quando descobriu que havia vários níveis no movimento, ao ser convidada a passar para o Grupo Madeira.

Novos estudos e listas foram-na fazendo subir de nível, estando agora no Ouro, com uma listagem de 33 000 elementos, muitos deles a representarem frases e ideias bem complexas. E não era nada fácil, como há um número finito de símbolos e de abreviaturas, isso fora contornado acrescentando-lhes pequenos detalhes, pontos em vários sítios, sombreados diferentes, enfim, um sem acabar de detalhes capazes de mudarem totalmente o significado de um texto ou, até, de o transformar numa algaraviada sem nexo.

Os textos também eram agora diferentes, de simples mensagens a outros elementos tinham passado a autênticas dissertações sobre vários assuntos, alguns propostos, outros de livre escolha, e, até, a composições originais. Como a que passara dois dias a compor e que fora, muito francamente, o seu melhor de sempre.

Inicialmente perguntara-se – e indagara abertamente – porque se davam ao trabalho de fazer a conversão simbólica. Mas se tivesse pensado um bocadinho teria logo visto que isso permitia estar a escrever ou a ler em público, desde que tivesse memorizado a lista. Quanto aos elementos desta, bom, era facílimo introduzi-los no aparelho usado em vez dos que vinham de fábrica.

É que as precauções aconselhadas, e que aumentavam de nível à medida que se ia progredindo, só diziam respeito ao tablet que continha o material de estudo e a lista completa, ou seja, símbolo e significado. No aparelho público, fosse de que tipo fosse, só podiam estar os símbolos, sem mais nada, tal como se fossem os da língua que era, para todos os efeitos a oficial.

Assim, quanto mais decorassem mais podiam divertir-se a escrever coisas proibidas à vista de todos. E Raquel fora sempre muito boa nisso, mal subia e tinha uma nova lista atirava-se a ela e não descansava enquanto não a soubesse de cor.

E era por isso que suspeitava que tinha de haver algo mais acima do Ouro, pelo menos mais um nível ou, quem sabe, vários. É que uma boa parte das dificuldades que tiveram com o seu último texto tinham vindo, precisamente, da ausência de simbologia que dissesse o que queria dizer.

Infelizmente, não podia perguntar a ninguém, só conhecia pessoalmente o grupinho da biblioteca e tinham perdido o contacto, exceto com Jorge, mas este tinha desistido pouco depois, por isso não a poderia ajudar.

Refrescada pelo passeio e ar puro, Raquel decidiu voltar para casa. E durante todo o percurso, uma única ideia repetia-se vezes sem conta na sua cabeça, “Será que tenho uma mensagem de passagem de nível à minha espera?”


Luísa Lopes

Foto de Unseen Studio na Unsplash

Share




0 comentários:

Postar um comentário