À
má fila – O instinto
Dia após dia, o pardal
ia degustando os restos de comida que as crianças deixavam pelo chão. Às vezes
as sobras quase não davam para meio do papo, mas essa desgraçada situação não acontecia
com grande frequência. Na maior parte dos dias aquelas sobras davam para o
almoço e também para o jantar. Bastava que os petizes, no entusiasmo das
brincadeiras, deixassem esquecidos num qualquer canto os suculentos lanches.
O pardal para ter
acesso à comida tinha que aguardar com paciência o final das brincadeiras. A
partir daí, o movimentado campo inimigo passava a território livre e os
despojos ficavam totalmente à sua mercê.
Nas primeiras vezes, o
espertalhão do pássaro voava rasante, na tentativa de escapar ao controlo de
qualquer radar inimigo. Avistado o objectivo, aterrava o mais silenciosamente
possível e dirigia-se pata ante pata até à comida, sempre com as asas em
posição de voo e a olhar para todos os lados não fosse aparecer-lhe o perigo
pela frente. Aliás, cuidados redobrados era o que lhe recomendava o instinto de
sobrevivência que lhe vinha desde o ovo. Uma espécie de sexto sentido que lhe segredava
que o perigo estava sempre à espreita. Porém, com o andar dos tempos foi
ganhando confiança, ao ponto de lassar os cuidados, deixando assim de sentir
aquele chamamento do instinto. Sem precauções voava a descoberto e após a
aterragem saltitava ligeiro ao encontro da comida. Aquela refeição tornara-se
por demais fácil e isenta de perigos. Nem sequer tinha concorrentes à altura, chegando
sempre sozinho às sobras.
Um dia sentiu-se
indisposto e ficou empoleirado no ramo da árvore mais tempo do que o costume e,
por isso, voou atrasado para o repasto. Depois de ter aterrado, procurou as
sobras por todo o lado, mas nada havia para comer, nem sequer uma amostra de
migalha para provar. O campo das brincadeiras estava completamente limpo.
Talvez a miudagem não tivesse ido brincar, ou talvez a mãe não lhes tivesse
levado o lanche, mas isso agora pouco ou nada importava.
O que desgraçadamente
importava é que hoje o esfomeado pássaro teria de ir em busca de alimento para
outro lado qualquer. Ao outro dia, ainda antes da hora habitual, o pardal
levantou voo e lá foi com rumo certo. Pacientemente esperou pala sua hora e
quando ela chegou aquilo é que foi saltitar em direcção ao apetitoso manjar. Contudo
teve de refrear os instintos esfaimados, porque um anafado melro, mais que
negro do que a própria fome, passou por ele e atirou-se sofregamente ao
banquete. Pela certa o maldito intruso tinha descoberto o filão naquele sinistro
dia em que ele se sentiu indisposto e decidiu ficar mais algum tempo no remanso
do ramo.
Enfrentar directamente aquela
ave negra nem por sombras, seria uma luta desigual. Teria de encontrar outra
solução mais adequada à desproporção das forças em presença. De momento nada
lhe vinha à mente, a não ser a malfadada ideia de mais um dia de jejum forçado.
Mais tarde, no embalar suave do seu ramo, teria de procurar, naquele outro
sentido que os pássaros têm, a solução para o problema em equação. Depois de
muita procura na informação disponível no seu ADN encontrou um caminho seguro:
tramar o figurão.
Como? À má fila!
Bastava fazer umas malfeitorias no local das brincadeiras dos miúdos e atirar
as culpas para aquele famigerado oportunista. Assim que o melro se foi embora,
o pardal saltitou para vazio local, largou caganitas por todo o sítio e
pirou-se antes que alguém tivesse oportunidade de o ver.
Quando a mãe dos miúdos
viu toda aquela sujidade nem queria acreditar. Furiosa com tamanha desfaçatez
pôs-se à espreita e reparou naquela ave negra que por ali se passeava. Certa de
que aquele passarão era o culpado de toda aquela sujidade a mãe decidiu
vingar-se. A vingança veio em forma de um fingido morango colocado
estrategicamente num local bem visível.
Com os olhos postos
naquele delicioso e suculento quase fruto estavam três potenciais candidatos: o
pardal, sumido atrás de um arbusto, o anafado melro no lado oposto encoberto
por uma árvore e um robusto corvo, passante de ocasião, poisado em cima dum
poste. Cada um deles já chamava a si o pitéu quando, a menos de uma garra de
distância do desejo, se instalou um gato, a lamber-se com todos os vagares que
o tempo lhe tinha dado. O almejado objecto daquele trio tinha-se afastado para
lá do infinito, segundo cálculos dos próprios interessados. Bastou, tão só, uma
pequena hesitação, ir, ou não ir, e já era tarde demais. Mas se o acaso o
trouxe e o destino o levou felinamente silencioso. Talvez tenha ido em busca de
outro alimento, porque aquele morango, disse-lhe o instinto, não pertence à sua
dieta alimentar. Agora que o alpendre se encontra vazio do indesejado felino, a
mãe, à espreita numa nesga do cortinado, espera que o melro por lá passe em
busca da degustação do dito morango. Porém, numa jogada de antecipação o corvo
bate as asas e aterra primeiro junto ao objecto do desejo. O que o corvo não
sabe é que aquele engodo não é um morango, mas uma chiclete assassina fingindo ser
um morango que traz a morte no ventre. Ainda não sabe, mas talvez venha a saber
momentos antes daquele instante em que a vida se faz morte. Por detrás das
vidraças uma frustrada mãe olha para aqueles três pássaros que recortam o azul
do céu.
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