Quando chegou,
todos estavam impacientes e assustados. O homem, que ocupava o caixão lacrado,
fora atacado pela fera. Mais uma vítima, na pequena Vila de Santa Cecília.
– Padre Cristóvão,
o que acontece com o morto quando chega no céu e lhe falta alguma parte?
– O que chega
ao céu, meu filho é a alma e o espírito não é material.
– Ainda bem,
padre. Não sobrou muita coisa inteira do meu pai. O bicho não parece matar por
fome, acho que é uma raiva insaciável.
– Como
aconteceu?
– Dizem que
depois de tomar uns goles ele fez uma aposta. Pegou a pistola e disse que
acabaria com a besta. Foi até a encruzilhada e começou a uivar, como provocação.
Uivou até cansar. Depois, ninguém ouviu mais nada. Acharam o corpo a uns dois
quilômetros mata adentro. Nem sinal de que foi arrastado. Só um pouco de sangue
na vegetação.
Na mesma noite
da morte, um grupo de homens se formou e foram a caça. Sob a luz da lua cheia e
com lanternas e tochas nas mãos percorreram todos os arredores e não
encontraram nada. Uma senhora jurava que havia visto a criatura próximo da
igreja. Coberta com pelos escuros, só o que se via eram os olhos que pareciam
arder como brasa. Andava curvada, como que a tentar se apoiar sob quatro patas.
Depois do
enterro, formaram-se várias rodas de conversas.
– Fazia tempo
que o assassino não atacava gente – disse o delegado Pereira.
– Isso é coisa
de onça – afirmou o prefeito.
– Se fosse
onça, alguém já teria visto ela ou suas marcas.
– É lobo,
melhor meio lobo, meio homem, afirmou o professor Leovegildo.
– Besteira.
Lobisomem é lenda, invencionice. Deve ser mesmo é um assassino em série. Só não
sei como é que ele transporta os corpos. Pra enganar a polícia, de vez em
quando mata um animal.
– E como é que
o senhor explica as marcas de garras e dentes nos ossos, delegado?
– Ainda não
sei, mas vou descobrir. Por falar nisso, professor, o que o senhor fazia ontem
à noite quando tudo aconteceu?
– Eu estava em
casa, corrigindo as provas dos meus alunos.
– Tem como comprovar?
– Posso
apresentar uma pilha de provas.
– Fique
tranquilo, foi só uma brincadeira. Ontem, quando tudo acontecia, eu fazia uma
batida nas casas de luz vermelha e acabei chegando tarde. Quando soube do
ocorrido, fiquei preocupado com minha santinha. Encontrei a pobre Shirley
ajoelhada, rezando. Sabe como é a vida de policial, a família não sabe se você
vai voltar vivo pra casa.
– Imagino o que
ela tenha passado delegado, ainda mais depois do alvoroço na cidade com o
sumiço do Pedro Tiriba – disse o professor.
– Acredita em
lobisomem, Padre Cristóvão? – perguntou o prefeito.
– O demônio é
capaz de tudo. Pode transformar a vida das pessoas. Gente boa pode se
transformar num monstro.
– O senhor acha
que pode ser alguém da vila, padre? – questionou o delegado.
– Até hoje não
apareceu ninguém no meu confessionário dizendo ser o tal licantropo.
– Lica o que?
Perguntou o prefeito.
– Licantropo,
do grego lycos – lobo e anthropos – homem. Diz a mitologia grega que Zeus
transformou o rei de Árcade, que lhe serviu carne humana, numa criatura meio
lobo, meio homem – explicou o professor.
– E veio
navegando até aqui? Nem mar nós temos. – Interferiu o Bentinho que já estava
emendando uma bebedeira na outra e ouvia a conversa.
– Preciso ir.
Daqui a pouco temos a Missa.
– O senhor
parece cansado padre. Está pálido, com os olhos fundos – observou o delegado.
– Não passei
muito bem a noite. Algo que comi deve ter feito mal.
– Difícil a
vida de padre, não dá pra rejeitar a comida oferecida pelos fiéis, não é mesmo?
Boa é a minha vida, que ninguém quer por perto. Dizem que desconfio de tudo. É
a minha sina.
O padre
apressou-se. Precisava atender às confissões, antes. Quando chegou ao
confessionário, a primeira da fila era a mulher do delegado. Ela abusava do
decote e da saia curta.
A mulher pregou
os peitos na grade do confessionário e despejou:
– Padre, meu
coração não me deixa em paz. É uma paixão atrás da outra. Eu me arrependo,
venho até aqui, pago as minhas penitências, mas sou fraca e tudo volta a
acontecer. Ontem, enquanto todos corriam atrás da besta, eu fazia a minha lição
de casa com o professor Leovegildo. Ele é tão jovem, tão bonito. Não que eu não
goste do meu marido, mas não consigo resistir.
– Tenha fé em
Deus, minha filha. Ele é capaz de perdoar mesmo os imperdoáveis.
– Eu juro que pensei
nas últimas penitências que me recomendou e antecipadamente eu orei. Pode
perguntar ao meu marido, quando ele chegou ontem, cheirando a cachaça e perfume
barato, eu rezava!
– Vou lhe
passar as penitências de hoje.
– Padre, me dê
dobrado, pois ontem pequei por pensamentos também. Quando tudo acontecia, para
que fosse mais gostoso, eu imaginei que o professor fosse o senhor, com o seu
ar selvagem.
– Vamos triplicar
as suas penitências.
– Puxa! O senhor
não peca?
– Todos
pecamos, todos temos nossos segredos.
– Não vai me
dizer que o senhor sai com alguma mulher aqui da comunidade, sai?
– Como se este
fosse o maior dos pecados...
– Como disse
padre?
– Eu quis dizer
que fofocar e colocar palavras na boca dos outros é um dos maiores pecados.
– Eu não sou
fofoqueira, padre. Não conto pra ninguém que quando eu espreito pela janela,
para me certificar de que o Pereira não está por perto, vejo o senhor sair
quase toda noite.
– A senhora
devia cuidar da sua vida, Dona Carlota. Aconselhar e ouvir o pecado de toda uma
comunidade afeta o pastor, compreende?
– Para alguns
pode ser pastor, eu vejo o senhor como lobo.
– Como?
– Nas minhas
fantasias eu sou a ovelhinha.
– Que Deus lhe
acompanhe, minha filha.
Como acontecia
das outras vezes, tudo se acalmava. Na lua cheia seguinte alguns animais
desapareceram.
O inverno chegou
e com ele uma temporada de chuvas. Com o céu encoberto, muita gente esqueceu da
fase da lua. Sentiam-se seguros em suas casas e para suas aventuras.
Certa noite, o
professor Leovegildo esperou o movimento da rua se acalmar e foi em direção da
casa do delegado. Dona Shirley disse ter comprado uma lingerie nova.
Quando chegou,
estranhamente, a porta já estava aberta. Não se ouvia nada. Quando o delegado
não estava em casa, ela colocava a música combinada para tocar. Leovegildo
resolveu espiar por uma das janelas da casa. No momento em que aproximava o
ouvido, algo saltou pela janela, levando consigo uma das folhas da veneziana
que atingiu em cheio sua cabeça.
Atordoado,
visão turva, ele viu a monstruosidade do ser que se afastava rapidamente. Leovegildo
pareceu ter visto um crucifixo no pescoço da fera.
O professor
hesitou, mas entrou. Sentiu o cheiro de enxofre. No quarto, sobre a cama, os
restos de Dona Shirley tingiam de vermelho os lençóis. O coração, arrancado do
peito, ainda parecia pulsar.
Leovegildo
vomitou até quase virar do avesso. Tocou o rosto desfigurado da mulher,
fechando seus olhos. Apavorado, saiu correndo debaixo da forte chuva, algumas
vezes iluminado pelos relâmpagos da tempestade. Não percebeu quando cruzou com Bentinho,
deitado sob a marquise do armazém de secos e molhados.
Quando o
delegado chegou em casa, ficou transtornado. Pegou todas as armas que tinha e
acordou todos os homens da vila. Com armas de fogo, facas e foices, saíram em
busca da fera.
O professor, não
queria se expor, mas não aguentou ficar sem fazer nada. Precisava dividir
aquilo com alguém. Lembrou que algo dito em confissão não poderia ser revelado pelo
confessor, então resolveu procurar o Padre.
A porta
principal da capela estava apenas encostada. Entrou e se deparou com outra cena
estranha. Padre Cristóvão, apenas de cueca, ajoelhado em frente ao altar, usava
as disciplinas se autoflagelando. Suas costas sangravam. No interior da capela,
o mesmo cheiro de ovo podre do enxofre.
Cristóvão, quando
percebeu a presença, saltou rapidamente, deixando à mostra um crucifixo de
prata sobre o peito. Segurou-o e apontou em direção à sombra que se aproximava.
– Sou eu,
padre. Professor Leovegildo. Preciso me confessar.
– A esta hora,
meu filho. Deixe para amanhã.
– Depois será
tarde!
– Espere alguns
minutos, preciso colocar minhas vestes.
Leovegildo
ajoelhou-se num dos bancos e pedia que Deus cuidasse da alma de Dona Shirley. Apesar
dos defeitos, ela era uma boa pessoa. Aplacou a solidão dele em muitas noites.
Imaginar aquele corpo, antes cheio de vida, inerte, destroçado, lhe fazia muito
mal.
O padre
retornou. Pareceu ter passado rapidamente pelo chuveiro. Sentou-se ao lado de
Leovegildo.
– A confissão
vai ser aqui mesmo?
– Sim, aqui os
únicos ouvidos são os de Deus.
Leovegildo
voltou seus olhos para o altar, buscando forças para contar o que tinha visto.
Quando baixou
os olhos, no degrau que dava acesso ao púlpito, mesmo sob a tênue luz que tremulava
no ambiente, percebeu um pequeno pedaço de tecido. A mesma estampa da calcinha
que vestira Dona Shirley.
– Vamos lá, meu
filho, me conte o que houve?
Ele permaneceu
em silêncio, enquanto organizava os pensamentos.
– Talvez eu não
precise lhe falar, padre. Acho que o senhor sabe mais do que eu sei. Me diga
padre, o senhor protege a criatura?
– O que insinua?
– Minha cabeça
está confusa. Acabei de sair da casa do delegado. Dona Shirley foi destroçada
com violência. Vi uma criatura peluda, forte, cheirando a enxofre saltar pela
janela. O licantropo carregava um crucifixo no pescoço, parecido com o seu. Sua
igreja cheira a enxofre também e aqui, o mesmo tecido da roupa da vítima. O
senhor sabe quem é a fera?
– Você está
enganado – disse olhando nos olhos de Leovegildo.
– Seus olhos,
estão avermelhados. Não, você não protege a criatura, você é a criatura.
O professor saltou,
pegando um dos pesados candelabros da igreja.
– Não grite!
Ambos temos nossos segredos.
– Mas eu não
matei ninguém.
– Em qual
palavra as pessoas vão acreditar, na de um padre ou na de um professor, amante
da mulher do delegado e de outra meia dúzia de senhoras?
– Sabe, padre,
nunca vi o senhor como uma pessoa má, por que faz isso?
– Não é uma
questão de escolha. É uma maldição.
– Mesmo que
seja uma maldição, por que se esconde atrás de uma batina?
– Sendo padre,
posso amenizar um pouco da dor daqueles que faço sofrer.
– Não poderei esconder
isso.
O aparente silêncio
do interior da capela foi rompido com a entrada da turba armada.
– Lá está o
lobisomem! – Gritou o delegado.
As pernas do
padre Cristóvão fraquejaram. Não reagiria. Melhor, a maldição acabaria.
Leovegildo se
sentiu aliviado, mas foi surpreendido quando levou um soco no rosto e foi
arrastado por dois sujeitos muito fortes.
– Delegado, o
que está acontecendo? Está prendendo o homem errado!
– Bentinho, diz
para o professor o que foi que você viu.
– Eu não vi
nada não, delegado – respondeu, temendo que o professor se transformasse diante
de todos.
– Seu bêbado
frouxo. Ele viu o senhor saindo da minha casa. Como explica esse sangue
escorrido em sua camisa, professor?
– Não fui eu.
Padre diga a eles o que aconteceu!
– Sinto muito, mas
como confessor, não posso expor o que me foi dito.
Leovegildo não
viu mais nada, depois que levou um golpe na cabeça. Quando acordou, já estava seminu,
amarrado a um poste, sobre a lenha de uma fogueira posta a seus pés. A multidão
estava furiosa.
– Faça um
último pedido a Deus, meu filho – disse-lhe o padre.
– Que o senhor
queime no inferno, padre.
– O delegado
portava uma lança improvisada, feita de um cabo de enxada. Na ponta, o
crucifixo de prata, antes usado pelo padre.
Pereira,
aproximou-se e disse em seu ouvido:
“Lobisomem ou
não, esta noite não foi a única em que o senhor entrou na minha casa. Bentinho
me contou tudo”.
Num único
golpe, a ponta maior do crucifixo penetrou o coração de Leovegildo. Dizem que
ele uivou como um lobo. Mas quem acredita nas histórias populares.
Dois dias
depois, o padre Cristóvão partiu, dizendo-se abalado por tudo o que aconteceu.
O lobisomem
nunca mais apareceu na vila. Ressurgiu numa outra cidade, distante. A mesma
cidade onde agora morava o professor Cristóvão, o homem amaldiçoado por ser o
último filho de sete irmãos, o descendente do grego castigado pelos deuses.
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