Túlio já era um pouco entradote quando se apaixonou por Georgete. Reconheceram afinidades num grupo católico, que organizava ações de apoio social nos bairros de barracas que iam cercando a capital. Nesses finais dos anos 60, a cidade abarrotava de migrantes internos, à procura de ocupações com salário, que os campos negavam cada vez mais, e o grupo tentava minimizar o choque com as condições degradadas que encontravam.
Ele já tinha uns anos de contabilidade na Frutuoso e Irmãos, ali ao Conde-barão, uma empresa de equipamentos de escritório; ela, a fazer os vinte e três anos, dava os primeiros passos na promissora carreira de datilógrafa, na mesma firma. O namoro foi rápido, mas contido, e o casamento, bastante frugal, não juntou mais de trinta pessoas. Foram viver para um andar antigo, mas espaçoso, que a empresa dispunha em Campolide e cedeu por empréstimo de 10 anos ao diligente funcionário, o que ajudou Túlio a convencer a mulher a dedicar-se exclusivamente ao lar.
Ordenado e assíduo, todas as tardes de sábado, depois de almoço, Túlio aproveitava a recente regalia da semana inglesa e transformava-se numa espécie de fauno das assoalhadas. Pelo pequeno labirinto da casa, perseguia a jovem esposa, que, antevendo a captura inevitável, fugia em alvoroço de risadas e gritinhos, acicatando o instinto predador do caçador. Os vizinhos não tinham nenhumas dúvidas do que acontecia, quando o clamor da presa emudecia. O ritual semanal manteve-se cronometricamente regular e tinha o condão de lembrar a um ou outro casal das redondezas que ainda não tinha cumprido o compromisso conjugal semanal. Nasceu até uma criança, no prédio do lado, a quem puseram o nome de George, que nunca conseguiu convencer os pais a contar-lhe porque raio lhe tinham posto aquele nome.
O 25 de Abril constituiu um choque enorme para o casal. O valor das ações em que Túlio ia aplicando as poupanças esfumou-se naquele dia. Os aumentos de salários que a convulsão social trouxe, começou a desencadear um fenómeno quase desconhecido — a inflação. Túlio pensou muito, antes de se decidir a explanar à mulher a situação económica familiar e a propor-lhe que voltasse a trabalhar fora de casa. Havia muitas indefinições a ultrapassar e muito perigos a evitar.
— Já podias ter falado há mais tempo, querido! Não, não me importo nada; não é coisa que eu não tivesse já pensado. Só acho que, se calhar, estou um pouco destreinada. Mas tudo se aprende.
Um mês depois, Túlio chegou com uma novidade.
— Amorzinho, já te arranjei trabalho. Falei com o meu amigo Queiroz da contabilidade da Contugal e ele disse que podes começar como assistente da secretária dos vendedores. Para começar, não é mau, pois não?
— Está bem. Vais ver que aprendo depressa.
— Claro, não tenho dúvidas. Mas estou tão preocupado. É que eu sei como são os vendedores. E vejo bem o que acontece na Frutuoso. Anda toda a gente enrolada com toda a gente. E esses não são os nossos valores, pois não?
— Ó querido, até me ofendes. Para mim, pode vir o mais pintado…
— Eu sei, eu sei, amorzinho; mas mesmo assim. Esta modernice de homens e mulheres trabalharem juntos provoca devaneios, oportunidades. Acho que devíamos jogar pelo seguro. Não podemos dar azo à malícia, nos tempos que correm. “A ocasião faz o ladrão”, como bem se diz. Sabes o que me deixava mesmo tranquilo? Era deixares a pombinha em casa. Muita gente está a fazer isso. E ainda mais com as ruas cheias de barbudos e mal-encarados, não duvido que vão aumentar as violações. Com a pombinha bem guardada, estavas tu segura e eu descansado. O que achas?
— Em casa? Eu não vejo necessidade; parece-me um excesso securitário, mas não quero, de maneira nenhuma, que fiques preocupado. Deixo-a cá, está combinado. Pelo menos enquanto os tempos não mudarem.
— Olha, amorzinho, podíamos guardá-la no guarda-joias que comprámos no Mercado do Povo, aquela caixa de madeira avermelhada com aplicações de madrepérola, com uma chavinha dourada. E metemo-lo na mesa de cabeceira.
Georgete adaptou-se bem ao emprego, mas sempre com os procedimentos de segurança bem assumidos. A rotina dos sábados pouco se alterou; apenas faziam um pequeno compasso de espera para abrir a caixa, exceto da vez em que só deram com a chave quando já estavam irritados e desanimados. Resolveram passar a deixá-la na fechadura.
Uns meses depois, Georgete contou o gracejo divertido, que metia chuchas, que um vendedor da empresa lhe dissera; Túlio teve um frémito de angústia.
— Amorzinho, não queres deixar cá também as margaridas? Só para não provocar esses depravados.
— Querido, ele referia-se aos socialistas; foi um dito sem más intenções. E o peito compõe muito uma mulher. Não quero parecer uma matrafona com chumaços, muito menos aparecer lá agora de peito liso. E a propósito, porque é que tu não deixas cá também o tulinho? Segundo me disseste, uma das operadoras mecanográficas tem sido muito simpática...
— Quiducha, fica em casa já amanhã. Não me faz falta nenhuma lá, garanto-te. Tenho ali um estojo, que acho que era da máquina de barbear, que deve ser à medida.
A sociedade ia mudando em ritmo acelerado, Georgete foi promovida a secretária do chefe dos vendedores, mas o casal não se afastava das rotinas sensuais a que estava habituado. Certa tarde de sábado, porém, no vertiginoso momento das aberturas da caixa e do estojo, a dona da pombinha estranhou qualquer coisa na posição da sua joia.
— Túlio, mexeste na pombinha? — perguntou em tom desconfiado.
Os princípios cristãos de Túlio não o deixaram mentir.
— Amorzinho, desculpa! — pediu Túlio com os olhos em alvo e a testa franzida. — Tinhas ido ao almoço de anos da tua amiga Fernanda; era sábado e não estavas cá… Tu sabes que o sábado é sagrado para mim. Não te fui infiel; foi tudo só nosso.
— Francamente, Túlio, não podias esperar?; era dia de afogar o careca, como vocês dizem?; é só disso que precisas de mim? — reagiu, indignada.
— Eu não digo expressões rascas dessas; faz-me a justiça de o reconhecer.
— Fazer, fazer... O que é que eu faço, agora? Deixa-me pensar. Olha que tem de haver reciprocidade! Vai lá fazer um balancete, que eu vou discutir o assunto a sós aqui com o teu embuçadinho.
O episódio foi ultrapassado sem mais crispações, mas Georgete passou a andar com a chave do cofre da pombinha. Os anos decorriam calmos, Túlio começou a apostar dinheiro na D. Branca, que, na altura, era afamada por dar juros de 10% ao mês, o que sempre compunha o bolo remuneratório mensal. Certo sábado, Georgete notou que a fechadura do guarda-joias parecia mexida e confrontou o marido. Túlio, envergonhado, desatou a chorar em silêncio, para não alertar os vizinhos.
— Desculpa, desculpa, desculpa! A D. Branca entrou em falência e ficámos sem o dinheiro.
— Quê? O que é que estás para aí a dizer?
— O Queiroz. Somos amigos há tanto tempo. Foi ele que te arranjou emprego lá na Contugal, lembras-te? Foi a ele que recorri, para ultrapassar esta perda imensa.
— O chefe da contabilidade? O que é que o Queiroz é para aqui chamado? O que é que fizeste com a minha pombinha? — gritava Georgete, que temia o pior.
— Era para ser uma coisa simples e tão esmerada que nem desses por nada. Entreguei-lhe a caixa na segunda e uma cópia da chave, que fiz há anos, mas ou ele é desajeitado ou estava tão apressado que não conseguiu abri-la e resolveu arrombá-la. Ontem, ainda tentei compor a fechadura, mas, pelos vistos, foi em vão.
— Tu vendeste a minha pombinha ao Queiroz, aquele monte de banha?
— Foi só um empréstimo por cinco dias. E bem remunerado. Nem te digo quanto é que ele bateu em notas de 5000!
— Tu não tens vergonha nessa cara de degenerado? — berrou Georgete, sem se preocupar com a vizinhança.
— Degenerado, não! Há situações na vida em que um homem tem de assumir as ações que mais o magoam. Nem imaginas o quanto me custou.
— Tu é que não imaginas! O tulinho vai comigo na segunda e só peço ao Florêncio que mo devolva na sexta. O Florêncio, sabes?; aquele que te estava a galar na festa de Natal? Estou a dever-lhe um favor: foi ele que substituiu a fechadura do meu guarda-joias há uns meses. Tem muito jeito de mãos. Mas, descansa que não vou violar os nossos princípios católicos de renúncia da usura. Será a título gratuito.
O rosto de Túlio fazia pena. Parecia tão indefeso como um dos deserdados dos bairros de barracas que visitavam. Claramente, não fora boa ideia separarem-se das suas joias íntimas.
Joaquim Bispo
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Imagem:
Caixa de concha de búzios com dobradiças de prata contendo pintura de um homem abrindo o cinto de castidade de uma mulher nua reclinada.
Coleção de Sir Henry Wellcome, Londres.
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4 comentários:
Parabéns. Fez-me sorrir. Continue e deixo um abraço amigo
Obrigado, Anónimo/a. A literatura também tem função lúdica.
Abraço!
Gratidão
Obrigado, Anónimo/a. O gosto é todo meu.
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