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segunda-feira, 24 de outubro de 2022

A chave do guarda-joias

 


Túlio já era um pouco entradote quando se apaixonou por Georgete. Reconheceram afinidades num grupo católico, que organizava ações de apoio social nos bairros de barracas que iam cercando a capital. Nesses finais dos anos 60, a cidade abarrotava de migrantes internos, à procura de ocupações com salário, que os campos negavam cada vez mais, e o grupo tentava minimizar o choque com as condições degradadas que encontravam.

Ele já tinha uns anos de contabilidade na Frutuoso e Irmãos, ali ao Conde-barão, uma empresa de equipamentos de escritório; ela, a fazer os vinte e três anos, dava os primeiros passos na promissora carreira de datilógrafa, na mesma firma. O namoro foi rápido, mas contido, e o casamento, bastante frugal, não juntou mais de trinta pessoas. Foram viver para um andar antigo, mas espaçoso, que a empresa dispunha em Campolide e cedeu por empréstimo de 10 anos ao diligente funcionário, o que ajudou Túlio a convencer a mulher a dedicar-se exclusivamente ao lar.

Ordenado e assíduo, todas as tardes de sábado, depois de almoço, Túlio aproveitava a recente regalia da semana inglesa e transformava-se numa espécie de fauno das assoalhadas. Pelo pequeno labirinto da casa, perseguia a jovem esposa, que, antevendo a captura inevitável, fugia em alvoroço de risadas e gritinhos, acicatando o instinto predador do caçador. Os vizinhos não tinham nenhumas dúvidas do que acontecia, quando o clamor da presa emudecia. O ritual semanal manteve-se cronometricamente regular e tinha o condão de lembrar a um ou outro casal das redondezas que ainda não tinha cumprido o compromisso conjugal semanal. Nasceu até uma criança, no prédio do lado, a quem puseram o nome de George, que nunca conseguiu convencer os pais a contar-lhe porque raio lhe tinham posto aquele nome.

O 25 de Abril constituiu um choque enorme para o casal. O valor das ações em que Túlio ia aplicando as poupanças esfumou-se naquele dia. Os aumentos de salários que a convulsão social trouxe, começou a desencadear um fenómeno quase desconhecido — a inflação. Túlio pensou muito, antes de se decidir a explanar à mulher a situação económica familiar e a propor-lhe que voltasse a trabalhar fora de casa. Havia muitas indefinições a ultrapassar e muito perigos a evitar.

Já podias ter falado há mais tempo, querido! Não, não me importo nada; não é coisa que eu não tivesse já pensado. Só acho que, se calhar, estou um pouco destreinada. Mas tudo se aprende.

Um mês depois, Túlio chegou com uma novidade.

Amorzinho, já te arranjei trabalho. Falei com o meu amigo Queiroz da contabilidade da Contugal e ele disse que podes começar como assistente da secretária dos vendedores. Para começar, não é mau, pois não?

Está bem. Vais ver que aprendo depressa.

Claro, não tenho dúvidas. Mas estou tão preocupado. É que eu sei como são os vendedores. E vejo bem o que acontece na Frutuoso. Anda toda a gente enrolada com toda a gente. E esses não são os nossos valores, pois não?

Ó querido, até me ofendes. Para mim, pode vir o mais pintado…

Eu sei, eu sei, amorzinho; mas mesmo assim. Esta modernice de homens e mulheres trabalharem juntos provoca devaneios, oportunidades. Acho que devíamos jogar pelo seguro. Não podemos dar azo à malícia, nos tempos que correm. “A ocasião faz o ladrão”, como bem se diz. Sabes o que me deixava mesmo tranquilo? Era deixares a pombinha em casa. Muita gente está a fazer isso. E ainda mais com as ruas cheias de barbudos e mal-encarados, não duvido que vão aumentar as violações. Com a pombinha bem guardada, estavas tu segura e eu descansado. O que achas?

Em casa? Eu não vejo necessidade; parece-me um excesso securitário, mas não quero, de maneira nenhuma, que fiques preocupado. Deixo-a cá, está combinado. Pelo menos enquanto os tempos não mudarem.

Olha, amorzinho, podíamos guardá-la no guarda-joias que comprámos no Mercado do Povo, aquela caixa de madeira avermelhada com aplicações de madrepérola, com uma chavinha dourada. E metemo-lo na mesa de cabeceira.

Georgete adaptou-se bem ao emprego, mas sempre com os procedimentos de segurança bem assumidos. A rotina dos sábados pouco se alterou; apenas faziam um pequeno compasso de espera para abrir a caixa, exceto da vez em que só deram com a chave quando já estavam irritados e desanimados. Resolveram passar a deixá-la na fechadura.

Uns meses depois, Georgete contou o gracejo divertido, que metia chuchas, que um vendedor da empresa lhe dissera; Túlio teve um frémito de angústia.

Amorzinho, não queres deixar cá também as margaridas? Só para não provocar esses depravados.

Querido, ele referia-se aos socialistas; foi um dito sem más intenções. E o peito compõe muito uma mulher. Não quero parecer uma matrafona com chumaços, muito menos aparecer lá agora de peito liso. E a propósito, porque é que tu não deixas cá também o tulinho? Segundo me disseste, uma das operadoras mecanográficas tem sido muito simpática...

Quiducha, fica em casa já amanhã. Não me faz falta nenhuma lá, garanto-te. Tenho ali um estojo, que acho que era da máquina de barbear, que deve ser à medida.

A sociedade ia mudando em ritmo acelerado, Georgete foi promovida a secretária do chefe dos vendedores, mas o casal não se afastava das rotinas sensuais a que estava habituado. Certa tarde de sábado, porém, no vertiginoso momento das aberturas da caixa e do estojo, a dona da pombinha estranhou qualquer coisa na posição da sua joia.

Túlio, mexeste na pombinha? — perguntou em tom desconfiado.

Os princípios cristãos de Túlio não o deixaram mentir.

Amorzinho, desculpa! — pediu Túlio com os olhos em alvo e a testa franzida. — Tinhas ido ao almoço de anos da tua amiga Fernanda; era sábado e não estavas cá… Tu sabes que o sábado é sagrado para mim. Não te fui infiel; foi tudo só nosso.

Francamente, Túlio, não podias esperar?; era dia de afogar o careca, como vocês dizem?; é só disso que precisas de mim? — reagiu, indignada.

Eu não digo expressões rascas dessas; faz-me a justiça de o reconhecer.

Fazer, fazer... O que é que eu faço, agora? Deixa-me pensar. Olha que tem de haver reciprocidade! Vai lá fazer um balancete, que eu vou discutir o assunto a sós aqui com o teu embuçadinho.

O episódio foi ultrapassado sem mais crispações, mas Georgete passou a andar com a chave do cofre da pombinha. Os anos decorriam calmos, Túlio começou a apostar dinheiro na D. Branca, que, na altura, era afamada por dar juros de 10% ao mês, o que sempre compunha o bolo remuneratório mensal. Certo sábado, Georgete notou que a fechadura do guarda-joias parecia mexida e confrontou o marido. Túlio, envergonhado, desatou a chorar em silêncio, para não alertar os vizinhos.

Desculpa, desculpa, desculpa! A D. Branca entrou em falência e ficámos sem o dinheiro.

Quê? O que é que estás para aí a dizer?

O Queiroz. Somos amigos há tanto tempo. Foi ele que te arranjou emprego lá na Contugal, lembras-te? Foi a ele que recorri, para ultrapassar esta perda imensa.

O chefe da contabilidade? O que é que o Queiroz é para aqui chamado? O que é que fizeste com a minha pombinha? — gritava Georgete, que temia o pior.

Era para ser uma coisa simples e tão esmerada que nem desses por nada. Entreguei-lhe a caixa na segunda e uma cópia da chave, que fiz há anos, mas ou ele é desajeitado ou estava tão apressado que não conseguiu abri-la e resolveu arrombá-la. Ontem, ainda tentei compor a fechadura, mas, pelos vistos, foi em vão.

Tu vendeste a minha pombinha ao Queiroz, aquele monte de banha?

Foi só um empréstimo por cinco dias. E bem remunerado. Nem te digo quanto é que ele bateu em notas de 5000!

Tu não tens vergonha nessa cara de degenerado? — berrou Georgete, sem se preocupar com a vizinhança.

Degenerado, não! Há situações na vida em que um homem tem de assumir as ações que mais o magoam. Nem imaginas o quanto me custou.

Tu é que não imaginas! O tulinho vai comigo na segunda e só peço ao Florêncio que mo devolva na sexta. O Florêncio, sabes?; aquele que te estava a galar na festa de Natal? Estou a dever-lhe um favor: foi ele que substituiu a fechadura do meu guarda-joias há uns meses. Tem muito jeito de mãos. Mas, descansa que não vou violar os nossos princípios católicos de renúncia da usura. Será a título gratuito.

O rosto de Túlio fazia pena. Parecia tão indefeso como um dos deserdados dos bairros de barracas que visitavam. Claramente, não fora boa ideia separarem-se das suas joias íntimas.

Joaquim Bispo

*

Imagem:

Caixa de concha de búzios com dobradiças de prata contendo pintura de um homem abrindo o cinto de castidade de uma mulher nua reclinada.

Coleção de Sir Henry Wellcome, Londres.

* * *

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4 comentários:

Parabéns. Fez-me sorrir. Continue e deixo um abraço amigo

Obrigado, Anónimo/a. A literatura também tem função lúdica.
Abraço!

Obrigado, Anónimo/a. O gosto é todo meu.

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