“saí para me divertir,
acabei num
enterro.
um parente
distante.”
(Dostoiévski)
Por Ferreira Jr. (*)
Eu não sabia até
então. Sexta-feira de chuva fina e o colapso do mundo sendo alardeado por todos
e em tudo quanto é canto. Desliguei-me das pessoas mais em função disso, pois
preferia a visão das nuvens e dos pássaros que eu alimentava como se estivesse longe.
Não estava. A realidade me cerceava e eu saí para encher a cara. Num pequeno
beco sem saída havia um boteco e logo em frente o cemitério.
Entre um gole e outro passou o
cortejo fúnebre e resolvi acompanhar. Durante o percurso fui informado que se
tratava da morte de um sujeito conhecido como “Outro Silva”, aliás, pouco
conhecido, a julgar pelo nome. Afinal são tantos silvas que um silva a mais ou
um a menos não faria, àquela altura, muita diferença. Como se fosse um silvo no
deserto.
Devido
a esta singularidade do nome do defunto, resolvi acompanhá-lo até sua última
morada e no trajeto tentaria saber mais sobre o cadáver. Entabulei conversação
com um senhor de meia-idade que estava do meu lado, julgando que fossem
parentes. Na verdade, só trabalhavam juntos num escritório mixuruca de
contabilidade e redação de textos para jornais.
Alexandre
Barret era o nome da pessoa com a qual eu falava. Indagado a respeito do
falecido disse-me que o “Outro Silva” era um homem estranho como o próprio
nome, mas davam-se bem no serviço diário onde se encontravam como empregados de
um proprietário, que morava numa cidade distante e repassava as suas ordens por
telefone ou por e-mail.
Numa
dessas ordens foi que o “Outro Silva” se destacou, produzindo sob encomenda seu
único texto re/conhecido: “Gênese de um nome e de um livro”, que acabou sendo
publicado como apresentação ao livro “Textos e Ensaios”, do escritor mineiro
Milton Rezende.
“Depois
disso, apesar da pequena repercussão favorável aos seus escritos, não produziu
mais nada que eu saiba e entrou assim numa espécie de recesso das ideias”,
disse-me o Barret sobre o seu finado amigo, quando já ultrapassávamos o portão
de grades da entrada do cemitério. Poucas pessoas acompanhavam o cortejo, pois
atualmente já não se usa muito celebrar os rituais da morte e ela, esvaziada do
seu contexto histórico, aninhou-se no subconsciente humano produzindo ali
estragos ainda maiores de quando era uma senhora respeitada na sociedade.
A
causa da morte do “Outro Silva”, conforme atestado de óbito assinado pelo
médico plantonista, Dr. Carlos Águia, teria ocorrido em função de
“insuficiência respiratória aguda, edema agudo do pulmão, infarto agudo do
miocárdio e hipertensão arterial sistêmica”. Contava 47 anos.
Foi
enterrado ao lado do finado Tibúrcio Soledade que, segundo consta, teria
sepultado a si mesmo no quintal de sua própria casa numa crise de identidade.
Mais tarde seu corpo foi transladado para este cemitério e agora jazem os dois
em covas rasas, esquecidos de si mesmos e dos homens com os quais haviam
convivido.
Despedi-me
do Alexandre Barret na saída e uma vaga nuvem de tristeza rondava-me os olhos
lacrimejantes. Voltei ao boteco do beco para celebrar a continuidade da vida
num ninho de passarinho que eu vira construído no coqueiro ao lado do túmulo do
“Outro Silva”.
Sobre
a mesa do bar estava um exemplar do Diário de Notícias, estampando em letras
garrafais a corrupção nossa de cada dia e a cara dos políticos escarnecendo das
nossas caras de otários. Um sujeito passou na rua de carro e deu para
acompanhar o refrão da música de rap que tocava através do pen drive: “era só
mais um silva que a estrela não brilha”.
(*)
Ferreira Jr. é um heterônimo de Milton Rezende
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