A noite estava fria e tempestuosa. O vento agitava fortemente os ramos das árvores, que dançavam vigorosamente e se vergavam quase até se quebrarem. As nuvens corriam velozmente pelo céu, ora ocultando a Lua ora libertando-a, o que dava origem a um grotesco e fantasmagórico jogo de sombras sobre o solo. As inúmeras folhas caídas que juncavam os passeios e os relvados rodopiavam em espirais fantásticas, num frenesim contínuo e sem sentido, parecendo, por momentos, quase vivas. Sentia-se que a chuva não podia andar longe e que, quando começasse a cair, seria um autêntico dilúvio. No horizonte distante um raio riscava por vezes o céu tenebroso, refletindo-se nas escuras e ameaçadoras nuvens, mas silenciosamente, como se achasse que a noite já era demasiado ruidosa com o assobio avassalador do vento.
Escudada por detrás dos
espessos e pesados cortinados de veludo vermelho escuro, ligeiramente
entreabertos, Sílvia perscrutava fixamente a escuridão que envolvia o enorme
jardim e os campos circundantes, com uma atenção concentrada e sem
interrupções. Já há horas que observava a aproximação da tempestade. Esperava
de instante a instante assistir ao desabar da chuva, presenciar o relampejar
dos relâmpagos, escutar o estrépito dos trovões. Mas só o vento se apresentara,
forte, em rajadas repentinas e violentas seguidas de acalmias momentâneas.
Toda a sua atitude era de
expectativa, como se aguardasse a qualquer momento a chegada de alguém, que
tardava. O seu corpo, tenso, mantinha-se ereto e rígido, com o braço direito
ligeiramente erguido e a mão crispada sobre o cortinado. O vestido, longo,
negro, de corpo justo e saia caindo em pregas moles, acentuava ainda mais a
esbelteza esguia do seu corpo, contribuindo fortemente para lhe conferir aspeto
hierático de uma estátua antiga. Na face imóvel e pálida só os grandes olhos
cinzentos se moviam, relanceando sem parar de um lado para o outro, como se
receassem perder algum pormenor da cena exterior.
Por detrás dela a sala estava
bastante escura, apenas iluminada por um pequeno candeeiro de mesa, coberto com
uma pala escura, e pelo fogo quase apagado a um canto da grande lareira de
pedra lavrada. Era um compartimento quase quadrado, amplo, de paredes escuras e
móveis pesados e ricamente decorados. Os numerosos objectos delicados,
dispostos pelas várias mesas espalhadas pela sala, o tapete espesso e macio que
cobria a quase totalidade do soalho e os inúmeros quadros nas paredes denotavam
uma certa opulência, embora um pouco gasta e antiquada. O aspeto geral era um
tanto ou quanto claustrofóbico, devido às cores escuras e ao facto de as
janelas estarem totalmente tapadas com cortinados, que chegavam até ao chão, e
a porta fechada.
Lá fora o vento aumentava
cada vez mais de intensidade, soprando agora de modo contínuo, embora com
grandes flutuações de direcção e ruído. A temperatura na sala baixara imenso,
em parte devido ao apagar progressivo do fogo, prestes a extinguir-se, mas
também por influência das condições exteriores. As janelas mal vedadas e a
enorme chaminé deixavam penetrar o frio crescente de tão desagradável noite.
De
repente Sílvia estremeceu, parecendo acordar de um longo transe. Largou a
cortina, voltou-se e pareceu, finalmente, aperceber-se da alteração sofrida
pelo ambiente da sala. Com movimentos bruscos, mas decididos, aproximou-se rapidamente
da lareira e acrescentou-lhe um pouco da lenha armazenada ao lado, remexendo as
brasas com um belo atiçador em ferro muito bem trabalhado. Quando tudo ficou a
seu contento dirigiu-se para um cadeirão em couro negro, muito gasto, colocado
a um dos lados da lareira, e sentou-se, apoiando a cabeça numa das mãos.
Parecia meia adormecida, completamente imóvel e de olhos semicerrados.
O relógio bateu as horas,
onze lentas e sonoras badaladas, que ecoavam na sala quase deserta. Ao
extinguir-se o som da última um ruído novo vindo do exterior sobrepôs-se ao
assobiar agudo do vento. Eram passos lentos, comedidos e pesados, que se
aproximavam da casa ao longo do caminho em saibro. Sílvia ergueu bruscamente a
cabeça mas deixou-se ficar onde estava. Parecia saber o que este novo som
significava e ter decidido aguardar o desenrolar dos acontecimentos confortavelmente
instalada. Quem a visse neste momento nunca poderia imaginar a atitude
expectante e ansiosa que apresentara até há bem pouco tempo, nem as horas que
passara espiando esse mesmo caminho por entre os cortinados. Limitou-se a levar
por momentos a mão direita ao cabelo, como para se certificar de que tudo
estava em ordem, voltando depois à imobilidade anterior.
Os passos deixaram de se
ouvir mas passados alguns minutos a maçaneta da porta da sala rodou sem ruído.
A porta abriu-se devagar e com uma certa dificuldade. Sílvia levantou-se,
então, com um salto brusco e como que surpreendido, precipitando-se para a
personagem que acabara de entrar. Era um homem alto e encorpado, de ombros um
tanto ou quanto curvados. Estava envolvido num grosso casacão, de gola
levantada para lhe proteger as orelhas, e tinha um espesso gorro de pele de
raposa enfiado na cabeça. Mesmo assim trazia consigo uma intensa sensação de
frio, como se a tempestade que reinava no exterior tivesse aproveitado aquela
oportunidade para penetrar à vontade na sala que lhe fora até então vedada.
Sílvia abraçou-se-lhe ao
pescoço com uma sofreguidão exigente e ávida. Parecia tentar extinguir em
segundos longas semanas, quiçá meses, de ausência e de saudade. Quando
finalmente se soltou, ajudou-o desajeitadamente a retirar os pesados agasalhos
que trazia, atirando-os descuidadamente para cima da cadeira mais próxima, que
estremeceu com o peso desacostumado.
Pode-se então ver que o
visitante já não era novo, havendo entre ele e Sílvia muitos anos a separá-los.
Tinha os cabelos bastante grisalhos, um pouco longos sobre o pescoço, e um
pequeno bigode cuidadosamente aparado. Apesar das pequenas rugas que lhe
sulcavam a testa e as faces o seu aspeto denotava vigor e energia. Os olhos,
contudo, tinham uma expressão de cansaço e sofrimento, como se esta visita
tardia fosse para ele um motivo de preocupação e desgosto em vez da ocasião
feliz que a atitude da mulher denotava.
Aproximaram-se os dois da
lareira e o homem começou a aquecer metodicamente as mãos enregeladas. De pé a
seu lado, Sílvia devorava-lhe os traços com os olhos, parecendo comparar
mentalmente o que via com algo meio esquecido que trazia de há muito na
memória. Passado algum tempo foram sentar-se num pequeno sofá de dois lugares,
colocado mesmo em frente do fogo que agora crepitava com fulgor. Instalados
lado a lado, muito juntos e de mãos dadas, assim permaneceram durante longo
tempo, sem falarem e sem se olharem, como se o que existia entre ambos
estivesse muito para além de simples gestos ou palavras.
Tinham-se conhecido muito
jovens ainda. Ela era a única descendente de uma antiga e prestigiada família
um tanto ou quanto arruinada e que vivia isolada na sua bela propriedade. Quase
não tinham contactos com os restantes habitantes da região, bastando-se
totalmente a si próprios não tanto por soberba mas mais por costume ancestral e
acanhamento. Durante gerações a família fora tão numerosa que não havia
necessidade de procurar companhia e convívio fora dela. Quando os seus números
se reduziram por causa de uma série de tragédias e desgraças era tarde de mais.
Tinham perdido o hábito de estabelecer contactos com desconhecidos.
Sílvia era, por isso, uma criança solitária e estranha,
que passava os dias dando longos passeios pelo imenso parque um pouco selvagem
que rodeava totalmente a casa familiar, mergulhada em sonhos e fantasias
inspirados pelos poucos livros de contos e romances que fora autorizada a ler.
Vivendo num mundo de adultos com ideias bastante antiquadas sobre a educação
adequada para uma rapariga, tudo ignorava do mundo que existia para lá dos
muros da propriedade, mundo esse que aliás nunca vira. O pouco que ouvia dizer
sobre ele também não era de molde a despertar-lhe a curiosidade ou o desejo de
o explorar, pelo que vivia para ali encerrada sem mesmo disso ter consciência.
Ele pertencia a uma das novas famílias recém-chegadas à
região por causa das indústrias ali instaladas após a construção da linha de
caminho de ferro. Desde muito pequeno frequentara creches e escolas, convivendo
com todo o tipo de crianças e adultos. De uma inteligência muito viva e
possuidor de uma curiosidade insaciável, encorajado e incentivado pelos adultos
que o rodeavam, o seu maior prazer consistia em partir à descoberta de coisas
novas e desconhecidas. Fossem pessoas, livros ou locais, perante algo que
descobria ou via pela primeira vez a sua satisfação era igualmente delirante.
Um dia de Verão em que, como de costume, partira à
descoberta do mundo, decidiu percorrer até ao fim o caminho que seguia ao longo
do muro da propriedade da família de Sílvia, circundando-a por completo e
separando-a de modo efetivo dos campos de cultivo que a rodeavam. Já o tentara
de outras vezes, mas por pouco tempo, pois o muro era tão alto que de fora
apenas se avistavam os topos de algumas árvores, o que tornava o passeio muito
pouco interessante. Desta vez, porém, decidiu persistir até acabar de o
explorar. As férias iam a mais de meio e já esgotara os locais a explorar, as
experiências a fazer, as pessoas a visitar, os livros a ler ou reler. Embora
sem grande interesse sempre seria um passeio novo. E havia, ainda, a hipótese remota
de conseguir avistar um dos misteriosos habitantes daquele lugar proibido, o
que valeria, só por si, o cansaço e o aborrecimento da longa caminhada. As
muitas histórias que circulavam sobre tão estranha família tinham despertado
nele uma imensa vontade de os ver e estudar, quase como se fossem animais ou
plantas exóticos e desconhecidos.
Durante uma boa hora caminhou sempre a passos largos, sem
nada encontrar que lhe pudesse despertar o mínimo interesse. De um lado tinha o
muro, que era totalmente liso e estava em muito bom estado, coberto aqui e ali
de trepadeiras densas e antigas. Do outro, simples campos lavrados, planos e
sem nada de diferente dos muitos outros campos daquela região. Já estava
arrependido de ter iniciado tal projeto e a tentação de voltar para trás
crescia a cada momento que passava. Só não o fez porque a ideia de largar uma
exploração a meio e sem nada ter descoberto o enchia de desgosto e relutância.
Mas sentia-se cada vez mais cansado e cheio de calor e de sede.
Tinha decidido parar no primeiro sítio propício para um
bem merecido descanso quando deparou com um pequeno ribeiro que cruzava o
caminho que vinha percorrendo. Este subia um pouco e a água passava-lhe por
baixo, espartilhada por um cano largo que atravessava o muro e desaparecia para
dentro da propriedade. Encantado com esta descoberta, saciou a sua sede e
sentou-se apoiando as costas no tão detestado muro, mesmo junto ao ponto em que
este era atravessado pelo cano.
Durante alguns minutos limitou-se a descansar, deleitando-se
com a vista dos campos à sua frente e com o voo preguiçoso de uma ou outra ave
cruzando os céus mesmo à sua frente. Mas a sua inquietação natural não lhe
permitia ficar totalmente quieto durante muito tempo. Olhando em redor em busca
de algo que o distraísse enquanto se recompunha do esforço despendido na longa
caminhada apercebeu-se de que um pouco mais adiante havia uma falha no muro.
Era um buraco de bom tamanho, situado rente ao solo, mas tão tapado por plantas
silvestres que se não se tivesse sentado naquela posição nunca se teria
apercebido da sua existência.
Cheio de curiosidade levantou-se para explorar melhor o
seu achado. Tendo o máximo cuidado para não se arranhar afastou algumas das
plantas e verificou que o buraco, de contornos irregulares, atravessava o muro
de lado a lado. Através dele conseguia ver uma zona de árvores, bem afastadas
umas das outras, e, para além delas, os muros brancos de uma grande casa. Era o
tão desejado interior da propriedade, até aí vedado aos seus olhares curiosos.
Ficou parado durante alguns momentos, hesitando sobre o
que havia de fazer. Entrar ou prosseguir o seu caminho? Lembrando-se, no
entanto, de que sempre ouvira dizer que naquela imensa propriedade viviam muito
poucas pessoas decidiu arriscar-se. Se fosse apanhado, tanto pior! A sua
família era bem conhecida e respeitada na região, assim como a sua curiosidade
e mania das explorações. Deste modo não poderia haver dúvidas quanto às suas
intenções se fosse apanhado em propriedade alheia. Para dizer a verdade, o
saber que iria fazer algo de proibido e, quem sabe, de perigoso, apenas serviu
para lhe aguçar a vontade de examinar mais de perto aquele local, o único que
não conhecia em toda uma vasta região.
Afastando cuidadosamente as plantas que lhe vedavam o
caminho, rastejou através de tão providencial abertura, mas mais por espírito
de precaução do que por necessidade: um adulto passaria à vontade, embora
dobrado em dois. Uma vez do outro lado endireitou-se e olhou com intensa
curiosidade para o espetáculo que se lhe deparava. O parque era muito belo,
semeado de árvores frondosas e de flores de todos os tipos. Estava um pouco
abandonado, com ervas a cresceram por todos os lados, o que só lhe aumentava o
encanto um pouco selvagem, pelo menos aos olhos de um rapazito que não percebia
o interesse que poderiam ter lugares demasiadamente arranjados e ordenados. O
local por onde entrara ficava em frente de uma das alas laterais da casa, pelo
que apenas se via, ao longe, uma parede lisa, cortada periodicamente por
janelas pequenas e retangulares. Quanto a pessoas, não se avistava nem uma.
Um tanto ou quanto a medo decidiu afastar-se do muro e
explorar um pouco mais aquele novo e maravilhoso local. Mas havia tantas coisas
belas para ver que em breve se esqueceu da posição equívoca em que se
encontrava. Correu, pulou, tocou em árvores, arbustos e flores com um enorme
prazer e total descontração. Esquecera-se completamente de que não fora
convidado para aquele local e que o melhor era não se demorar e não se
distanciar muito do muro e do buraco por onde entrara.
Por isso assustou-se imenso quando viu um pequeno vulto
surgir repentinamente à sua frente. Era Sílvia, que já há um bom bocado
observava as manobras daquele estranho rapaz que tão inesperada e ruidosamente
invadira os seus domínios, habitualmente tão desertos e silenciosos, e que
decidira ser altura de lhe falar. A sua primeira reação foi fugir o mais
depressa possível, mas não o fez de imediato, talvez por curiosidade em estudar
um pouco a primeira pessoa que ali encontrava e que tanto desejara ver. Mas
estava pronto a fazê-lo de um momento para o outro, sentindo a segurança íntima
de saber que seria decerto capaz de correr muito mais depressa do que aquela
criança que o defrontava. Sílvia era bem mais nova do que ele e tinha muito
menos experiência de contactos humanos mas tinha a vantagem de se saber em sua
casa e, portanto, dentro da razão. Conseguiu, pois, intimidar o rapaz durante o
tempo suficiente para travarem conhecimento.
Ao fim de alguns momentos de conversa já se sentiam como
velhos amigos. O rapaz estava habituado a falar com quem encontrava nos seus
longos passeios, quer fossem conhecidos ou estranhos, embora fosse a primeira
vez que invadia propriedade alheia o que não deixava de lhe causar uma certa
insegurança nas maneiras e no falar. Quanto a Sílvia, embora receosa por
natureza a novidade não lhe desagradava totalmente, pois vinha quebrar a
monotonia das tardes sempre iguais e solitárias e da ausência total de outras
crianças da sua idade com quem pudesse brincar ou trocar impressões ou ideias.
Embora fossem muito diferentes no feitio e nos gostos em breve descobriram que
gostavam de falar um com o outro. Ou seja, ele falou, contando-lhe mil
pormenores dos seus passeios, família e amigos. Ela limitou-se a ouvi-lo com
grande atenção fazendo uma ou outra pergunta ou comentário, mas sem nada dizer
sobre a sua vida ou interesses. O que agradou a ambos.
Passado algum tempo de ameno convívio o rapaz lembrou-se
que era mais do que tempo de regressar a casa, uma vez que ainda tinha um longo
caminho a percorrer e aproximava-se a hora do jantar. Antes de partir, porém,
combinaram encontrar-se de novo no dia seguinte, a meio da tarde. O rapaz
preferiria um convite a sério que lhe permitisse entrar pelo portão principal,
abertamente e sem embustes, mas Sílvia tinha a certeza de que a família nunca
lhe permitiria o convívio com um intruso recém-chegado à região e que ainda por
cima invadira a até então inviolável propriedade da família. Convenceu-o, por
isso, de que seria bem mais fácil e conveniente continuar a utilizar o buraco
do muro e que, uma vez que tinham a autorização dela, as suas idas e vindas
passavam a ter o selo da legitimidade. E assim passou a ser.
Durante o resto daquele Verão viram-se quase todos os
dias, passando tardes inteiras na companhia um do outro, mas sem nunca saírem
dos limites do parque. O rapaz bem tentou convencê-la a ir com ele visitar os
seus sítios favoritos, ou, pelo menos, a dar alguns passos no caminho que
circundava o muro, mas Sílvia recusou sempre. Já se sentia muito feliz por
parte do mundo exterior ter vindo ter com ela, trazendo-lhe novas histórias e
diversões. Não via qualquer necessidade de sair para ver por si própria coisas
que, suspeitava-o fortemente, eram bem mais interessantes quando experimentadas
por interposta pessoa, sem perigos ou incómodos de qualquer espécie.
Quando recomeçaram as aulas deixaram de se ver tão
amiudadamente, uma vez que Sílvia estudava em casa com a ajuda de uma tia idosa
que lhe ensinava o pouco que achava correto para a educação de uma rapariga de
boas famílias. Só um dia por outro é que ele conseguia escapar às suas pesadas
obrigações durante algumas horas, correndo de imediato para junto da amiga que
encontrava vagueando pelo parque, como se o esperasse desde sempre. Sentiam
saudades um do outro, mas ela bem mais do que ele pois na sua ausência nada
tinha que a distraísse. Enquanto que o rapaz tinha novos estudos e novos
colegas para explorar, Sílvia tinha de se contentar com as recordações do tempo
passado em conjunto e do muito que ele lhe tinha contado.
Mal as férias começaram imediatamente voltaram ao seu já
velho hábito de passarem juntos todas as tardes, fizesse sol ou chuva. Se o
tempo estava bom, passeavam pelo parque ou sentavam-se muito simplesmente à
sombra de uma das inúmeras árvores frondosas ali existentes. Se o tempo estava
desagradável ou chuvoso, refugiavam-se num pavilhão meio arruinado existente a
um canto do jardim, outrora local privilegiado de encontros e chás e onde agora
ninguém entrava. Mas mantinham-se sempre bem longe da casa da família de Sílvia
de modo a evitarem o perigo de serem vistos por uma das janelas, embora entre
eles continuassem a manter a ficção de que os seus encontros nada tinham de
clandestino ou furtivo.
E assim se estabeleceu o padrão dos anos que se seguiram.
O rapaz continuava a descobrir o mundo e os seus mistérios, transmitindo depois
tudo o que vira, vivera ou pensara à companheira que o aguardava no jardim
murado, sempre paciente e igual a si mesmo, como que parado no tempo. Quanto a
Sílvia, guardava cuidadosamente na memória tudo o que ele lhe contava, quer o
entendesse ou não, para lhe servir de alimento e consolo durante as longas
horas em que se não viam. Nunca sentiram a mínima necessidade de inventar jogos
ou histórias que os ajudassem a passar o tempo de que dispunham para estar
juntos. A vida dele chegava bem para ocupar ambos.
E durante todo esse tempo nunca o rapaz conheceu ou
sequer avistou qualquer dos parentes de Sílvia ou os pais dele souberam da
estranha amizade de férias que o filho arranjara. Viviam realmente num mundo só
deles, alheios a tudo o que os rodeava.
Os anos passaram e o rapaz teve de partir para uma outra
cidade a fim prosseguir os seus estudos. As separações eram agora mais longas,
chegando a durar meses de cada vez, mas a sua relação permanecia igual ao que
sempre fora. Sílvia continuava a viver totalmente isolada do mundo exterior, e
a sua solidão aumentava cada vez mais à medida que os parentes mais idosos iam
morrendo. Por fim, ficou a viver sózinha com uma velha tia e com meia dúzia de
criados, já bastante idosos e sem quaisquer relações exteriores. Quanto ao
rapaz, embora no seu novo meio conhecesse muita gente interessante e muitas
raparigas bonitas e fascinantes, o seu espírito tinha sempre presente a
estranha rapariguinha que um dia conhecera ao invadir propriedade alheia e que
tão grande lugar adquirira na sua vida.
Acabados os estudos, regressou finalmente a casa a fim de
se integrar na empresa paterna que um dia esperava vir a dirigir. Sílvia era já
uma mulher, bela, calma, encantadora e muito mais fascinante do que qualquer
das raparigas que conhecera durante os longos e frutuosos anos da sua ausência.
Vestia sempre de escuro, quer por gosto quer por necessidade provocada pelos
numerosos lutos que sofrera e os longos vestidos um tanto ou quanto antiquados
que usava faziam realçar ainda mais a sua estranha e pálida beleza e o ar um
pouco distante que lhe era habitual. Caminhava com uma elegância suave e calma,
quase como se pertencesse a uma outra realidade, mais leve e etérea do que o
barulhento mundo que se espraiava para lá dos altos muros do parque. Mas
continuava a escutá-lo com a mesma atenção fixa e apaixonada dos seus tempos de
criança, parecendo estar sempre disponível para o receber e nunca se queixando
das ausências e demoras a que as suas obrigações o obrigavam. A única alteração
nos seus hábitos era o terem agora livre acesso à mansão que durante tantos
anos apenas pudera admirar por fora.
O rapaz descobriu, então, que a simples amizade dos seus
tempos de infância e juventude se transformara em algo muito diferente, mais
profundo e exigente. Estava verdadeiramente apaixonado por ela e mal conseguia
suportar a ideia de um dia a vida os poder separar. Por sua vontade passariam
juntos todos os momentos do dia, e era com enorme relutância que a deixava a
fim de cumprir os seus deveres profissionais, sociais ou familiares. Decidiu-se,
finalmente, a falar com os pais que, embora espantados, nada tinham a opor aos
desejos do filho, apesar de não conhecerem ainda a rapariga que o conquistara
de forma tão completa. O mais difícil foi convencer Sílvia, a quem a perspetiva
de qualquer mudança enchia de pavor, da validade dos seus planos para um futuro
em conjunto. Teve de lhe prometer que ficariam a viver na grande propriedade
murada, não tendo ela qualquer necessidade de sair para o exterior, nem mesmo
para a cerimónia do casamento.
Só à custa destas garantias conseguiu, por fim, a
anuência, embora relutante, de Sílvia. Não por esta não lhe ter amor ou uma
grande vontade de estar com ele, mas muito simplesmente porque, devido às
muitas perdas que sofrera, tinha receio de tudo o que pudesse alterar o mundo
artificialmente perfeito que criara no seu espírito para ambos. Ficaram
finalmente noivos numa tarde de meados de Dezembro, mal iluminada por um pobre
sol muito pálido e frio. Para selar a sua promessa deu-lhe um pesado anel
antigo que descobrira num antiquário, com um belo rubi rodeado de três pequenos
diamantes, tudo engastado num aro de ouro velho, muito bem trabalhado com
arabescos estranhos e complicados e que lhe pareceu ser o complemento perfeito
para a figura delicada e um pouco gótica da sua noiva. O seu desenho antigo e
barroco agradou sobremaneira a Sílvia, pois fazia-lhe recordar os contos fantasticamente
românticos que adorava ler enquanto aguardava a sua chegada. No seu espírito
atribuiu-lhe de imediato um passado fabuloso e, até, certos poderes mágicos. O
casamento seria no fim da Primavera, altura em que os pais do rapaz conheceriam
finalmente a noiva do filho. Deixaram-se já o sol se punha, depois de se terem
despedido repetidas vezes e de outras tantas terem voltado atrás para trocarem
mais um olhar ou um comentário apaixonado.
A tragédia deu-se nessa mesma noite, quando já todos
dormiam na povoação vizinha, tornando-se impossível descobrir a sequência exata
dos factos uma vez que ninguém sobreviveu. Era, contudo, opinião geral que a
velha tia, sentindo frio naquela desagradável noite de início de Inverno,
atiçara demasiado o fogo na lareira do seu quarto, provocando o incêndio
devastador que consumira toda a casa e os seus poucos habitantes. A destruição
foi total. Paredes, telhado, móveis, objetos, tudo ruiu e foi consumido pela
terrível deflagração. Os ossos carbonizados que se encontraram tiveram de ser
enterrados em campas assinaladas de um modo um tanto ou quanto arbitrário, pois
foi impossível obter uma identificação positiva de quem quer que fosse. A única
peça encontrada intacta, como que por milagre, foi o anel de noivado de Sílvia,
descoberto casualmente meio enterrado debaixo de uma pedra totalmente
enegrecida pelas chamas.
O rapaz ficou inconsolável e quase louco de desgosto.
Durante meses e meses passou todo o seu tempo livre vagueando pelos restos do
parque, rondando em torno das ruínas da casa, afastando pedras e restos
carbonizados de todos os géneros à procura nem mesmo ele sabia bem de quê.
Afastou-se por completo do convívio dos amigos e da sociedade, tornando-se um
verdadeiro recluso que mal dizia meia dúzia de palavras em todo o dia. O seu
interesse pelo mundo e pelos acontecimentos que nele ocorriam desapareceu por completo
e era só com grande dificuldade que conseguia abandonar a sua obsessão durante
o tempo suficiente para gerir o negócio que um dia herdaria.
Mandou alargar o anel que dera a Sílvia naquele dia
fatídico, de modo a poder usá-lo no dedo mínimo da mão esquerda. Não era de
modo algum o tipo de anel próprio para um homem, mas trazia-o sempre consigo
embora não lhe desse qualquer conforto. Muito pelo contrário, só servia para
lhe recordar continuamente a perda tremenda que sofrera, trazendo-lhe à mente o
aspeto encantador de Sílvia no momento em que lho colocara no dedo, a sua
emoção transbordante e os projetos de futuro que então pareciam prestes a
cumprir-se. Adquiriu a propriedade murada que frequentara às escondidas durante
tantos anos mas recusou-se a efetuar quaisquer obras ou trabalhos de
recuperação. Nem mesmo permitiu que de vez em quando limpassem o parque, de
modo a evitar que fosse totalmente invadido pelas ervas daninhas.
Uma noite em que, como de costume, vagueava sem rumo pelo
parque agora abandonado pareceu-lhe ver uma luz que brilhava por entre as
árvores na direção onde ficava a antiga casa. Ao investigar mais de perto ficou
espantado ao ver o edifício intacto em todo o seu esplendor de outrora. Um
tanto ou quanto aterrorizado e cada vez mais confuso, subiu os dois degraus
largos do patamar, abriu a porta da frente e penetrou no que lhe pareceu ser
uma sólida casa, mobilada tal como a conhecera antigamente. E ali estava
Sílvia, a sua Sílvia tão apaixonadamente amada, bem viva e de boa saúde, com o aspeto
exato de quando a vira pela última vez. Sentiu-se de tal modo atordoado com o
desenrolar inesperado dos acontecimentos que nem pensou em protestar quando ela
lhe pegou na mão, levando-o para a sala onde tantas vezes tinham tomado chá
após o seu regresso definitivo a casa. Passaram a noite a conversar e a rir
como costumavam fazer, sem nunca aludir à terrível catástrofe que lhe parecia
agora não ter passado de um estranho e incompreensível pesadelo.
Ao deixá-la, já o sol nascia, prometeu voltar mal ficasse
livre das obrigações profissionais que o
obrigavam agora a partir bem contra os seus desejos. Ao regressar ao fim da
tarde já não encontrou a casa, apenas os escombros a que já se habituara e de
que conhecia cada recanto, cada pedra enegrecida, cada pedaço carbonizado.
Ficou desesperado, sem saber o que pensar. Depois de muitas horas em que pensou
enlouquecer ocorreu-lhe, de repente, que na véspera fizera um ano exato sobre o
seu noivado e a morte de Sílvia. Não percebia a relação da data com a sua
alucinação da noite anterior, mas o facto de se ter lembrado dessa conexão
acalmou-o um pouco.
Talvez houvesse algo na data que lhe permitira rever o
passado com aquele realismo verdadeiramente espantoso. Ou quem sabe se a
intensidade do seu amor e do seu desespero possibilitara o regresso de Sílvia
ao mundo dos vivos durante uns breves momentos. Se assim fosse, que fazer para
repetir a experiência? Como gostaria de voltar a viver essas poucas horas todas
as noites! Mesmo que tudo não passasse de uma alucinação do seu pobre cérebro
sobrecarregado de tristeza e desgosto preferia endoidecer por completo a
continuar a viver sem a sua Sílvia.
Mas por mais que tentasse, as ruínas permaneceram apenas
ruínas, noite após noite, tal como tinham ficado desde o incêndio, e ninguém
apareceu a povoá-las até se ter passado de novo um ano sobre a data do noivado.
Nessa noite, mais uma vez a casa surgiu a seus olhos tal como a vira daquela
última vez, tendo lá dentro uma Sílvia intacta e maravilhosa, que ostentava no seu
fino dedo o pesado anel que ele agora usava continuamente. De novo conversaram
e riram toda a noite, sem qualquer alusão à tragédia que destroçara as suas
vidas ou à impossibilidade do momento presente.
E o mesmo aconteceu ano após ano. Na noite do aniversário
do trágico acontecimento que lhe destruíra a vida era-lhe dado reviver com toda
a clareza tanto a casa como a noiva que perdera. Uma noiva sempre bela e que
não envelhecia, permanecendo parada no tempo enquanto que a ele começavam a
pesar os anos, enchendo-o de rugas e de cabelos brancos, curvando-lhe os ombros
e dificultando-lhe os movimentos. Vivia agora no receio de que vendo-o assim,
tão velho e acabado, Sílvia deixasse de o amar, preferindo à realidade as
recordações do homem que um dia fora.
Mas nunca se atreveu a permanecer junto dela após o
nascer do sol, por receio do que pudesse acontecer quando tudo voltasse ao seu aspeto
real. Só esperava que um dia a morte o rejuvenescesse e o levasse
permanentemente para dentro daquela casa, onde poderia passar a eternidade ao
lado de Sílvia, a única mulher que alguma vez amara.
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