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domingo, 19 de janeiro de 2020

Estigmas



Talvez não devesse ter suscitado isso. Tenho consciência da desordem que provoquei. Mesmo que entalado por anos, não podia ter partido para a irresponsabilidade – assim como ele sempre o fez. Fiz um propósito, de não me misturar com a laia dos Borges. Não sou desse sangue sujo. Renego, veementemente. Lutei toda a minha vida para sair do estigma de ser filho de quem sou; e ser um igual. Agora, me sinto como um coco seco boiando em um rio caudaloso. Não sei se bem ou mal.
O coração é um poço de desejos, de contrações irresistíveis, à procura de luz. Fui me esgueirando, para sobreviver, desde quando mãe morreu. Silvia. Silvia Brandão. Uma mulher que veio e partiu do nada. Sem admitir, claro, o velho ficou em pé de guerra com a consciência; um querer-dominação velado, doentio, criminoso. Mas, antes disso, fez mãe sofrer demasiado. Quem sabe, e é esse instinto que me atormenta, não foi ele quem a matou de desgosto? Simplesmente a desprezou. Era a criada. Não, burro de carga mesmo. Sem voz nem vez. Foi angariando a dor; avultando em seu peito, a ponto de arfar a morte, pouco a pouco.
Jerônimo mexia com “acertos”; assim qualificava. Mãe já se afobava por isso, palavras de tia Luzia. Eu, muito pequeno, ainda assim sentia esse rarear de vida. Abafava-me, contorcia-me. Éramos dois. Jerônimo, do mundo; dos Borges. Foi num desses acertos que armou a tocaia. Resolveu apagar um antigo parceiro, o Dionísio, com um tiro seco na nuca, dentro de nossa casa. Falava para quem quisesse ouvir que mãe era puta, safada; que seria a próxima; que não olhasse para o lado, se quisesse estar viva. Condenava-a por ter gerado aquele mal-estar. Para Jerônimo, mãe tinha um caso com Dionísio. Talvez soubesse que não tinham nada; mas, como desejava suprimir a concorrência nos serviços, e para deixar vivo o aviso à mãe, decidiu eliminar o sujeito.
Frágil como um beija-flor – aliás, cheirava a rosas; leite de rosas, mais especificamente –, mãe amofinava com o tormento e com a violência da chegada de Jerônimo. Entrava, porta adentro, para dizer, aos gritos, que um dia ia pegá-la de surpresa; que se preparasse, que o coro ia comer; que a esfolaria viva e deixaria a carniça para os urubus comerem. Nas investidas, dava-lhe golpes fortíssimos, com o que aparecesse pela frente, panelas, cadeiras e mesas; que também infligiam a mim, eu com cinco ou seis anos.
Vi mãe se despregar da vida, literalmente. Não tendo acesso a médico, ou a qualquer tipo de assistência, prisioneira que era, sem conseguir respirar, por seguidas gripes, problemas de respiração, e uma progressiva e severa tuberculose, confirmada depois pelo laudo cadavérico; sem poder ver sequer um raio do sol, respirar ar puro, agonizou nos meus braços, enquanto lhe dava água com bolacha, pensando eu, ingênuo, que padecia de fome ou fraqueza.
Dia 12.05.2008 mãe morreu. E Jerônimo sentiu por não ter pegado ela no flagra. Vociferou que ela fugia, arredia, “de suas obrigações”. Chamou-a de covarde, ingrata. Enquanto eu ouvia as barbaridades, me penitenciava por não ter feito mais, sem entender. O velho ainda tentou me seduzir para o poder dos Borges; que eu seria famoso e respeitado; seguiria a sina dos grandes homens da região; que era um tratado que eu deveria respeitar; que não iria me forçar, mas que tinha um prazo, quinze anos, idade em que saberia empunhar faca, revólver, espingarda. Veio tia Luzia e me resgatou, escondido numa mala, do destino assombroso que se desenhava. Fomos embora para São Paulo.
O velho hoje é evangélico. Disse que pediu perdão a Deus, “que é Pai misericordioso”. Que eu, humano, devia perdoar. Que eu não devia guardar rancor de um homem maluco, criado no meio dos Borges; sem alternativa, teve de ganhar a vida na justiçagem. Que eu o perdoasse para ter paz. E aí, justo nesse ponto, quando quis usar de suas artimanhas para me amarrar, sentir remorso, estourei o horror que era ser seu filho; ter seu sangue. Que ele havia matado minha mãe de desgosto; de seguidas moléstias, físicas e da alma. Que nos tratou como animais, enquanto ficamos sob seu jugo. Que ele merecia morrer da morte mais penosa. Que eu não teria nada a ver com isso. Saí, e o velho continuou falando; resmungando baixo, cara de coitado, soturno.
Poucos dias depois, a notícia: Jerônimo foi tragado para as profundezas do inferno. Viveu e não deu conta de nada. Nunca foi penalizado pelos seus crimes, imensos. Houve a condescendência de um Estado falho; que nunca chegou àquele lugar, no interior do interior do Ceará. Abandonou-nos à sorte. Todos sabiam, mas ninguém se metia. Tinham medo, talvez. Mais provável que não estivessem nem aí. Admitiam uma suposta profissão de “justiceiro”. Seguro, o tinhoso levantava ares de poder, provocava respeito. Nem padre, nem delegado, nem prefeito, nem nada. Todos aos seus pés.
Falei tudo e talvez não devesse ter falado. Mas não me penalizo mais. Pelo menos me esvaziei. De tudo, restou o cheiro de rosas, que hoje me guia pelos caminhos incertos da vida; longe, muito longe dos estigmas do passado.

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