Talvez não devesse ter
suscitado isso. Tenho consciência da desordem que provoquei. Mesmo que entalado
por anos, não podia ter partido para a irresponsabilidade – assim como ele sempre
o fez. Fiz um propósito, de não me misturar com a laia dos Borges. Não sou
desse sangue sujo. Renego, veementemente. Lutei toda a minha vida para sair do
estigma de ser filho de quem sou; e ser um igual. Agora, me sinto como um coco
seco boiando em um rio caudaloso. Não sei se bem ou mal.
O coração é um poço de
desejos, de contrações irresistíveis, à procura de luz. Fui me esgueirando,
para sobreviver, desde quando mãe morreu. Silvia. Silvia Brandão. Uma mulher
que veio e partiu do nada. Sem admitir, claro, o velho ficou em pé de guerra
com a consciência; um querer-dominação velado, doentio, criminoso. Mas, antes
disso, fez mãe sofrer demasiado. Quem sabe, e é esse instinto que me atormenta,
não foi ele quem a matou de desgosto? Simplesmente a desprezou. Era a criada. Não,
burro de carga mesmo. Sem voz nem vez. Foi angariando a dor; avultando em seu peito,
a ponto de arfar a morte, pouco a pouco.
Jerônimo mexia com
“acertos”; assim qualificava. Mãe já se afobava por isso, palavras de tia Luzia.
Eu, muito pequeno, ainda assim sentia esse rarear de vida. Abafava-me,
contorcia-me. Éramos dois. Jerônimo, do mundo; dos Borges. Foi num desses
acertos que armou a tocaia. Resolveu apagar um antigo parceiro, o Dionísio, com
um tiro seco na nuca, dentro de nossa casa. Falava para quem quisesse ouvir que
mãe era puta, safada; que seria a próxima; que não olhasse para o lado, se
quisesse estar viva. Condenava-a por ter gerado aquele mal-estar. Para
Jerônimo, mãe tinha um caso com Dionísio. Talvez soubesse que não tinham nada;
mas, como desejava suprimir a concorrência nos serviços, e para deixar vivo o
aviso à mãe, decidiu eliminar o sujeito.
Frágil como um beija-flor
– aliás, cheirava a rosas; leite de rosas, mais especificamente –, mãe amofinava
com o tormento e com a violência da chegada de Jerônimo. Entrava, porta
adentro, para dizer, aos gritos, que um dia ia pegá-la de surpresa; que se
preparasse, que o coro ia comer; que a esfolaria viva e deixaria a carniça para
os urubus comerem. Nas investidas, dava-lhe golpes fortíssimos, com o que
aparecesse pela frente, panelas, cadeiras e mesas; que também infligiam a mim, eu
com cinco ou seis anos.
Vi mãe se despregar da
vida, literalmente. Não tendo acesso a médico, ou a qualquer tipo de assistência,
prisioneira que era, sem conseguir respirar, por seguidas gripes, problemas de respiração,
e uma progressiva e severa tuberculose, confirmada depois pelo laudo
cadavérico; sem poder ver sequer um raio do sol, respirar ar puro, agonizou nos
meus braços, enquanto lhe dava água com bolacha, pensando eu, ingênuo, que
padecia de fome ou fraqueza.
Dia 12.05.2008 mãe morreu.
E Jerônimo sentiu por não ter pegado ela no flagra. Vociferou que ela fugia,
arredia, “de suas obrigações”. Chamou-a de covarde, ingrata. Enquanto eu ouvia
as barbaridades, me penitenciava por não ter feito mais, sem entender. O velho
ainda tentou me seduzir para o poder dos Borges; que eu seria famoso e
respeitado; seguiria a sina dos grandes homens da região; que era um tratado
que eu deveria respeitar; que não iria me forçar, mas que tinha um prazo,
quinze anos, idade em que saberia empunhar faca, revólver, espingarda. Veio tia
Luzia e me resgatou, escondido numa mala, do destino assombroso que se
desenhava. Fomos embora para São Paulo.
…
O velho hoje é
evangélico. Disse que pediu perdão a Deus, “que é Pai misericordioso”. Que eu,
humano, devia perdoar. Que eu não devia guardar rancor de um homem maluco,
criado no meio dos Borges; sem alternativa, teve de ganhar a vida na
justiçagem. Que eu o perdoasse para ter paz. E aí, justo nesse ponto, quando
quis usar de suas artimanhas para me amarrar, sentir remorso, estourei o horror
que era ser seu filho; ter seu sangue. Que ele havia matado minha mãe de
desgosto; de seguidas moléstias, físicas e da alma. Que nos tratou como
animais, enquanto ficamos sob seu jugo. Que ele merecia morrer da morte mais
penosa. Que eu não teria nada a ver com isso. Saí, e o velho continuou falando;
resmungando baixo, cara de coitado, soturno.
Poucos dias depois, a
notícia: Jerônimo foi tragado para as profundezas do inferno. Viveu e não deu
conta de nada. Nunca foi penalizado pelos seus crimes, imensos. Houve a
condescendência de um Estado falho; que nunca chegou àquele lugar, no interior
do interior do Ceará. Abandonou-nos à sorte. Todos sabiam, mas ninguém se
metia. Tinham medo, talvez. Mais provável que não estivessem nem aí. Admitiam
uma suposta profissão de “justiceiro”. Seguro, o tinhoso levantava ares de
poder, provocava respeito. Nem padre, nem delegado, nem prefeito, nem nada. Todos
aos seus pés.
Falei tudo e talvez não
devesse ter falado. Mas não me penalizo mais. Pelo menos me esvaziei. De tudo,
restou o cheiro de rosas, que hoje me guia pelos caminhos incertos da vida;
longe, muito longe dos estigmas do passado.
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