Abraão
nunca aceitara bem aquele filho nascido fora de tempo. Quando o
Senhor lhe anunciou que ia ser pai, Sara já tinha alguma idade. Como
podia ainda gerar descendência?
Sara
tivera uma série de abortos espontâneos. O ambiente insalubre em
que toda a gente vivia no século XXI, não ajudava. A carne estava
carregada de hormonas, o peixe, de mercúrio e outros venenos, as
verduras, de agrotóxicos e chumbo dos fumos de escape. Aquela estada
em terra estrangeira também fora traumática. Fora vítima de
violação e sabe-se lá se apanhara alguma doença. Depois de todas
as provações, e já sem esperanças, veio aquela voz pausada e
grave anunciar-lhe o que parecia impossível:
«Corta
o teu prepúcio e daqui a um ano serás pai» — ordenara a voz do
Senhor, em tom assertivo, vinda do telemóvel desligado.
Abraão
não percebeu porque é que o prepúcio vinha ao caso — embora
tivesse lido umas coisas sobre DST na Internet
—, mas obedeceu e nasceu Isaac. Inacreditável; o Senhor prometera
e cumprira, não havia dúvidas. Quase tão inacreditável foi a
criança nascer com aqueles caracóis ruivos que não existiam na
família. Por isso, Abraão sempre olhou o filho de través. «Crê
e viverás!» — ameaçou Ele, certa vez, em voz austera vinda do
robô de cozinha. Isso foi fácil. Abraão tinha vontade de
acreditar.
A
psicologia já vai tentando explicar — sem grande aceitação —,
como é que o imaginado toma conta do racional e docilmente o conduz
pelos meandros de efabulações puramente mentais, como se fossem
eventos acontecidos. O pensamento desejoso, que entretanto foi
dominando Abraão, teria talvez origem na sua convicção de que
Isaac não era seu filho, e aliciava-o com a possibilidade de ele ser
filho do Senhor. Mais valia que Isaac fosse filho de um ser
sobrenatural, do que de algum vizinho dissimulado. Ser trapaceado
nesta matéria por alguém próximo ou amigo de casa era intolerável.
Com
o tempo, nem tal estratagema mental concedia ainda descanso. Já
andava Isaac pelos onze anos quando o Senhor, usando a voz modulada
de Celestino, na aplicação de GPS do telemóvel, comunicou a ordem
fatídica:
«Vai
à Peninha, constrói um altar sobre a Pedra da Visão e imola o teu
filho Isaac.»
Abraão
não resistiu muito, nem perguntou por quê. Se era o Senhor que
mandava… Como sempre, a ordem não o constrangia e até vinha ao
encontro de um pensamento acarinhado, mas mantido íntimo, e
explicável talvez por essa animosidade escondida para com Isaac. Mas
não deixava de ser uma ordem. Mandava-o matar o filho, num ritual de
adoração comandado pelo próprio Senhor e não iria contra ela. Nem
contra essa, nem contra nenhuma outra.
Dias
depois, muito cedo, Abraão obrigou o filho a sair da cama e a
acompanhá-lo. Numa mochila, meteu uma faca de cozinha, um isqueiro
piezoelétrico e uma caixa de acendalhas ecológicas. Na bagageira do
Jeep, já tinha uma saca de lenha do Aki.
Meio
ensonado, Isaac demorou a estranhar a excursão matinal, até porque
o pai, não sendo madrugador, de vez em quando tinha assim repentes
inesperados.
«A
400 metros, entre na rotunda e saia na segunda saída» — dirigia
Celestino, do telemóvel que Abraão fixara no interior do
para-brisas.
— Aonde
vamos, pai?
Abraão
não respondeu. Não gostava de ter de se explicar.
— Pai!
— insistiu Isaac.
— Tá
calado! Vamos ver o teu avô ao lar da Azóia. Mas primeiro passamos
na Peninha, para ver a vista.
— A
esta hora? Com este nevoeiro? Porque é que a mãe não veio?
Seguiam
então pela estrada secundária junto a Barcarena, quando Isaac deu
um grito:
— Cuidado!
Pai!
— O
que foi? — assustou-se Abraão.
— A
ponte não está lá… Para, pai!
«A
200 metros vire à esquerda e entre na ponte!» — comandava
impávido Celestino.
— Estás
parvo? É do nevoeiro! Não ouviste o que o Senhor disse? — ralhou
Abraão, abrandando.
— E
tu não viste as placas? Para!
— Arre,
que é chato! Queres saber mais do que o Senhor?
— Para,
já! — gritou o miúdo, muito mais alto do que alguma vez gritara
com o pai.
Abraão
parou. Através da neblina matinal, nada de anormal parecia haver com
a ponte. Saíram do carro e aproximaram-se do que devia ser a
balaustrada. Afinal, era só um resto. Antes, uma grande placa
horizontal derrubada por algum carro por sobre uns blocos de cimento
esbranquiçado pela geada avisava: “Ponte destruída. Utilize a
variante de Leceia”. Aproximaram-se mais. Lá em baixo a água
rosnava irada e inquietante.
— Tás
a ver pai, eu não te disse? Havia placas de perigo desde lá atrás.
— Mas
o Senhor…
— O
GPS? É uma máquina, pai! Nem sequer está online.
E há quanto tempo não o atualizas? Queres que eu te ensine a tirar
isso da net?
— Está
atualizado — resmungou Abraão, desconfortável. — Tem-me dado
bons conselhos. Confio mais no Celestino, como lhe chamas, do que nos
mapas.
— Ia-nos
tramando de vez...
«Vire
à esquerda e entre na ponte!» — continuava Celestino.
Ajustado
o itinerário e ultrapassado o conflito motivado pelas condições
rodoviárias, pai e filho seguiram o seu destino, sob o conselho
sábio de Celestino:
«O
abate deve ser rápido e a sangria total, conforme o procedimento
ritual». Abraão atrapalhou-se, mas Isaac não pareceu aperceber-se.
Ia entretido com o seu próprio smartphone,
mas atento a se o pai não se enganava no caminho.
Em
menos de meia hora, passaram o Guincho e chegaram à Peninha. O tempo
continuava encoberto, mas já se avistavam pedaços da costa e do
Cabo da Roca. Abraão pegou na mochila e na saca de lenha e chamou
Isaac. Sobre uma rocha que culminava um esporão do barrocal, e
depois de uns gestos rituais que aprendera, Abraão dispôs os
cavacos sobre as acendalhas e começou a acender o lume.
— Pai,
o que estás a fazer? Uma fogueira aqui, sem a mãe, à hora do
pequeno almoço... E o entrecosto? O que se passa contigo? —
disparou Isaac, apreensivo.
— É
um sacrifício, uma ordem do Senhor. Não posso desobedecer.
— Pai,
foste outra vez aos saca-dízimos?
— Não,
rapaz, foi o Senhor mesmo que me disse para te imolar — anunciou
Abraão em voz grave, enquanto tirava a faca da mochila.
Embora
aterrorizado, Isaac acionou as três teclas de emergência-criança
do seu smartphone,
que ele sabia que enviavam um pedido de socorro e as coordenadas do
aparelho.
— Vais-me
matar? O teu filho? — choramingou.
— Tu
não és meu filho. Basta olhar para essas melenas vermelhas!
Em
estupefação, Isaac hesitava entre tentar fugir e argumentar. Nesse
momento, o seu telemóvel começou a vibrar. Abraão arrancou-lho das
mãos e atirou-o para a ribanceira de penedos.
Isaac
nunca tinha visto o pai assim. Virou-se para fugir, mas a manápula
do pai agarrou-o.
— Larga-me,
pai! Larga-me!
— Já
disse que não sou teu pai. Tá quieto! Eu tenho de oferecer este
sacrifício ao Senhor, para que eu encontre graça diante d’Ele, me
proteja e me torne feliz.
— Tás
louco, pai. HELP!
Que conversa é essa? Essa voz do telemóvel são só gravações.
Não é nenhum sábio, nenhum deus — gritava Isaac, tentando ganhar
tempo como única saída do labirinto do medo. — Os primitivos é
que sacrificavam animais e pessoas. Pensavam que assim tinham mais
caça ou colheitas. Estamos no século XXI, pai!
— Não
quero ouvir mais tretas desta sociedade que não respeita os valores
da tradição e da família — ripostou Abraão, enquanto arrastava
o filho para junto da fogueira que já ardia bem. Tolheu-lhe os
movimentos e dobrou-lhe o pescoço sobre a parte mais lisa da pedra.
Nesse
momento, ouviu-se o sibilar característico de um drone, que deu uma
volta larga, mas rápida, sobre os penhascos da Peninha. Era de tipo
octogonal, tinha envergadura de um metro e apresentava câmaras e
vários outros instrumentos apontados para baixo. Um altifalante
berrou:
«Largue
a criança. Já!»
Abraão
não esperava esta interferência. Tentou prosseguir. O altifalante
do drone, que agora pairava a uns quinze metros sobre o grupo, voltou
à carga:
«Pare
já ou disparamos!»
— Larga-me,
pai! Cuidado! Eles disparam! — gritou Isaac.
Abraão
levantou a faca, mas, antes de desferir o golpe fatal no pescoço de
Isaac, foi atingido por um dardo junto à clavícula. O efeito do
entorpecente foi imediato. Deixou cair a faca, oscilou uns segundos e
afundou-se no chão pedregoso. Isaac afastou-se do volume do pai,
aliviado, mas meio confuso. Chegou-se à beira do rochedo e espreitou
lá para baixo, tentando localizar o smartphone.
Quinze minutos depois, chegou a Polícia e o Socorro médico. Duas
estações televisivas de atualidade criminal chegaram logo a seguir.
Joaquim
Bispo
*
Por
seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 104
a 107 — a 18ª edição (novembro/dezembro de 2019) da Revista
LiteraLivre, em formato e-book:
*
Imagem:
Giovanni Battista Tiepolo, O
Sacrifício de Isaac,
1726–1729.
Afresco,
400 cm x 500 cm [?],
Palácio Patriarcal, Udine, Itália.
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* *
12 comentários:
Caro Joaquim Bispo,
Que prazer ler esta versão moderna de uma passagem do antigo testamento! Atenção ao falso deus, por mais que a expressão possa ser um pleonasmo!
Um abraço,
«Atenção ao falso deus, por mais que a expressão possa ser um pleonasmo!» — Rui, que maneira inteligente de dizer as coisas!
Abraço!
Fabuloso!, foi a palavra que me ocorreu. E, de facto, as boas fábulas são intemporais. Algumas até deixam escola e chegam a gerar negócio. Há que tentar não perder o fascínio pela fábula em si que, nas mãos de um exímio domador de palavras, ganha esta leitura deliciosa. Muito bom!
Fabuloso” só porque adapta uma história bíblica com o magnetismo das fábulas, mas se o texto agrada ao leitor…
Obrigado, Lia!
O "hitchcok das Casas novas", continua em forma. Não me surpreender, pois, eu já sabia que ele era assim. Essa de ouvir uma voz, vinda de um telemóvel desligado ...
maneldalcains.
Ouvir vozes está muito democratizado. Cada um ouve-as de onde quer.
Abraço!
Prezado Joaquim Bispo
Tive já ocasião de lhe transmitir o meu muito agrado pelas suas crónicas, bem escritas e de tema cativante.
Esta, então é do melhor, ligar temas distantes milhares de anos.
O meu apreço leva-me a colecionar as suas crónicas em pasta aparte no arquivo do computador, esperando continuar.
Uma observação: porquê POSTAR um comentário e não escrever?
É como dizer PRINTAR em vez de imprimir, etc.
Obrigado por este tão forte elogio, Incógnito!
Acerca de “postar”, a força do Inglês e alguma dificuldade de dizer o mesmo em Português, com poucas palavras, leva a estes anglicismos. De qualquer modo não fui eu que criei o “site”.
Abraço!
Incógnito?
Estava crente que o meu endereço ia claro.
Sou Francisco Mauricio, ffmauricio@sapo.pt
Eh, eh!
Olá, Francisco!
Abraço!
Joaquim Bispo, Os meus parabéns andas-te tu a perder tempo a trabalhar, quando o teu destino era escrever. Aguardo com alguma expectativa quando te aventuras a uma longa metragem literária.
Obrigado, André, mas a trabalhar “ganhei a vida”, enquanto que se fosse a escrever, já tenho dúvidas.
Lias uma longa metragem, André? Sendo assim, vamos a isso!
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