A longa travessia do
deserto aproxima-se do fim. Em breve atingiremos o mosteiro e a parte mais
fácil da viagem. Todos estão contentes, prevendo uns dias de descanso na
cidade, com os seus luxos e distracções. Para não destoar finjo sentir a mesma
sensação de alívio e de prazer. Mas os meus sentimentos são totalmente opostos.
Ainda não foi desta que reencontrei a Cidade dos Anjos.
Já se avista uma mancha
de verdura no horizonte. Se seguisse os meus desejos voltaria para trás, de
regresso ao deserto, para ali morrer ou encontrar o objecto dos meus anseios.
Mas esta caravana depende de mim. Se morresse estes homens ficariam entregues a
si próprios e às suas inimizades pessoais. As mercadorias seriam roubadas e
muitos dos que nos aguardam com ansiedade perderiam a fortuna e com ela a razão
de viver. Nunca a responsabilidade me foi tão pesada. Só me consola a ideia de
que mesmo que andasse pelo deserto anos a fio o mais certo é não voltar a ser
admitido na cidade de sonho.
Há quem diga que a juventude
é desperdiçada nos jovens. E têm razão. Aos 20 anos atingi a felicidade máxima
mas fui incapaz de o compreender. Em vez de aceitar o que me era oferecido
imerecidamente recusei-o sem hesitações, convencido de que o voltaria a
encontrar após uma longa vida repleta do que o mundo chama sucesso. Hoje, rico,
respeitado e temido, tento em vão recuperar a única coisa que me faria feliz.
Por isso continuo a dirigir estas caravanas ao longo de viagens repletas de
privações e de perigos quando podia gozar a vida na bela mansão que construí e
que em tempos me parecia ser o máximo a que podia aspirar. E continuarei a
fazê-lo enquanto me restar um sopro de vida.
Sou originário de um país
distante daquele em que vivo. Pobre e miserável, mal me lembro dos meus pais.
Fui criado nas ruas e ali desenvolvi técnicas de sobrevivência e de astúcia que
mais tarde me serviram para singrar nos negócios. Devia ter uns 19 anos quando
a Grande Caravana parou na vilória onde vivia. Era uma visita inesperada, pois
éramos demasiado pequenos e fora do caminho para termos contacto com os grandes
comerciantes. Um ou outro vendedor ambulante, quanto muito uma pequenina
caravana com dificuldades económicas, eram o máximo a que podíamos aspirar. Mas
a doença atacara alguns dos carregadores e fora tomada a decisão de parar por
alguns dias a fim de lhes dar a oportunidade de se restabelecerem.
O acampamento tornou-se
ponto de peregrinação para todos os vadios da cidade. Mas como a segurança era
apertada em breve desistiram. Só eu permaneci por ali, fascinado por aquele
amontoado de pessoas que falavam várias línguas, na maior parte desconhecidas,
que se vestiam de maneiras tão diversas e estranhas e que pareciam, aos olhos
de um mendigo de província, ricos para além de todos os sonhos. Aos poucos
fiz-me amigo dos guardas, a quem prestava todo o tipo de serviços e que tratava
sempre com uma subserviência que não podia deixar de lhes ser agradável. Nunca
me cansava de ouvir as histórias que contavam, embora mesmo então suspeitasse
que muitos dos detalhes mais exóticos eram acrescentados simplesmente para
gozarem com a minha ignorância e credulidade. Mas eram boas histórias, cheias
de magia e aventura, e a minha alma sedenta absorvia-as com avidez.
Apesar dos cuidados
prestados alguns dos carregadores morreram. Após o funeral o líder da caravana
anunciou que tentaria substituí-los, embora sem grande esperança. Conhecia de
sobejo o nosso tipo de povoação e bem sabia que embora falássemos muito
estávamos agarrados ao nosso quotidiano e pouca vontade tínhamos de arrostar
com o desconhecido. De facto fui o único que me apresentei. O meu aspecto e o
meu passado estavam contra mim mas os guardas conheciam-me e falaram a meu
favor. Fui, pois, admitido à experiência, na condição implícita de, caso não
satisfizesse, ser substituído na primeira oportunidade. Agarrei pois nos poucos
trapos que possuía e abandonei para sempre a terra que me vira nascer, decidido
a singrar na vida, fosse com aquela caravana ou por qualquer outro modo. Nunca
senti saudades e tenho passado a pequena distância da que se pode considerar
como a “minha terra” sem sentir a tentação de a voltar a ver.
Decidido a conquistar um
lugar permanente não me poupei a esforços, executando pronta e alegremente as
tarefas mais duras e mais sujas, tornando-me prestável aos meus superiores
directos e lutando o mais possível por me tornar simpático a todos. Aos poucos
adquiri a reputação de ser um trabalhador honesto, esforçado e com quem se
podia contar. Ao atingirmos a cidade seguinte novos carregadores foram
contratados mas o meu lugar estava assegurado. Tornara-me um membro daquela
respeitada companhia e com as poucas moedas que recebi a troco do meu trabalho
apressei-me a comprar roupas dignas da minha actual posição.
Ocupado como estava a
garantir o meu lugar não me preocupara em saber para onde íamos nem o que
transportávamos. Agora, que me sentia mais seguro, apercebi-me pela primeira
vez da carga preciosa que levávamos para terras distantes: vasilhas de metais
preciosos, especiarias, perfumes, vidros e, até, alguns animais exóticos
cuidadosamente acomodados em jaulas protegidas do calor e do mau tempo. Tinha
tido a sorte de me ligar a uma das grandes caravanas que levavam sedas e outros
materiais preciosos para Ocidente trocando-as por preciosidades desconhecidas
ou raras no seu país de origem. As viagens eram longas e muito perigosas mas em
caso de sucesso os lucros eram fabulosos.
Sentia-me, já,
perfeitamente à vontade no meu novo ambiente quando detectei um certo
nervosismo nos meus companheiros. Aproximava-se o pior momento de uma odisseia
recheada de perigos: a travessia do inóspito deserto. Pelo que então ouvi
contar parecia ser um local perigosíssimo, um dos piores conhecidos até então.
Embora o nosso trajecto nos levasse apenas através de um dos extremos as
condições eram horrorosas. A zona central era considerada intransitável e não
havia memória de alguém a ter atravessado e sobrevivido para contar a história.
Antes de iniciarmos a travessia parámos para nos abastecermos de água até ao
limite das nossas capacidades, para repousar um pouco e para melhorar as
condições das jaulas dos preciosos animais que transportávamos. Só viajaríamos
de manhã cedo e ao fim do dia, descansando durante a parte mais quente do dia.
Mesmo assim todos receavam a provação que se aproximava.
E tinham razões para
isso. Nunca esquecerei essa minha primeira travessia, e isto para além das
razões que em breve descreverei. Embora esperasse o pior a minha imaginação
ficou bem aquém da realidade. A minha vilória ficava numa zona agreste mas
fresca de Verão, embora gélida de Inverno. Não havia muita verdura mas também
não havia calor. Nada me preparara para as condições que agora enfrentava. O
calor era sufocante, e isto logo de madrugada. As noites, em contrapartida,
eram do mais gélido que até então experimentara. Caminhava como que num sonho,
ou melhor, num pesadelo, limitando-me a seguir numa semi-inconsciência os
vultos que via vagamente à minha frente. Quando estes paravam, parava também,
quando arrancavam fazia o mesmo, automaticamente. As areias escaldavam mesmo
através das solas das minhas sandálias novas, despertando-me do meu pesadelo
quando permanecia quieto durante demasiado tempo.
Não sei quantos dias
passei deste modo, sem saber se estava acordado ou se dormia. Pelo que hoje
sei, foram semanas, mas pareceram-me longos anos sempre iguais e repletos de
tortura. Mal me dei conta dos comentários dos meus companheiros, que se
regozijavam com a aproximação do fim desta etapa. Na altura parecia-me
impossível que houvesse algo no mundo que não fosse areia, calor e vento.
Parámos para a que
deveria ser a nossa última noite no deserto. Parecia um local mais abrigado do
que de costume, no sopé de duas dunas altas, quase umas colinas, terminadas em
bico e com uma depressão em concha entre elas. Parecia um lugar menos inóspito
do que muitos outros em que pernoitáramos e por isso não entendi o desagrado
dos meus companheiros. Protestavam contra os atrasos que nos tinham impedido de
sair do deserto nesse dia e lançavam olhares suspeitosos para as colinas.
Aproximava-se o pôr-do-sol e a azáfama era grande. Tendo terminado as minhas
tarefas decidi subir uma das colinas, a que ficava mais próxima, para ver se do
topo se avistava realmente o fim do deserto. Ao trepar comecei a notar um
ligeiro som, quase que de tambores distantes, que parecia acompanhar os meus
passos. Atingi o topo no momento em que o sol atingia o horizonte, incendiando
as areias a toda a volta. Era magnífico! Decidi sentar-me e contemplar o
espectáculo, totalmente esquecido por momentos da dureza dos últimos dias.
Fi-lo com cuidado, para não me afundar na areia mais do que o necessário. Os
meus movimentos foram acompanhados de um som cavo e alto, que na altura atribuí
a um grande tambor, um dos poucos instrumentos que então conhecia. Nem mesmo
agora poderia descrever totalmente a qualidade desse som, apesar de entretanto
muito ter visto e conhecido.
Sobressaltado levantei-me
de um pulo, fazendo com que uma boa porção de areia deslizasse colina abaixo. O
som fez-se ouvir de novo. Espantado, olhei em torno de mim, tentando detectar a
sua origem. Na base da colina os meus companheiros davam sinais de susto,
fazendo os gestos habituais a cada um contra os malefícios e o mau-olhado. Eles
não tinham sido com certeza. Do outro lado da colina apenas se avistava o
deserto, tão despido de vida como até então o conhecera. Virei-me, finalmente,
para o espaço entre as duas colinas.
Este tinha a forma de uma
gigantesca concha, de superfície regular e lisa. Quase que parecia feita por
mão humana, tão harmoniosas eram as suas dimensões e curvatura. Algo se passava
naquela zona. O ar, até então límpido, turvava-se e agitava-se em torvelinhos e
pequenos redemoinhos. Franzi os olhos para tentar ver com mais clareza. Mas
tudo estava turvo e apenas me parecia avistar, aqui e acolá, formas
indistintas, vultos gigantescos que se torciam, quer por efeito do ar quer por
movimento próprio. Decidi aproximar-me para ver melhor. Desci, pois o lado da
colina que levava à depressão, originando cascatas de areia a cada passo e
sempre acompanhado pelo som cavo e ressoante que me despertara a atenção.
Dei meia dúzia de passos
e hesitei quando um torvelinho mais forte me surgiu pela frente, cegando-me por
instantes. Ainda pensei em recuar mas a curiosidade foi mais forte e, com os
olhos fechados como protecção contra os grãos de areia arrastados pelo vento,
dei mais um passo. A súbita calmaria surpreendeu-me de tal modo que abri
imediatamente os olhos. Mas fechei-os de novo tal foi o espanto que me tomou. Ou
estava a sonhar ou enfrentava uma das célebres miragens de que tanto ouvira
falar mas que ainda não tivera oportunidade de ver. Como nada de mal me
aconteceu decidi-me a dar nova olhadela, convencido de que apenas veria areia à
minha frente. Mas não!
A visão permanecia
intacta, tal como a avistara por fugazes instantes. Se era uma miragem, então a
minha primeira experiência nesse campo ultrapassava tudo o que me tinham
contado. À minha frente erguia-se um muro alto e brilhante, por cima do qual se
avistavam cúpulas e telhados igualmente brilhantes. O meu primeiro pensamento
foi o de estar perante a cidade para onde nos dirigíamos e que, por erro de
cálculos, estaria mais próxima do que pensávamos. Mas se isso fosse verdade
tê-la-ia avistado do acampamento. Mas era, sem dúvida, um grande aglomerado de
edifícios, a avaliar pelo número de telhados que avistava.
Cuidadosamente, fui-me
aproximando do muro. Não poderia dizer de que era feito. Parecia ser de metal
brilhante, talvez cobre ou bronze, mas ao tocar-lhe, a medo, dava a sensação de
pedra. Uma pedra muito lisa e polida, que parecia brilhar com uma luz própria,
pois o sol já desaparecera e começavam a ver-se as primeiras estrelas. O muro
era um pouco mais alto do que eu, sem reentrâncias ou portas, e encurvava-se
ligeiramente rodeando os edifícios. Devia conter uma área enorme, a avaliar
pela sua ligeiríssima curvatura, área essa que excedia em muito a da
concavidade entre as duas colinas.
Tendo intimamente
decidido que ou estava morto ou entrara num mundo de sonhos, comecei a caminhar
ao longo do muro decidido a penetrar no seu anterior. Ao fim do que me
pareceram horas – e que talvez o fossem – tive de me render à evidência. O muro
permanecia liso e sem sinais de entrada. Parei para descansar um pouco, embora
surpreendentemente não me sentisse fatigado. A vontade de visitar aquela área
murada era cada vez maior mas não via bem como fazê-lo. Cheguei-me bem ao muro,
à procura de qualquer imperfeição a que me pudesse agarrar. Nada encontrei. Mas
ao erguer os braços com desespero apercebi-me de que as minhas mãos quase
chegavam ao topo. Sempre considerara a minha grande altura como uma desvantagem
– e era-o quando tentava passar despercebido após um pequeno roubo – mas agora
parecia-me uma dádiva sem preço. Com um pouco de esforço talvez conseguisse
agarrar-me ao topo do muro e trepar a força de pulso. E assim fiz. Foram várias
as tentativas falhadas e a areia onde tombava parecia endurecer a cada queda
que dava. Mas o sucesso coroou por fim os meus esforços.
Empoleirado no topo do
muro sentei-me para recuperar as forças e para decidir o passo seguinte. À
minha frente estendia-se uma cidade magnífica, toda ela feita do mesmo material
brilhante do muro. Os edifícios eram elegantes, bem desenhados e espaçosos, encimados
por cúpulas e telhados de feitios caprichosos e estranhos. Estavam separados
uns dos outros pelo que só se poderia denominar de jardins, embora não se
assemelhassem a nada que até então visse. Se ignorássemos as cores, seriam
jardins normais, belos e opulentos como nenhuns, mas possíveis. Mas o colorido
estragava essa ilusão. Parecia predominar um tom de laranja acobreado,
intercalado, aqui e acolá, por lampejos multicores que pareciam piscar e
reluzir como se tivessem vida própria. As formas assemelhavam-se às da nossa
relva, arbustos ou flores mas de colorido e brilho inimagináveis.
Tudo isto apenas serviu
para me convencer de que morrera e me encontrava nalgum mundo do Além de que
nunca ouvira falar. Como nada tinha a perder saltei do muro bem decidido a
explorar este mundo estranhamente fabuloso que se estendia a perder de vista.
Embora tivesse caído desamparado não me magoei. Parecia até que o solo se
torcera para melhor me amparar. Mas foi apenas uma breve sensação que logo pus
de parte como impossível.
Comecei a caminhar ao
longo de um dos muitos carreiros que avistara, rodeados de pequenos arbustos
cintilantes. Era neles que se viam os lampejos multicores, que na altura me
deslumbraram por nada ter visto de semelhante. Hoje posso compará-los a grandes
diamantes fulgindo à luz de múltiplas velas. Mas não pareciam ter uma origem
física ou então esta era tão pequena que me passou despercebida. A temperatura
estava amena e corria uma ligeira aragem que parecia perfumada de aromas
desconhecidos e suaves. Ao fim de algum tempo apercebi-me de que, embora não se
visse vivalma, o silêncio era quebrado por sons distantes, apenas detectáveis.
Parei para me concentrar neles. Por mais que me esforçasse não os ouvia com
nitidez. Pareciam um sussurro, melodioso mas tão baixo que era quase inaudível,
que atribuí à vez a música e a vozes, sem ficar com a certeza de nada.
Acabei por desistir e
prossegui o meu caminho, parando, por vezes, para apreciar um edifício ou um
grupo de flores exóticas. Não sei por quanto tempo caminhei assim. Pareceram-me
horas, mas podem ter sido dias ou apenas minutos. Nada do que então me
aconteceu tem raízes na experiência humana e por isso não tenho a certeza de
nada. Nem sequer de não ter sido tudo um sonho.
Apercebi-me, finalmente,
de que o carreiro por onde seguia tinha um propósito determinado,
encaminhando-se, decididamente, em direcção ao que se poderia chamar o centro
de toda aquela cidade. Não parecia ser o único, pois de ambos os lados avistava
agora outros carreiros que pareciam ter o mesmo destino. Isso alegrou-me e
preocupou-me ao mesmo tempo. Embora até então não avistasse vivalma achava
improvável que tantos edifícios estivessem desabitados. Parecia tudo
demasiadamente bem cuidado para estar abandonado. À minha estupefacção pelo que
via juntava-se agora uma pontinha de receio pela recepção que poderia ter. Bem
vistas as coisas não passava de um intruso e se os possíveis habitantes
quisessem ter visitas então por certo teriam aberto portas na muralha da sua
cidade.
Mas o medo apenas serviu
para me incentivar. Quer estivesse morto, vivo ou a sonhar, a minha decisão era
só uma: seguir esta aventura até ao fim. Apressei, pois, o passo, ansioso por
conhecer o passo seguinte de tão estranha saga.
O carreiro desembocou,
finalmente, numa praça que me pareceu enorme. Estava totalmente deserta. Ao
centro avistava-se o que parecia ser uma estátua alada. Para ali me dirigi. Era
a representação de um animal estranho. Parecia-se com um dragão, mas as suas
enormes asas eram semelhantes às das águias e demasiado pequenas para tão
gigantesco corpo. As patas também eram estranhas, terminando as da frente em
forma de mão humana. Fora representado soerguido nas patas traseiras, com o
focinho erguido para os céus e com as asas totalmente abertas. Nas patas
dianteiras, perturbadoramente humanas e elegantes, segurava um pequeno baú
semi-aberto.
Aproximei-me mais e,
muito a medo, abri-o por completo. O seu interior continha um rolo de
pergaminho e alguns anéis dourados. Enquanto hesitava, sem saber o que fazer, o
pergaminho desenrolou-se por si mesmo e vi que na sua superfície estavam
desenhados estranhos caracteres. Nessa altura não sabia ler e, mesmo se o
soubesse, duvido que conseguisse traduzir aquela escrita. Mas isso não foi
necessário porque uma voz sussurrante murmurou aos meus ouvidos:
“Se o teu coração é
intrépido e quiseres conhecer os habitantes desta cidade, então coloca um
destes anéis no dedo médio da mão esquerda. Mas lembra-te: tens muito a perder
e pouco a ganhar.”
Com a impetuosidade da juventude
nem hesitei. Estendi a mão e agarrei num dos anéis contidos no baú. Parecia
demasiado grande para os meus finos dedos mas ao enfiá-lo no dedo indicado
pareceu encolher, ajustando-se perfeitamente à minha pele.
A princípio nada mudou. A
praça estava tão deserta como dantes, o sussurro distante continuava
indecifrável e as cores que me rodeavam eram as mesmas. Mas pouco a pouco as
coisas começaram a mudar, começando por uma ligeira turvação das imagens, que
se foi acentuando até tudo se ter modificado. O espanto foi tão grande que
quase sufoquei. Parecia-me que mudara novamente de mundo.
A praça estava agora
cheia de criaturas que se moviam graciosa e apressadamente. Em vez do acobreado
brilhante que parecia imperar anteriormente tudo agora tinha cores
maravilhosas, intensas e variegadas. O sussurro aumentara de tom e, embora
continuasse ininteligível, via-se agora que era o som de centenas de vozes
erguidas em conversação ou canto. Era, verdadeiramente, um mundo à parte.
Concentrei-me nas
criaturas que via um pouco por toda a parte. Muitas tinham forma humana, mas
muito esguia e estilizada, parecendo flutuar sobre o chão de modo contínuo e
suave. Outras tinham formas estranhas, uma mistura de elementos humanos e
animais ou, até, totalmente desconhecidas. Mas todas tinham um elemento em
comum: ao olhá-las ficava com uma sensação de beleza e de harmonia como não
voltei a experimentar desde então, nem mesmo face às mais belas mulheres ou aos
mais encantadores objectos. Aquilo que, descrito, poderia dar uma ideia de
pesadelo, traduzia-se, sem que soubesse como, numa beleza ímpar e, acima de
tudo, numa sensação de “verdade”, como se aquela fosse a única forma possível,
ideal, para aquele ser.
Essa sensação de beleza
sem igual estendia-se aos edifícios, que me pareciam ainda mais magníficos
agora que os via na sua multiplicidade de cores. As coberturas fantásticas
revelavam pormenores delicados, uma autêntica filigrana etérea mas que dava, ao
mesmo tempo, a ideia de permanência, de durabilidade eterna que não se consegue
obter com as fortalezas mais sólidas que entretanto conheci. Mas o material de
que eram feitos permanecia uma incógnita.
A amenidade do ar era
ainda mais pronunciada, se tal fosse possível, e os aromas suaves que
transportava enchiam-me o espírito de delícias desconhecidas. Apesar da longa
caminhada que efectuara para ali chegar sentia-me completamente fresco e
repousado. Aliás, nunca me sentira melhor e não voltei a ter, desde então, uma
sensação que se lhe aproximasse. Se ao menos tivesse sabido apreciar o que
então tive em vez de me deixar cegar pela ideia de um futuro de prosperidade
material!
Permanecia especado junto
à estátua, de boca aberta de espanto e sem saber como reagir quando senti um
leve toque no ombro esquerdo. Com o susto dei um enorme pulo, que me levou a
pelo menos dois metros de distância. Virei-me e vi que uma das criaturas
semi-humanas me olhava, a sorrir. Era bela, como todas as outras,
distinguindo-se de uma mulher normal apenas devido aos olhos de um vermelho
cintilante, facetados como pedras preciosas, e por duas minúsculas asas que lhe
saíam da nuca. Bem mais alta do que eu, olhava-me, no entanto, quase de igual
para igual e o seu sorriso fez com que os meus nervos agitados se acalmassem de
imediato. Antes mesmo de falar já sabia que não me tinha inimizade, mas que
sentia por mim uma certa parcialidade mesclada de indiferença. Aproximei-me,
pois, até estarmos quase juntos.
— Bem-vindo à nossa
cidade – disse, numa voz onde ressoava um ligeiro trinado e que era impossível
de classificar. Aqui até os não convidados têm a sua oportunidade de escolher.
E fazendo-me sinal para a
seguir dirigiu-se para um edifício redondo que ocupava um dos lados da praça.
Embora cheio de perguntas
não me atrevi a erguer a voz. Havia algo naquela criatura que, embora não
despertasse medo, me impedia de sentir um completo à-vontade na sua presença.
Em silêncio, pois, atravessámos a imensa praça até atingirmos o nosso destino.
Subidos cinco degraus deparámo-nos com duas portas imensas e escuras, que me
impressionaram de modo desagradável. A sua superfície estava repleta de
desenhos que pareciam tridimensionais e vivos. Quando fitava um deles nada se
mexia mas pelo canto do olho via que o resto se retorcia e enclavinhava, quase
como um ninho de cobras. Era a primeira coisa desarmoniosa que via desde que
subira ao muro e fiquei cheio de vontade de fugir dali.
No entanto a criatura que
me fizera sinal não parecia preocupada. Tocou-lhes com um dedo anormalmente
fino e elas abriram-se com um chiar de dobradiças mal oleadas. Por momentos
fez-se silêncio na praça e, ao virar-me, vi que todas as criaturas tinham
parado e nos contemplavam. Mas não poderia dizer se com agrado ou desagrado.
Mas logo tudo voltou ao normal.
Como hesitasse a minha
acompanhante voltou a tocar-me no ombro – sempre o esquerdo – e fez-me sinal
para entrar. Com o coração aos pulos, assim o fiz, fechando os olhos e dando um
passo enorme para que a provação acabasse depressa. Quando os voltei a abrir
era como se não o tivesse feito. O interior era do mais escuro que jamais vira.
Não conseguia, literalmente, ver a minha mão quase em frente dos olhos. Foi um
dos momentos mais aterradores da minha vida. Pensei que o meu fim chegara ou
que, caso já estivesse morto, tivesse sido enviado para um dos piores infernos
de que ouvira falar.
Quando pensei não poder
suportar mais a escuridão e o silêncio a voz da criatura soou novamente,
parecendo ainda mais musical do que lá fora:
— Este é o edifício que
contém o Espelho das Almas. Só este tomará a decisão final, mas para lá chegar
é preciso passar por várias provas, que podem ser fatais. Todos os que visitam
a nossa cidade têm de passar por aqui. A alternativa é serem eliminados para
todo o sempre.
A única parte boa deste
discurso era a ideia de que afinal não devia estar morto. Embora a ideia das
provas me assustasse sempre fui lutador e não me agradava a perspectiva de nem
ao menos tentar. Estava para dizer isso mesmo quando a criatura, que parecia
adivinhar-me os pensamentos, acrescentou:
— Muito bem. Prossigamos.
Estamos no corredor da Confiança. Esta parte do percurso tem de ser feita na
escuridão, e sem qualquer apoio. O caminho não tem obstáculos e basta dar
cinquenta passos em frente, sem hesitações ou paragens. Volto a lembrar: uma
prova falhada representa a obliteração.
As coisas começavam mal.
Sempre tive medo do escuro, o que não é de estranhar para quem teve de
sobreviver durante longos anos nas escuríssimas ruelas de uma vilória, onde
nunca se sabia em que ou em quem poderíamos tropeçar. Ainda hoje tenho uma
profunda cicatriz resultante de um encontro aziago com um cão esfaimado numa
noite sem Lua. Mas sou um lutador, como já referi, e morto por morto preferia
sair tentando.
Abafando o melhor
possível os meus receios comecei a caminhada, tentando manter um ritmo certo e
sem hesitações. O chão era estranho, parecendo umas vezes mole e outras duro.
Mas segui sempre em frente, contando mentalmente. Foram os cinquenta passos
mais longos da minha vida. Ao dar o último todo o local se encheu de luz, uma
luz esverdeada e forte, que quase me cegou, após a escuridão anterior. A
criatura estava à minha frente, sorrindo.
— Primeira prova
superada. Entramos agora na Câmara dos Desejos. A prova consiste em escolher um
objecto de entre os muitos que a povoam. Só se for o objecto certo é que o
caminho fica livre.
Verifiquei, então, que o
corredor que percorrera desembocava numa imensa câmara repleta de estantes e
mesas onde se viam as coisas mais díspares, tudo iluminado por uma luz difusa e
esverdeada que parecia provir de todos os lados ao mesmo tempo. O coração
caiu-me aos pés. O que seria o objecto certo, no meio de todo aquele bazar?
Embora contrariado penetrei na Câmara e comecei a analisar os objectos que a
enchiam. Havia de tudo um pouco: preciosos e baratos, metálicos, de vidro, de
madeira, tecidos, pergaminhos, frascos de perfume, enfim, uma colecção capaz de
fazer inveja ao mais cotado mercador. Mas nada me parecia digno de ser
escolhido. Oh, havia coisas fabulosamente belas, sobretudo para um provinciano
como eu. Mas, não sei bem porquê, não me decidia a escolher nenhuma delas. Não
me pareciam suficientemente ”únicas”.
E assim fui andando, de
mesa em mesa e de estante em estante, tudo vendo e tudo rejeitando. A criatura
parecia não ter pressa, mantendo-se imóvel junto a uma pesada e retorcida grade
de ferro que parecia guardar a única saída. Já tinha visto tantas coisas que me
sentia tentado a desistir quando algo me chamou a atenção. Aproximei-me e vi,
na prateleira mais baixa de uma pequena estante o que à primeira vista não
passava da reprodução grosseira e demasiado colorida de um coração rodeado de
grandes chamas. Parecia impossível que no meio de tantas riquezas uma pobre
coisa como aquela me tivesse chamado. Mas fora isso que acontecera. Sentia-me
irresistivelmente atraído por aquela imagem baratucha e nem sequer bem feita.
Tentei afastar-me por diversas vezes, mas via-me forçado a voltar atrás e a
contemplá-la de novo.
Desisti de lutar.
Agarrei-a e levei-a até à criatura, absolutamente certo de que era o meu fim.
Aquele não podia ser o objecto certo, o único que me tinha sido pedido.
Estendi-lho, encolhendo-me um pouco com receio do que estava para vir. Mas com
grande surpresa minha a grade deslizou para um dos lados deixando a descoberto
uma pequena passagem que terminava numa nova porta.
— Mais uma prova
superada. Já só falta mais uma, antes de chegarmos ao Espelho das Almas.
Virou-se e dirigiu-se
para a outra porta. Esta era bastante estranha, mesmo depois de todas as coisas
esquisitas que vira até então. Não parecia sólida mas feita de uma espécie de
nevoeiro multicor, onde se agitavam formas indistintas e se moviam vultos que
não se chegava a perceber bem o que eram. Mas sólida ou não barrava totalmente
o caminho.
— Chegámos à Ponte do
Mundo. Tem três guardiães. Mais uma vez é preciso escolher o certo e pedir-lhe
passagem.
E sem acrescentar mais
nada passou através da barreira. Como não sabia que fazer, decidi-me a
imitá-la. Aproximei-me e parei por instantes tentando perceber o que via. Mas
as imagens entrevistas eram demasiado vagas e difusas para que pudesse dizer a
que correspondiam. Por isso dei um passo em frente, convencido de que iria ser
muito desagradável passar por ela. Estava à espera de uma sensação de frio
húmido e pegajoso, como o que costumava sentir na minha terra em certas noites
de Inverno. Mas nada senti. A porta era como se não existisse. A única
diferença é que agora via o que estava por detrás dela.
À minha frente via uma
larguíssima ponte lançada sobre um abismo aparentemente sem fundo. Pelo menos
era bem larga no início. Mas ia estreitando até que, a cerca de metade do
caminho, já só dava para cerca de quatro pessoas a par. Era nesse ponto que se
viam três vultos. Deviam ser os guardiães.
Como a criatura que me
acompanhava parecia ter desaparecido fui avançando cautelosamente pela ponte. À
medida que me aproximava podia ver melhor o tipo de criaturas que me
aguardavam. Eram seres muito estranhos e um pouco assustadores.
O da esquerda tinha um
corpo entroncado e forte mas não muito alto. Vestia de castanho-escuro, algo
que parecia quase uma couraça. A cabeça, no entanto, destoava do conjunto:
estreia e pontiaguda, parecia-se com uma raposa, mas com grandes olhos de
pupila vertical como a dos gatos e dois pequenos cornos retorcidos no topo. As
mãos, poderosíssimas, terminavam em garras como as das águias e seguravam uma
lança que parecia demasiado alta para aquele corpo.. O do meio tinha um corpo
um pouco mais alto do que o meu, mas bem proporcionado. A cabeça era a de um
cão, de dentes pontiagudos e olhos coruscantes e tinha nas mãos uma poderosa
acha de guerra. O da direita tinha um corpo de serpente, grossíssimo, enroscado
em inúmeros anéis de onde sobressaíam duas enormes asas. Tudo isto encimado por
uma enorme cabeça de touro de cuja boca saíam labaredas.
Estava ainda mais
atrapalhado do que na Câmara dos Desejos. Não sabia qual deles escolher, pois
todos me pareciam igualmente assustadores, em particular o do meio, com a sua
cabeça de cão. Como já disse anteriormente, os meus encontros com cães não
tinham sido dos mais felizes. Por isso concentrei a minha atenção nos outros
dois. Sentia-me tentado a escolher o da esquerda, uma vez que tudo até então
estivera relacionado com aquele lado. Mas a desproporção entre o corpo e a cabeça
repugnavam-me. Virei-me para o da direita e estava já perto quando tive a mesma
reacção. Havia algo no conjunto que me desagradava imensamente. Acabei por me
aproximar do do meio, pois, embora detestasse cães, era o que me repelia menos.
Vi-me assim face a face
com a sua bocarra escancarada, que parecia capaz de me arrancar a cabeça.
Quando o vi levantar a acha pensei que chegara o meu último momento. Mas
virou-se para um dos lados e acertou com ela no ser cabeça de raposa, que
prontamente se evaporou. Fez o mesmo do outro lado, ficando a ponte vazia com
excepção de nós os dois. A sua imagem tremeluziu, então, e pareceu deslizar
pelo caminho à minha frente, desaparecendo por um arco que se avistava ao
longe. E fiquei só.
Decidi caminhar até esse
arco, notando que a ponte se estreitara de tal modo que mal tinha largura para
o meu magro corpo. A criatura da praça aguardava-me junto ao arco.
— Falta apenas a prova do
Espelho das Almas. Mas esta é apenas uma escolha.
Virando-se, passou por
baixo do arco. Fiz o mesmo.
Estávamos numa pequena
sala redonda, que parecia ter apenas aquela abertura. À minha frente via-se uma
superfície polida, que parecia atrair-me de modo misterioso. Aproximei-me sem
qualquer receio até estar a poucos centímetros dela. Vi então que uma estranha
criatura me contemplava. Tinha corpo de dragão, mas de um dragão pequenino e
lindo, com maravilhosas escamas verdes e amarelas que pareciam cintilar e mudar
de aspecto continuamente. De cada lado saíam enormes asas vermelhas, capazes de
fazerem voar um corpo bem maior do que aquele. O mais estranho era a cabeça:
não se assemelhava a nada que alguma vez tenha visto, mas parecia estar
estranhamente em harmonia com o resto.
Fiquei embasbacado,
contemplando aquele ser estranho que via onde esperara ver a minha imagem. Não
sei quanto tempo decorreu nesse silêncio estupefacto mas por fim arranquei-me
àquela contemplação que me deliciava sem que soubesse porquê e virei-me na
direcção do arco. A criatura permanecia no mesmo ponto, mas parecia maior, mais
luminosa e amigável do que antes. Ia perguntar-lhe o significado de tudo o que
vira e vivera quando mais uma vez pareceu adivinhar os meus intentos.
— Essa é a imagem da tua
alma. Se decidires ficar na cidade, será essa a tua forma. Quanto às provas, penso
não precisar de te explicar a primeira. Confiaste nos teus instintos, que te
diziam que eu não era capaz de te fazer mal. Na segunda demonstrastes que o teu
maior desejo é uma vida vivida com emoção e encantamento, ansiando sempre por
mais e melhor. E na terceira sobrepuseste o teu sentido da harmonia das coisas
aos teus gostos pessoais. Demonstrastes, pois, seres digno de aqui viver.
Deu dois passos em frente
e prosseguiu:
— Mas tens de escolher.
Se aqui ficares, terás de renunciar à vida que poderias vir a ter se te fores
embora. E tenho de dizer-te que seria uma bela vida, cheia de sucesso,
riquezas, amizades e amor. Aqui terás paz, harmonia e uma longa existência sem
sobressaltos ou angústias. Escolhe!
E foi então que cometi o
maior erro da minha vida. Era novo, nada vira, nada experimentara para além de
miséria e trabalhos duros. A ideia de vir a ser rico, considerado, de ver
coisas e lugares, de conhecer novas gentes e novos costumes foi mais poderosa.
Escolhi a vida.
Não precisei de abrir a
boca. Assim que a minha mente formalizou a escolha logo me encontrei no topo da
colina a que subira para ver se o deserto estava a chegar ao fim. A noite
começava a cair, com a rapidez própria do deserto. Não entendia como isso era
possível, uma vez que tinha a sensação de terem passados horas desde que saíra
do acampamento. Se calhar tinham sido dias. O vento do fim da tarde acalmara e
a depressão entre as duas colinas estava perfeitamente lisa e regular.
Trôpego e sem bem saber o
que fazia desci o mais depressa possível até ao acampamento onde fui recebido
com total indiferença. Ninguém dera pela minha ausência. Comecei até a pensar
que tudo não passara de um sonho ou de uma alucinação provocada por excesso de
sol e de fadiga. Mas na minha mão esquerda brilhava um anel dourado que nunca
possuíra.
No dia seguinte a viagem
prosseguiu sem percalços de maior, dando início a uma carreira que me tornou
num dos mercadores mais ricos e invejados do meu tempo. Viajei incessantemente,
vi maravilhas incontáveis, rodeei-me de luxo e de amigos dedicados, mas nunca
fui totalmente feliz. A recordação daquela a que chamo a Cidade dos Anjos não
me abandona o espírito, fazendo-me ansiar por uma paz e harmonia inexistentes
neste mundo. Há anos que a procuro, muito particularmente junto às Colinas das
Areias Cantantes, fenómeno que a população local jura ser provocado pelos
espíritos que habitam por debaixo do deserto.
Mas nunca mais a avistei
e começo a pensar que morrerei sem alcançar aquilo que levianamente recusei aos
20 anos.
Luísa Lopes
Photo by zhao chen on Unsplash
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1 comentários:
Como e que este conto e outros podem ser mudados para que os seus leitores fiquem entusiasmados e tenham a coragem de seguir aquilo que o Presente lhes apresenta e que tipicamente leva a realizacao daquilo que e, completamente livre, pleno e feliz?
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