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segunda-feira, 30 de setembro de 2019

A Confissão de Teresa Brito


Nova Friburgo, 1º de fevereiro de 2016.

Querido Júlio,
Cartas saíram de moda, meu grande amigo. Há quantos anos você não recebe uma? Foram substituídas por e-mails e redes sociais, mas eu precisava escrever esta para agradecer o grande, ousado e honesto gesto que teve para comigo. De um tão íntegro jornalista e tão leal amigo, não era de se esperar menos, mas todo o bem que se faz deve ser reconhecido.
As coisas que vou lhe dizer nesta carta, melhor seria dizer olhando nos olhos o meu grande amigo, mas tenho urgência para desabafar e falta-me disposição para encontrá-lo no calor de São Gonçalo, sua tórrida cidade natal, onde você persiste em viver apesar do sucesso e da insistência de seus amigos em levá-lo para o Rio de Janeiro. Sempre evito ir a São Gonçalo no verão, a cidade mais quente de nosso estado, e tanto pior agora, em que cheguei à menopausa. Sim, aos 44 anos, esta bela e desejada mulher torna-se estéril.
Então, entrincheirada em minha casa do alto das Braunes, entre as montanhas de Nova Friburgo, faço o balanço da minha vida. Não tive filhos e não sei como seria minha vida se os tivesse tido. Teria eu alcançado o sucesso que alcancei se tivesse de cuidar de uma criança como acho que se deve cuidar? Sofreria sentimentos de culpa enquanto andasse pelo mundo interpretando meu repertório, deixando meu hipotético filho por mais de uma semana sem me ver? Não sei.
Ninguém nunca duvidou de meu amor pelas crianças. A começar pelos meus sobrinhos, que já me acompanharam em breves excursões aos países fronteiriços nos períodos de férias escolares. E minha dedicação a abrigos e hospitais infantis ajudaram sim a impulsionar minha carreira de cantora. O fato de várias vezes por ano me apresentar em benefício dessas instituições e todo ano, religiosamente, bancar a ceia de Natal no orfanato Santa Clara granjeou-me a simpatia de muita gente, a começar entre os cidadãos de minha Friburgo natal, onde candidatos a todos os cargos sempre disputaram o privilégio de tirar uma foto comigo – e infelizes daqueles a quem eu desmenti publicamente o apoio quando via minha foto estampada em seus panfletos eleitorais. Mas não sei o que trará para mim este ano que se inicia, pois quando saio para os lugares que sempre frequentei nas temporadas que passei aqui já não vejo tantos sorrisos.
Eis que tudo mudou naquele dia em que você estava ao meu lado, e, se não estivesse, não sei se teria tido tanta coragem. A filha do prefeito, num jantar beneficente, se aproxima de mim, com sua filha no colo e o bispo – irmão de minha mãe – ao seu lado – e pede-me que seja madrinha de sua filha, e eu lhe dei a resposta que sempre dei quando alguém de minha família pedia-me para batizar uma criança:
– Não.
– Por quê? Sempre fomos amigas e antes disso você era amiga de minha mãe.
E confessei diante do meu tio o que nunca tinha confessado a ninguém – e ele entendeu por que desde que voltei da França, onde fiz meu Mestrado, nunca mais me confessei nem comunguei:
 – Não posso porque estou excomungada.
Sua Reverendíssima engasgou com o vinho que bebia. O ruído do bispo engasgado atraiu todos os olhares.
 – O que foi, Reverendo? – acudiu, prestativo, o Secretário de Saúde do município.
O bispo estava sem palavras.
 – Sente-se mal, Reverendo?
 – Não faça perguntas, Secretário. O bispo está calado porque mentir é pecado e ele não quer dizer a verdade. Ele acaba de saber que, há 20 anos, voltei ao Brasil excomungada.
Peguei na sua mão, meu querido, e levei você para o jardim, longe dos olhos e ouvidos de todos.
– Júlio, meu tio bispo não terá coragem de comentar isso com ninguém, é um assunto embaraçoso para ele, mas não posso ter a mesma confiança em Adriana nem no Secretário. Essa minha frase lacônica vai se espalhar e a cidade vai querer saber por que estou excomungada. Somente a você eu daria uma entrevista sobre o assunto.
No dia seguinte, o prefeito telefonou-me porque queria reafirmar sua admiração por minha pessoa e porque a filha não quis lhe dizer por que eu recusara ser madrinha de sua neta: teria mudado de religião?
– Já que esta é uma ligação privada e eu lhe conheço do tempo em que foi meu professor de Matemática, não vou lhe tratar por Vossa Excelência. O senhor realmente quer saber ou está me ligando apenas para que eu não pense mal do seu Secretário de Saúde? Ele estava ao lado do bispo meu tio quando eu disse o motivo. Ele não lhe disse nada?
A resposta do prefeito veio após uma pausa que demonstrou a insegurança na sua  negativa.
 – Não tenho nada contra a sua família, mas não vou batizar sua neta porque estou excomungada. Jura que ninguém mais na prefeitura sabe disso?
 – Excomungado Frei Caneca também foi e é herói brasileiro.
 – Mas o motivo de minha excomunhão não me fará heroína do Brasil. Seja sincero. Se a história se espalhar por Friburgo, eu prometi dar uma entrevista ao jornalista Júlio Lopes antes que a história transponha os limites de minha cidade natal.
 – Você não quer guardar segredo?
– Por mais que eu goste da sua filha, não a considero capaz de guardar segredo. Ela está sempre nas colunas sociais e é tão comum pessoas da sua família serem vistas ao meu lado que ela já deve ter dito às amigas que estava apenas esperando minha vinda à cidade para me convidar para madrinha. Tanto assim que fez o convite com meu tio do lado, que presidirá a cerimônia. Quando os fotógrafos virem outra madrinha no meu lugar, o que ela dirá às pessoas?
– Teresa, faça como quiser. Eu tenho que interromper esta conversa porque preciso visitar uma escola que está em reforma.
Desliguei o telefone e, como sempre fazia, peguei o ônibus e desci até a Praça Getúlio Vargas, ao redor da qual estão os melhores restaurantes da cidade, para almoçar. Enquanto me servia de salada e queijo de cabra, ambos produzidos no distrito de São Pedro da Serra e comercializados por um preço deliciosamente impensável para vocês aí da planície, aproximou-se de mim uma colunista do principal jornal da cidade e perguntou se eu ficaria na cidade até o batismo de Lurdinha, neta do prefeito. Estava claro que ela estava plantando verde para colher maduro, ou talvez estivesse dizendo uma missa encomendada pelo prefeito, a fim de que eu revelasse logo o que tinha a dizer e eximisse sua família e seu secretário do ônus de terem divulgado o boato de minha excomunhão.
 – Não serei madrinha de Lurdinha.
 – Não dará essa alegria ao seu tio, o bispo?
 – Não posso. Por mais que sejam estreitos meus laços de afeto com a família do prefeito, os regulamentos da Igreja não me permitem, e meu tio, que conhece muito bem o Código de Direito Canônico, entenderá. Mas devido à nossa estreita amizade, creio que alguém da minha família será chamada para substituir-me. Só não sei dizer ainda quem. Pergunte à mãe de Lurdinha, minha querida amiga Adriana, a quem caberá a honra.
O dono do restaurante, onde iniciei minha carreira de cantora, veio pessoalmente cumprimentar-me. Pediu-me pela centésima vez uma foto e eu gentilmente fiz uma selfie e peguei meu celular para, pela centésima vez, postá-la numa rede social. Foi quando vi que havia uma mensagem de meu tio chamando-me à Catedral de São João Batista, do outro lado da rua. Mas que eu tomasse um táxi e entrasse pelos fundos, para que não me vissem atravessando a praça. Quis pagar a conta, o proprietário recusou-se a receber, deixei a gorjeta para o garçom e fui a pé mesmo, sem importar-me que todos me vissem.
Ele esperava-me na sacristia e assustou-se quando percebeu que eu chegara até ele entrando pela porta principal.
– Teresa, eu pedi discrição.
 – Mais de 30 pessoas me viram almoçar naquele restaurante. Todos sabem que o senhor é meu tio. Pior seria se eu almoçasse lá e eles não me vissem encaminhar-me até aqui para cumprimentá-lo como sempre fiz. Pensariam que há algum conflito entre nós.
 – Mas infelizmente há.
 – Meu conflito não é com o senhor, tio, é com a Igreja. Não assuma uma culpa que não tem.
– Não posso permitir que ponha a culpa na Igreja, e, como titular desta diocese, o papa me autoriza a solucionar esse conflito. Os bispos podem anular excomunhões.
 – Não quero anulá-la, meu tio. Não vou me declarar arrependida.
– Filha, já pensou nas consequências?
 – Uma vez que não há mais Inquisição, que mal poderia me causar?
 – Não falo apenas da sua alma, mas eu mesmo serei atingido por isso. Sua confissão teve testemunhas, alguém falará quando derem pela sua falta no batizado de Lurdinha, o rumor se espalhará, não poderei fingir ignorância. Se eu contar a verdade, o que será de mim? Eu era um padre perdido nas favelas da capital, até que meu antecessor morreu e o Vaticano achou por bem me nomear bispo de minha cidade natal, por sua causa. O trabalho filantrópico que você fazia junto ao meu antecessor chamou a atenção da Cúpula Romana e isso pesou muito para a minha indicação para este posto. Foi o dia mais feliz da minha vida. Eu acreditava que passaria o resto dos meus dias aqui e nesta mesma Catedral jazeria. Mas quando a notícia se espalhar, será um milagre se me deslocarem para a Diocese de Petrópolis, aqui do lado. Você não quer me dar o gosto de passar o resto dos meus dias neste posto, junto à minha família?
 – Meu tio, aprendi a não negar minhas convicções. E se, nesses vinte anos, mesmo excomungada, nunca deixei de colaborar com as obras sociais da diocese, assim continuarei.
 – A questão não é apenas o dinheiro que você arrecada!
 – A questão não é apenas posar ou não com Lurdinha nas colunas sociais!
 – Afinal, o que você fez, minha filha?
– Quando fazia meu Mestrado em Paris, envolvi-me com um rapaz. Eu fiquei grávida e abortei.
Meu tio ficou alguns instantes sem fala.
– Mas você já podia ter resolvido isso. O papa Francisco mudou as regras e, nesse caso, até os simples sacerdotes podem anular a excomunhão.
 – Os povos europeus obrigaram o papa a mudar as regras. Houve uma época em que o povo de Roma elegia os papas, mas desde que, há mil anos, esse direito foi negado ao povo romano, a Igreja é impermeável à democracia. Toda a Europa legalizou o aborto. Em alguns países, como Itália, Portugal e Irlanda[1], isso foi feito por plebiscito, o que resultou na excomunhão desses eleitores, a maioria que votou pelo sim. Com tanta gente impossibilitada de batizar as crianças que continuam a nascer na Europa, e não havendo bispos suficientes para tantos excomungados, Francisco decidiu facilitar as coisas. Então, em nome da democracia, quero ser mais uma nas estatísticas de excomunhão.
 – O que pretende? Perder sua alma?
 – Não, mas pretendo salvar as mulheres pobres. Sou uma privilegiada, que pude fazer Mestrado na França e realizar com segurança a decisão que tomei. Como as mulheres ricas do Brasil podem. Em 2013, o Sistema Único de Saúde atendeu mais de 100 mil mulheres vítimas de abortos clandestinos mal feitos. Quantas morreram? Quantas ficaram com sequelas? Eu não. Fiz em segurança num país desenvolvido, em que as pessoas enfrentaram esse tabu. Se eu declarasse tê-lo feito no Brasil, algum puritano se levantaria exigindo minha prisão. Mas lá na Europa não é crime.
 – Teresa, não se trata apenas de garantir que eu tenha uma sepultura nesta Catedral, junto a meus antecessores, na capela do Santíssimo, mas também de que no futuro haja escolas e praças em Nova Friburgo com o seu nome.
 – Não quero prejudicá-lo, tio, mas não posso deixar que os dogmas da Igreja continuem prejudicando as mulheres pobres. Enfrentarei esse tabu. Darei uma entrevista ao jornalista Júlio Lopes e nós dois aguentaremos as consequências dela.
 – Você se acha uma nova Lady Di? Quer causar uma crise na diocese como ela causou uma crise na monarquia britânica?
 – Mas se a monarquia sobreviveu, a diocese também sobreviverá. Desse modo, Lady Di forçou a monarquia a modernizar-se. É preciso que as mulheres brasileiras, assim como as europeias, forcem igualmente a Igreja a modernizar-se.
 – Você quer dizer que a Igreja não deve mais condenar o aborto?
 – Não. Estou dizendo que a Igreja não deve mais chantagear os governos nacionais para que condenem quem aborta. Os dogmas da Igreja não devem ser leis nacionais.
No dia seguinte, você subia de São Gonçalo a Friburgo e gravava em minha casa a entrevista que causou furor na TV e continua sendo exaustivamente compartilhada nas redes sociais, tantos meses depois.
O show que havia programado em Aparecida foi cancelado. Em outras cidades, fanáticos de diversos credos fizeram algazarra diante dos teatros em que me apresentava. A venda dos ingressos diminuiu mas eu sou constantemente solicitada a dar entrevistas e a assinar artigos de opinião nos jornais. Uma professora de Niterói, que foi minha colega de faculdade, escreveu-me sugerindo que finalmente me candidatasse ao Doutorado, fazendo um estudo sobre Simone de Beauvoir ou outra feminista da Literatura Francesa. Já se oferecia para ser minha orientadora e garantia que a editora da Universidade publicaria minha tese, na certeza de engordar seus magros cofres. Um partido de extrema esquerda me convidou para candidatar-me ao Senado em 2018. Portas se fecham e janelas se abrem.
Enquanto escrevia a segunda página desta carta, ouvi um grupo de pessoas passarem diante da minha casa e gritarem contra mim os nomes de “vagabunda”, “assassina” e “abortista”. Já não ando de ônibus como antes, preservo-me andando de carro pelas cidades, mas tanto ódio será insuficiente para matar-me de fome. Mas é suficiente para matar de hemorragia um número incontável de faveladas.
Veremos o que os anos reservam para este corpo agora estéril e esta mente sempre fértil. Guarde bem esta carta. Um dia alguém ganhará dinheiro com ela.
Sua eterna amiga,
Teresa Brito.

(São Gonçalo, 14 de novembro de 2017.)



[1] Teresa enganou-se. No momento em que escrevia a carta, o aborto ainda não era legalizado na Irlanda, mas passou a sê-lo por ocasião de um plebiscito em plebiscito realizado em 26 de maio de 2018, quando 1.429.981 pessoas votaram “Sim” e apenas 723.632 votaram “Não”.

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