Nova
Friburgo, 1º de fevereiro de 2016.
Querido
Júlio,
Cartas saíram de moda, meu grande amigo. Há quantos
anos você não recebe uma? Foram substituídas por e-mails e redes sociais, mas
eu precisava escrever esta para agradecer o grande, ousado e honesto gesto que
teve para comigo. De um tão íntegro jornalista e tão leal amigo, não era de se
esperar menos, mas todo o bem que se faz deve ser reconhecido.
As coisas que vou lhe dizer nesta carta, melhor seria
dizer olhando nos olhos o meu grande amigo, mas tenho urgência para desabafar e
falta-me disposição para encontrá-lo no calor de São Gonçalo, sua tórrida
cidade natal, onde você persiste em viver apesar do sucesso e da insistência de
seus amigos em levá-lo para o Rio de Janeiro. Sempre evito ir a São Gonçalo no
verão, a cidade mais quente de nosso estado, e tanto pior agora, em que cheguei
à menopausa. Sim, aos 44 anos, esta bela e desejada mulher torna-se estéril.
Então, entrincheirada em minha casa do alto das
Braunes, entre as montanhas de Nova Friburgo, faço o balanço da minha vida. Não
tive filhos e não sei como seria minha vida se os tivesse tido. Teria eu
alcançado o sucesso que alcancei se tivesse de cuidar de uma criança como acho
que se deve cuidar? Sofreria sentimentos de culpa enquanto andasse pelo mundo
interpretando meu repertório, deixando meu hipotético filho por mais de uma
semana sem me ver? Não sei.
Ninguém nunca duvidou de meu amor pelas crianças. A
começar pelos meus sobrinhos, que já me acompanharam em breves excursões aos
países fronteiriços nos períodos de férias escolares. E minha dedicação a
abrigos e hospitais infantis ajudaram sim a impulsionar minha carreira de
cantora. O fato de várias vezes por ano me apresentar em benefício dessas
instituições e todo ano, religiosamente, bancar a ceia de Natal no orfanato
Santa Clara granjeou-me a simpatia de muita gente, a começar entre os cidadãos
de minha Friburgo natal, onde candidatos a todos os cargos sempre disputaram o
privilégio de tirar uma foto comigo – e infelizes daqueles a quem eu desmenti
publicamente o apoio quando via minha foto estampada em seus panfletos
eleitorais. Mas não sei o que trará para mim este ano que se inicia, pois
quando saio para os lugares que sempre frequentei nas temporadas que passei
aqui já não vejo tantos sorrisos.
Eis que tudo mudou naquele dia em que você estava ao
meu lado, e, se não estivesse, não sei se teria tido tanta coragem. A filha do
prefeito, num jantar beneficente, se aproxima de mim, com sua filha no colo e o
bispo – irmão de minha mãe – ao seu lado – e pede-me que seja madrinha de sua
filha, e eu lhe dei a resposta que sempre dei quando alguém de minha família
pedia-me para batizar uma criança:
– Não.
– Por quê? Sempre fomos amigas e antes disso você era
amiga de minha mãe.
E confessei diante do meu tio o que nunca tinha
confessado a ninguém – e ele entendeu por que desde que voltei da França, onde
fiz meu Mestrado, nunca mais me confessei nem comunguei:
– Não posso
porque estou excomungada.
Sua Reverendíssima engasgou com o vinho que bebia. O
ruído do bispo engasgado atraiu todos os olhares.
– O que foi,
Reverendo? – acudiu, prestativo, o Secretário de Saúde do município.
O bispo estava sem palavras.
– Sente-se mal,
Reverendo?
– Não faça
perguntas, Secretário. O bispo está calado porque mentir é pecado e ele não
quer dizer a verdade. Ele acaba de saber que, há 20 anos, voltei ao Brasil
excomungada.
Peguei na sua mão, meu querido, e levei você para o
jardim, longe dos olhos e ouvidos de todos.
– Júlio, meu tio bispo não terá coragem de comentar
isso com ninguém, é um assunto embaraçoso para ele, mas não posso ter a mesma
confiança em Adriana nem no Secretário. Essa minha frase lacônica vai se
espalhar e a cidade vai querer saber por que estou excomungada. Somente a você
eu daria uma entrevista sobre o assunto.
No dia seguinte, o prefeito telefonou-me porque queria
reafirmar sua admiração por minha pessoa e porque a filha não quis lhe dizer
por que eu recusara ser madrinha de sua neta: teria mudado de religião?
– Já que esta é uma ligação privada e eu lhe conheço
do tempo em que foi meu professor de Matemática, não vou lhe tratar por Vossa
Excelência. O senhor realmente quer saber ou está me ligando apenas para que eu
não pense mal do seu Secretário de Saúde? Ele estava ao lado do bispo meu tio
quando eu disse o motivo. Ele não lhe disse nada?
A resposta do prefeito veio após uma pausa que
demonstrou a insegurança na sua negativa.
– Não tenho
nada contra a sua família, mas não vou batizar sua neta porque estou
excomungada. Jura que ninguém mais na prefeitura sabe disso?
– Excomungado
Frei Caneca também foi e é herói brasileiro.
– Mas o motivo
de minha excomunhão não me fará heroína do Brasil. Seja sincero. Se a história
se espalhar por Friburgo, eu prometi dar uma entrevista ao jornalista Júlio
Lopes antes que a história transponha os limites de minha cidade natal.
– Você não quer
guardar segredo?
– Por mais que eu goste da sua filha, não a considero
capaz de guardar segredo. Ela está sempre nas colunas sociais e é tão comum
pessoas da sua família serem vistas ao meu lado que ela já deve ter dito às
amigas que estava apenas esperando minha vinda à cidade para me convidar para
madrinha. Tanto assim que fez o convite com meu tio do lado, que presidirá a
cerimônia. Quando os fotógrafos virem outra madrinha no meu lugar, o que ela
dirá às pessoas?
– Teresa, faça como quiser. Eu tenho que interromper
esta conversa porque preciso visitar uma escola que está em reforma.
Desliguei o telefone e, como sempre fazia, peguei o
ônibus e desci até a Praça Getúlio Vargas, ao redor da qual estão os melhores
restaurantes da cidade, para almoçar. Enquanto me servia de salada e queijo de
cabra, ambos produzidos no distrito de São Pedro da Serra e comercializados por
um preço deliciosamente impensável para vocês aí da planície, aproximou-se de
mim uma colunista do principal jornal da cidade e perguntou se eu ficaria na cidade
até o batismo de Lurdinha, neta do prefeito. Estava claro que ela estava
plantando verde para colher maduro, ou talvez estivesse dizendo uma missa
encomendada pelo prefeito, a fim de que eu revelasse logo o que tinha a dizer e
eximisse sua família e seu secretário do ônus de terem divulgado o boato de minha
excomunhão.
– Não serei
madrinha de Lurdinha.
– Não dará essa
alegria ao seu tio, o bispo?
– Não posso.
Por mais que sejam estreitos meus laços de afeto com a família do prefeito, os
regulamentos da Igreja não me permitem, e meu tio, que conhece muito bem o
Código de Direito Canônico, entenderá. Mas devido à nossa estreita amizade,
creio que alguém da minha família será chamada para substituir-me. Só não sei
dizer ainda quem. Pergunte à mãe de Lurdinha, minha querida amiga Adriana, a
quem caberá a honra.
O dono do restaurante, onde iniciei minha carreira de
cantora, veio pessoalmente cumprimentar-me. Pediu-me pela centésima vez uma
foto e eu gentilmente fiz uma selfie e peguei meu celular para, pela centésima
vez, postá-la numa rede social. Foi quando vi que havia uma mensagem de meu tio
chamando-me à Catedral de São João Batista, do outro lado da rua. Mas que eu
tomasse um táxi e entrasse pelos fundos, para que não me vissem atravessando a
praça. Quis pagar a conta, o proprietário recusou-se a receber, deixei a
gorjeta para o garçom e fui a pé mesmo, sem importar-me que todos me vissem.
Ele esperava-me na sacristia e assustou-se quando
percebeu que eu chegara até ele entrando pela porta principal.
– Teresa, eu pedi discrição.
– Mais de 30
pessoas me viram almoçar naquele restaurante. Todos sabem que o senhor é meu
tio. Pior seria se eu almoçasse lá e eles não me vissem encaminhar-me até aqui
para cumprimentá-lo como sempre fiz. Pensariam que há algum conflito entre nós.
– Mas
infelizmente há.
– Meu conflito
não é com o senhor, tio, é com a Igreja. Não assuma uma culpa que não tem.
– Não posso permitir que ponha a culpa na Igreja, e,
como titular desta diocese, o papa me autoriza a solucionar esse conflito. Os
bispos podem anular excomunhões.
– Não quero
anulá-la, meu tio. Não vou me declarar arrependida.
– Filha, já pensou nas consequências?
– Uma vez que
não há mais Inquisição, que mal poderia me causar?
– Não falo
apenas da sua alma, mas eu mesmo serei atingido por isso. Sua confissão teve testemunhas,
alguém falará quando derem pela sua falta no batizado de Lurdinha, o rumor se
espalhará, não poderei fingir ignorância. Se eu contar a verdade, o que será de
mim? Eu era um padre perdido nas favelas da capital, até que meu antecessor
morreu e o Vaticano achou por bem me nomear bispo de minha cidade natal, por
sua causa. O trabalho filantrópico que você fazia junto ao meu antecessor
chamou a atenção da Cúpula Romana e isso pesou muito para a minha indicação
para este posto. Foi o dia mais feliz da minha vida. Eu acreditava que passaria
o resto dos meus dias aqui e nesta mesma Catedral jazeria. Mas quando a notícia
se espalhar, será um milagre se me deslocarem para a Diocese de Petrópolis,
aqui do lado. Você não quer me dar o gosto de passar o resto dos meus dias
neste posto, junto à minha família?
– Meu tio,
aprendi a não negar minhas convicções. E se, nesses vinte anos, mesmo
excomungada, nunca deixei de colaborar com as obras sociais da diocese, assim
continuarei.
– A questão não
é apenas o dinheiro que você arrecada!
– A questão não
é apenas posar ou não com Lurdinha nas colunas sociais!
– Afinal, o que
você fez, minha filha?
– Quando fazia meu Mestrado em Paris, envolvi-me com
um rapaz. Eu fiquei grávida e abortei.
Meu tio ficou alguns instantes sem fala.
– Mas você já podia ter resolvido isso. O papa
Francisco mudou as regras e, nesse caso, até os simples sacerdotes podem anular a
excomunhão.
– Os povos
europeus obrigaram o papa a mudar as regras. Houve uma época em que o povo de
Roma elegia os papas, mas desde que, há mil anos, esse direito foi negado ao
povo romano, a Igreja é impermeável à democracia. Toda a Europa legalizou o
aborto. Em alguns países, como Itália, Portugal e Irlanda[1], isso foi feito por
plebiscito, o que resultou na excomunhão desses eleitores, a maioria que votou
pelo sim. Com tanta gente impossibilitada de batizar as crianças que continuam
a nascer na Europa, e não havendo bispos suficientes para tantos excomungados,
Francisco decidiu facilitar as coisas. Então, em nome da democracia, quero ser
mais uma nas estatísticas de excomunhão.
– O que
pretende? Perder sua alma?
– Não, mas
pretendo salvar as mulheres pobres. Sou uma privilegiada, que pude fazer
Mestrado na França e realizar com segurança a decisão que tomei. Como as
mulheres ricas do Brasil podem. Em 2013, o Sistema Único de Saúde atendeu mais
de 100 mil mulheres vítimas de abortos clandestinos mal feitos. Quantas
morreram? Quantas ficaram com sequelas? Eu não. Fiz em segurança num país
desenvolvido, em que as pessoas enfrentaram esse tabu. Se eu declarasse tê-lo
feito no Brasil, algum puritano se levantaria exigindo minha prisão. Mas lá na
Europa não é crime.
– Teresa, não
se trata apenas de garantir que eu tenha uma sepultura nesta Catedral, junto a
meus antecessores, na capela do Santíssimo, mas também de que no futuro haja
escolas e praças em Nova Friburgo com o seu nome.
– Não quero
prejudicá-lo, tio, mas não posso deixar que os dogmas da Igreja continuem
prejudicando as mulheres pobres. Enfrentarei esse tabu. Darei uma entrevista ao
jornalista Júlio Lopes e nós dois aguentaremos as consequências dela.
– Você se acha
uma nova Lady Di? Quer causar uma crise na diocese como ela causou uma crise na
monarquia britânica?
– Mas se a
monarquia sobreviveu, a diocese também sobreviverá. Desse modo, Lady Di forçou
a monarquia a modernizar-se. É preciso que as mulheres brasileiras, assim como
as europeias, forcem igualmente a Igreja a modernizar-se.
– Você quer
dizer que a Igreja não deve mais condenar o aborto?
– Não. Estou
dizendo que a Igreja não deve mais chantagear os governos nacionais para que
condenem quem aborta. Os dogmas da Igreja não devem ser leis nacionais.
No dia seguinte, você subia de São Gonçalo a Friburgo
e gravava em minha casa a entrevista que causou furor na TV e continua sendo
exaustivamente compartilhada nas redes sociais, tantos meses depois.
O show que havia programado em Aparecida foi
cancelado. Em outras cidades, fanáticos de diversos credos fizeram algazarra
diante dos teatros em que me apresentava. A venda dos ingressos diminuiu mas eu
sou constantemente solicitada a dar entrevistas e a assinar artigos de opinião
nos jornais. Uma professora de Niterói, que foi minha colega de faculdade,
escreveu-me sugerindo que finalmente me candidatasse ao Doutorado, fazendo um
estudo sobre Simone de Beauvoir ou outra feminista da Literatura Francesa. Já
se oferecia para ser minha orientadora e garantia que a editora da Universidade
publicaria minha tese, na certeza de engordar seus magros cofres. Um partido de
extrema esquerda me convidou para candidatar-me ao Senado em 2018. Portas se
fecham e janelas se abrem.
Enquanto escrevia a segunda página desta carta, ouvi
um grupo de pessoas passarem diante da minha casa e gritarem contra mim os
nomes de “vagabunda”, “assassina” e “abortista”. Já não ando de ônibus como
antes, preservo-me andando de carro pelas cidades, mas tanto ódio será
insuficiente para matar-me de fome. Mas é suficiente para matar de hemorragia
um número incontável de faveladas.
Veremos o que os anos reservam para este corpo agora
estéril e esta mente sempre fértil. Guarde bem esta carta. Um dia alguém
ganhará dinheiro com ela.
Sua eterna amiga,
Teresa Brito.
[1]
Teresa enganou-se. No momento em que escrevia a carta, o aborto ainda não era
legalizado na Irlanda, mas passou a sê-lo por ocasião de um plebiscito em
plebiscito realizado em 26 de maio de 2018, quando 1.429.981 pessoas votaram
“Sim” e apenas 723.632 votaram “Não”.
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