Escada de madeira, avariada. Puída feito
tudo o que a vista alcança dali. Cassiano, acomodado num degrau, tronco dobrado
sobre os joelhos, esfrega o dedo do pé na saliência de um prego pronto a se
soltar.
Na
cabecinha de onze anos, é um vaivém de imagens que analista nenhum conseguiria
ordenar. No peito, é só amargura. Sente-se como um alienígena, pior que isso,
um terrestre desfocado. Não tem nada a ver com tudo aquilo. A cidade, o mar, a
vida da favela... Tudo lhe é terrivelmente estranho! Nem mesmo estes dez meses
o deixaram mais familiarizado. Não se afina, é sempre um vendido!
Bem que avisara o pai...
Não é vida para eles! Como poderia uma família da roça, rude, simplória,
acostumar-se numa cidade daquele tamanho?! Pode até ser uma cidade linda,
maravilhosa, cheia de modernices, mas os problemas que lhes traz a tornam uma
cidade madrasta. Que saudade do seu cantinho! Chega a lhe doer no peito!
Sente uma pena tão grande
do pai! Está cada dia mais magro, consumido, desesperado. É muito mais difícil
do que imaginou! Com a graça de Deus, a mãe conseguiu colocação na casa de uma
dona, lá na cidade. Cuida da roupa e da arrumação da casa. Sai ainda escuro, e
volta já à noitinha. Sempre cansada, desgastada.
A irmã, no viço dos seus
dezesseis anos, não consegue trabalho. Cuida do barraco, displicentemente, e
dorme quase o dia todo. Quando escurece, veste a mesma roupa surrada de todas
as noites, e sai. Sempre tem uma amiga para visitar, um emprego para ver...
Sempre arruma motivo para sair, se bem que o pai já não está engolindo tudo
isso! Cassiano percebe que o velho fica ainda mais abatido quando, vendo a
filha sair, encosta-se à porta do barraco e deixa os olhos correrem pela
escada, vendo-a desaparecer na penumbra, lá embaixo. Se pelo menos não pintasse
tanto o rosto, não usasse aquela água de cheiro tão forte!
Cassiano entende tudo,
não pode afirmar nada, mas tem a liberdade de, pelo menos em pensamento,
maquinar suas premissas. Aliás, é isso que faz o tempo todo! A lógica é uma
constante. Tem os pés no chão. Não é dado a aventuras. Por ele, nunca teriam
arredado pé do mato. Lá estava a dignidade. Pobreza não é a morte, pior que ela
é a indignidade da vida que levam agora.
Pai teimoso! Não é
teimoso... É descabidamente sonhador, só isso! Pensava ter na cidade grande a
mola mágica para o sucesso. Não vacilou em vender toda a colheita, pedir as
contas, botar os trens num caminhãozinho alugado e rumar para cá. Nem precisa
dizer que o dinheiro não deu nem para o começo! Foi suficiente apenas para comprar
o barraco. Chegou todo animado e sonhou até com a compra de uma casa! Andava de
corretor em corretor, com o dinheiro embolado nos bolsos. Não demorou a se
decepcionar e tentar, pelo menos tentar, pôr os pés no chão.
E foi este barraco que conseguiu pagar. Desde
então, só Deus sabe da penúria. A comida, minguada, como podia... Agora, com o
emprego da mãe, pelo menos pão não falta. Leite? Só no sonho. Perceptível até para
olhos menos detalhistas, a fome que os aflige. A magreza cadavérica do pai, o
raquitismo de Cassiano, com braços demasiadamente longos, evidenciados pela
extrema fragilidade do corpo. As pernas, sequiosas de carne, deixam os joelhos
saltados, salientes, desproporcionais. O calção nem lhe para na cintura, vive
caído, à altura dos quadris e, consequentemente, quase lhe cobrindo os joelhos.
Figura triste aos olhos! Tremendamente frágil, chegando mesmo a instigar pena.
Mais triste ainda é sua
inércia. Passa o tempo todo ali, naquela mesma escada, olhando sem perceber, o
sobe-e-desce das pessoas. Às vezes encolhe-se, tomba o corpo de lado para dar
lugar a um passante mais descuidado, estabanado. Dali só sai para ir ao barraco
pegar um pão, e quando escurece. Nem à escola vai! O pai, aborrecido,
decepcionado, achou melhor nem tentar a matrícula. A escola do sertão era tão
fraca que Cassiano não tem condição de acompanhar o estudo daqui.
Cassiano até que gostou!
Não tem mesmo ideia pra aprender nada, ainda mais aqui! Só faltava ter que ir
pra escola! Seria em outra situação e mais uma vez, um peixe fora d’água.
Em meio a tudo isso,
nessa aflição, ainda tem o direito de ficar ali, sentado, parado. Graças a Deus,
não é exigido pra nada! Não tem ânimo mesmo! Se bem que é torturante ficar ali,
remoendo todos aqueles martírios na cabeça, mas que fazer?! Dos males, o
menor... Duro mesmo deve ser o dilema do pai! Afinal, ele deve se sentir
responsável por todo esse transtorno.
Cassiano pensa no pai.
Hoje ele saiu cedo, como quase todos os dias. Nem imagina o que ele faz pelas
ruas. Diz que vai à procura de emprego, mas... Inutilmente. Sempre volta
arrasado, mais desiludido que quando saiu.
No começo, quando chegou,
Cassiano ainda se animava em subir, à noite, até o barraco de Dona Guidinha e
passar os olhos pela televisão. Mas eram tantas crianças que se juntavam à
porta, faziam tanto barulho que mal dava para Cassiano ouvir o som que saia do
aparelho. Não podia reclamar, ia contra a corrente e ali no morro, ou se é mais
um ou está morto. Cassiano preferiu se calar. Conhecia bem a política do morro
e, aos poucos, foi abandonando o passatempo. Agora, basta escurecer e ele já se
deita.
É isso que não consegue engolir! A violência
da favela. O perigo iminente e latente do morro... É assustador! Coisa comum é
ver brigas, tiros, mortes. Nem sabe quantos garotos da sua idade morreram por
aqui nestes últimos meses! É rotina... Toda manhã os corpos aparecem jogados,
perfurados por balas ou castigados por pancadas. Comum acontecer e difícil
suportar... Impossível mesmo! Cassiano fica apavorado, temeroso, perdido.
Sua irmã chega à porta do
barraco. Espreguiça o corpo demoradamente. Dormiu até agora. Já é quase noite!
Está chegando a hora de Cassiano entrar. Sente vontade de esperar a mãe, ali.
Mas, é perigoso, não convém.
O pai está demorando mais
que o costume! Cassiano não se sente confortado. Gosta de ter o pai por perto
quando a noite chega. Não tem remédio... É noite, e o jeito é entrar.
Cassiano ergue o corpo,
olha novamente lá embaixo, no pé da escada. Nada... Nenhum dos dois aponta.
Entra no barraco. A irmã, exalando um cheiro de flor, enjoativo, tem um espelho
nas mãos e passa, repetidas vezes, o batom nos lábios. É bonita a danada!
Cassiano olha-a demoradamente e pensa em como seria bom se ela tivesse metade
da beleza em juízo. No mínimo sofreria menos no futuro. Esse tipo de vida nunca
acaba bem, sempre deixa marcas e dissabores profundos.
Está assim, pensando,
quando ouve a porta do barraco bater. A danada já saiu e ele nem percebeu!
Cassiano estremece quando
se lembra de que está sozinho. Bem que a mãe podia chegar logo! Olha pela
fresta da porta, mas nada vê. Está muito escuro lá fora... Senta-se no banco da
cozinha e não consegue ficar sereno. Dentro do peito, a aflição, o desespero, o
medo. Não quer ficar sozinho. Por que sua irmã não ficou com ele até a mãe
chegar? Menina matreira! Pensa em contar tudo ao pai. Por que ele também não
chega?!
Cassiano resolve se
deitar. Quem sabe o sono vem e leva toda essa aflição. Amanhã é outro dia.
Bobagem! Nem deitado
consegue sossego. A cama é um suplício quando está ansioso! Parece que vem
vindo alguém... Ainda bem, é a mãe!
Tem vontade de correr,
jogar-se em seus braços, esquecer toda aquela angústia, mas não tem costume!
Não quer que ela saiba que sentiu medo. Já está tão baqueada, chega a dar pena!
Ele não se acha no direito de levar queixume algum até ela. Tem de ajudá-la,
isto sim!
-
Cassiano,
cadê o pai?
-
Ainda
não voltou. Saiu cedo e não falou nada...
-
E
Clarinha?
-
Já
saiu. Deve ter ido na casa...
-
Deixa
pra lá, filho... Já comeu?
-
Já,
mãe.
Nem bem entra e pega na
arrumação. Clarinha, ultimamente, tem sido mais desleixada com a casa. Está uma
baderna!
Cassiano percebe que a
mãe, a todo instante, olha pela fresta da porta. Também está preocupada com a
demora do pai. Que será que aconteceu? Nunca faz isso! Sabe que a família se
sente desprotegida à noite, sem ele. Seu pai podia ser aventureiro, mas tinha
muito cuidado com eles. Não fazia nada, é verdade, mas estava sempre presente.
Não tinha vícios, ainda bem! Na situação em que estão agora, seria um caos
ainda maior se ele não fosse comedido! Não bebia nunca. Admirável em meio a
tantas decepções, o pai mantinha caráter firme feito rocha. Não buscava refúgio
em vício algum, nem em seus sonhos se refugiava mais! Hoje tem os pés fincados
no chão, os devaneios se foram... Está sem saída! Se ao menos arrumasse
dinheiro para voltarem para o mato! Mas, como?! Talvez até tenha meios para
isso, mas o pior de tudo é que perdeu o ânimo! Tem medo agora... Não quer
parecer aventureiro, e sofre terrivelmente. Cassiano torce por essa aventura. De
voltar... Quer voltar. É tudo o que mais deseja! Que adianta? Nunca terá
coragem de conversar isso com o pai. Imagina!
As horas vão correndo. Já
é noite alta, o morro está quase todo apagado. E, nada do pai. Que angústia!
A mãe, andando de um lado
pro outro, não para de rezar. Cassiano fica mais aflito diante da insegurança
da mãe. Ela, adulta, desprotegida, e ele, como se sente?!
A madrugada chega, junto
com ela, Clarinha. Cara amarrotada. Entra falando alto, os cabelos num completo
desalinho, agitada. É só o tempo de tirar a roupa, e cai na cama. Nem pergunta
pelo pai. Pelo jeito nem tem tino para isso. Está esquisita!
Cassiano, apesar de
aflito, encolhido sob as cobertas, não resiste ao sono e dorme profundamente.
Acorda sobressaltado com
os gritos da mãe. É uma sensação horrorosa! O coração lhe bate na goela, nem
sabe para que lado da cama descer as pernas... É terrivelmente assustador!
Num instante está na
porta do barraco. Os olhos, ofuscados pela claridade do dia, teimam em não
parar abertos. A cabeça, ainda meio atordoada, fica lerda para perceber o que
está acontecendo. Chega perto da escada e olha lá embaixo. Vê a mãe, debruçada.
Há muitas pessoas por perto, mas percebe que tem alguém deitado no chão. De
repente, lembra-se da noite anterior, da demora do pai... Desce as escadas
feito um doido, aos trotes. Difícil abrir caminho por entre as pessoas. Antes
não tivesse conseguido.
No chão, estirado, pálido
feito cera, olhos fixos e semiabertos, o pai. Cassiano compreende tudo. O pai,
morto.
A mãe, ajoelhada ao lado,
está calada, perplexa, incrédula. Não chora, apenas olha. Está como que
hipnotizada, sem movimentos.
Cassiano sente o chão
fugir, a cabeça rodar, não reconhece ninguém entre os curiosos. Todos
estranhos. Tão estranhos quanto é aquela cidade, aquele morro, aquele barraco,
aquela vida. Sente vontade de gritar, de correr, de entender. Por que tudo
aquilo?! O que está acontecendo?!
Quando cai em si, está
sozinho. As pessoas se foram, o corpo do pai levado não sabe pra onde... Sua
mãe... Sua irmã... Cassiano não sabe de nada...
Agora está ali, sentado.
Na mesma escada, no mesmo degrau, apenas com os seus pensamentos. Quem será que
o matou? Por quê? O que a vida quis dele? Perguntas e mais perguntas fervilham
em sua cabeça. Inutilmente. É apenas mais uma morte, como tantas outras. Sem
explicação, sem fundamento. No morro é assim. Ou se é mais um, ou está morto.
Ele não quis ser mais um. Foi só isso!
Regina Ruth Rincon Caires
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