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segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Arremate



Escuto o uivo do cão e por um momento quero voltar e abraçá-lo e lhe dizer que eu também preciso gritar. Mas se eu me virar sei que nossos olhares se encontrarão em solidão e ele vai me pedir que o leve comigo. Não posso. Não quero enganar o cão. Ele sabe. Lambeu tantas vezes meu rosto aguado de tristeza. Deitou-se em cumplicidade enquanto eu maquilava de afeto as máscaras. Foi um cão fiel. Caminhou ao meu lado, saltou feliz, abanou o rabo e latiu à porta. Mas foi também um amigo de silêncios prestados. Para onde vou não se leva um cão fiel. Apenas a carcaça dos erros e a pressa de esquecer o que é supérfluo: amor, decência, humanidade. Adeus, cão. Agora que fechei a porta entre nossos destinos, tudo fica mais fácil.
O caminho hoje está molhado. Eu prefiro assim. Não gosto quando os sapatos roubam o pó vermelho da estrada. Nem de deixar pegadas rasas que qualquer vento apague. Quando chove tudo é diferente. A caminhada afunda na abundância do barro e a terra se abre a um gozo de estocadas. É bom que ir seja em dia de chuva. Talvez eu também chova se ainda souber. Talvez eu tente desfazer o nó que desoxigena meu peito. Talvez eu só sinta saudade. Do armário cheio de roupas compradas para ir onde nunca fui. Da estante com santos, duendes, budas e patuás exaustos de me negar pedidos. Da risada estridente dos filhos que não tive. Do verde intenso roubado a uma janela aberta. De cada homem ao meu lado sob o lençol do dia seguinte. Do cão. Talvez. Só de uma coisa eu tenho certeza: quero gritar entre a agonia e o livramento. Porque é bom que ir seja em som. É justo que a alma se esvazie num vômito barulhento. Até que o ritus se complete. E tudo seja paz ou nada. Antes de tanto, porém, um arremate. Preciso de alguém que me faça um último favor. É que me esqueci de mandar soltar o cão. Se ninguém abrir a porta, ele vai morrer sozinho. De fome, de sede, de abandono. O cão, não.

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Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16


3 comentários:

Contundente como sempre. Um nó que sufoca a cada leitura em contos cortantes como navalha. Perfeito!

“Para onde vou não se leva um cão fiel”.
“Amigo de silêncios prestados”.
Cães fiéis não mordem nem pedem socorro.
Cinthia não é cão, mas morde com seus contos.
Cinthia é fiel aos amigos, ao Henri Bugalho e à Revista Samizdat.

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