Um
certo pastor de ovelhas foi imortalizado por Esopo, que contou como
ele se divertia a enganar os vizinhos, gritando “Lobo!” sem
justificação. Aborrecido por já não conseguir enganar ninguém,
vendeu terras e rebanho e foi viver para uma vila distante.
Instalou-se num casarão da rua principal — a Alameda do Ocidente
—, rodeado por outras casas de gente bem instalada na vida, mas com
as traseiras para uma rua de casebres humildes — a Rua Terceira.
Jorge
— assim se chamava o anónimo pastor de Esopo — foi vivendo uma
existência tão ou mais monótona do que vivia na serra, mas
depressa embirrou com um orgulhoso vizinho das traseiras que
cultivava tabaco e açúcar. O antigo pastor começou a espalhar
rumores de que este vizinho, chamado Galego, tinha amigos de mau
porte e pretendia contratar vândalos do Leste para trabalhar nas
plantações. Para manter o bom ambiente da vila, dizia Jorge, o
melhor era que os cidadãos honrados da rua mais nobre se unissem e
obrigassem o suburbano a mudar de modos.
Na
verdade, os vizinhos, sem conhecerem a fama antiga de Jorge,
mostraram-se indignados com o comportamento do rústico Galego e
apoiaram as medidas propostas pelo distinto vizinho que denunciara
tão deplorável conduta. Como soluções drásticas não pareceram
adequadas, os notáveis da vila decidiram apenas boicotar a sua
atividade produtiva. A partir de então, o cultivador não poderia
abastecer-se no comércio local, fosse qual fosse o ramo. Nem vender.
Esperava-se que o garrote económico o levasse a abandonar a vila e a
comunidade pudesse regressar a uma vida tranquila.
Passado
algum tempo, Jorge embirrou com outro vizinho humilde. Queixou-se ele
às autoridades da vila, de que então já fazia parte, que um tal
Pelesete causava muitos incómodos a um outro, chamado Moisés, que
entretanto chegara, mas pretendia instalar-se na propriedade de
Pelesete, com o argumento de que em tempos ali vivera. Começara por
pedir para ficar num descampado, mas, aos poucos, foi expandindo o
espaço ocupado e a retórica proprietária. Jorge cedo gostou dele,
sobretudo porque lhe permitia caçar naqueles terrenos sem
autorização. Daí a defender as suas pretensões foi um passo.
A
princípio, o conselho local de homens sensatos não apoiou tão
estranha reivindicação, mas Jorge, que vinha a ganhar poder nos
negócios da terra, foi muito incisivo nas denúncias das supostas
malfeitorias de Pelesete e acabou por levar o seu intento avante. Já
não estava em causa a maior ou menor razão de Pelesete, mas a sua
fama de brigão e má rês. Decidiu-se manter uma aparente
imparcialidade, mas de cada vez que Pelesete reclamava pelos seus
direitos de propriedade, o alegado usurpador agredia-o e clamava por
ajuda das autoridades, que emitiam sempre o mesmo discurso: «Moisés
tem o direito de se defender».
Passado
mais algum tempo, Jorge voltou a tomar de ponta um vizinho — Babel
—, que vivia num terreno barrento, com grandes dificuldades. Não
se sabe bem se Jorge cobiçou a olaria de Babel, ou se não gostou da
sua postura altiva, o certo é que passou a acusá-lo das maiores
infâmias contra a mulher e os filhos e afirmando que aquele escondia
estricnina e outros venenos com que pretendia envenenar a família.
O
Grão Conselho, agora já presidido por Jorge, em vista da gravidade
das acusações, resolveu intervir de forma decidida e decisiva, e
não de formas mais ou menos mitigadas como anteriormente. Enviou os
bombeiros à procura dos venenos. Em vista dos resultados negativos,
enviou uma brigada da Proteção Civil, que também veio de mãos a
abanar. Já bastante irritado, o Conselho enviou a Polícia, com
ordens para prender o assassino em potência e encontrar a todo o
custo os tão perigosos instrumentos de morte. Os militares avançaram
destruindo tudo à passagem e, na confusão criada, o potencial
envenenador acabou por ser morto.
Para
grande frustração do Conselho, no entanto, não foram encontrados
os venenos temíveis. «Eles estão lá», afiançava Jorge, que
comandara pessoalmente a operação. Passaram dias, passaram meses,
mas ninguém encontrou qualquer veneno. Os familiares de Babel, na
falta do patriarca, passaram a viver na pobreza, acusando, à socapa,
Jorge de ter inventado tudo para ficar com a olaria, que, em vista
das dificuldades, a família teve de vender.
O
resultado dramático desta operação de justiça preventiva
desencadeada por Jorge suscitou grande constrangimento em todos
aqueles que tinham acreditado na veemência das acusações e que,
piamente convencidos, tinham apoiado a operação punitiva que veio,
ela sim, a revelar-se assassina.
Jorge
pareceu acalmar por algum tempo, mas foi sol de pouca dura. Certo
dia, saiu-se com uma nova acusação. Segundo ele, um outro
empresário que tinha uma confeitaria no fim da Alameda do Oriente
estaria a roubar-lhe as receitas dos bolinhos da sorte, pelo que
apelava a toda a população para que boicotasse a produção de
doçaria do gatuno.
Foi
a gota de água que faltava. O povo começou a murmurar, houve quem
investigasse o passado de Jorge, soube-se o caso das mentiras que,
compulsivamente, lançara quando era pastor numa aldeia distante e
onde era conhecido por Jorge Trafulha.
O
Grão Conselho reuniu-se de emergência e discutiu-se o problema de
Jorge, já como caso patológico. Em vista das provas demolidoras, o
Conselho mandou emendar a injustiça feita ao cultivador Galego,
voltando ele a poder vender os seus produtos na vila; delimitou e atribuiu um bocado generoso de terreno ao alegado intruso Moisés,
devolvendo ao injustiçado Pelesete a maior parte da sua propriedade;
obrigou Jorge a devolver a olaria aos familiares do infortunado Babel
e a indemnizá-los pelas agressões sofridas, e instituiu o livre
comércio em toda a vila, quer de doçaria, quer de quaisquer outros
produtos.
Jorge
Trafulha, em vista da grave derrota sofrida — em perda de poder, de
prestígio, de credibilidade e até de grande parte da fortuna —,
achou melhor voltar ao antigo trabalho de pastor. “Talvez ele
aprenda humildade com as ovelhas e moderação com o silêncio
edificante das serranias”, comentava-se, mas, pode alguém ser quem
não é?
Sabe-se,
sim, que o sobrenome “Trafulha” passou, desde então, a ter o
sentido pejorativo que hoje conhecemos.
Joaquim
Bispo
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Esta fábula foi selecionada em concurso literário para integrar a coletânea de contos “Esopo Revisitado”, da Editora Olympia.
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Imagem:
Styler [João Cavalheiro], Sem título (Pastor) [Ti
Lopes], grafíti (detalhe), 2018.
Alpedrinha,
Portugal.
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2 comentários:
TANTOS TRAFULHAS QUE A SOCIEDADE CRIA QUE A AMBIÇÃO DESMEDIDA DESSES TRAFULHAS TANTAS VIDAS CEIFA.
Cuidado com os trafulhas, EJVeiga!
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