quando te disse: vamos
comprar casa
nessa altura, eu sabia que
podiamos pagar a prestação
pagavamo-la como se fosse
renda
e tu sabes, mãe, que nunca mais
houve casas arrendadas, que nunca mais se viram escritos nas janelas como era
no tempo em que vivíamos em casas alugadas, que vivemos sempre em casas de
aluguer e o pai dizia: está para alugar uma casa com um belo quintal, e se nos
mudássemos?
eram outros tempos, sei
mas, hoje, onde moraríamos,
interrogava-me
em tua casa seria impossível
que era pequenina: o pai nunca alugou a casa com o quintalão que talvez tu o
tenhas avisado: tem cuidado!
mas hoje eram outros tempos
e anunciavam facilidades
que comprássemos, que nos
concediam empréstimos com juros baixos
que, diziam, o mercado
imobiliário necessitava desse impulso
e tu, dizias-me, sábia: Maria
do Rosário, tem cuidado!
e eu a seguir os teus
conselhos, nunca usufrui de pagamentos além do ordenado, nem dos cartões de
crédito que vozes simpáticas ofereciam em telefonemas constantes
a oferecerem ilusões, assim
me dizias, mãe
juros, e mais juros, para enriquecer
os poltrões, avisavas-me
que tu tinhas a sabedoria de
quem nem tinha tido sapatos com que saísse à rua
mas se não pedíssemos ao
banco como poderíamos ter casa
como faríamos sem o
empréstimo, perguntava-me
onde, de outro modo, viveríamos
com as crianças quando a senhoria do apartamento de duas assoalhadas disse: ou pagam
uma renda actualizada, ou são despejados
e eu sorri-me do termo
alugáramos na condição de
sairmos, mal ela precisasse: alugo sem contrato, repetiu, quando lhe fomos
falar, estava eu grávida do primeiro, ainda estávamos casados e felizes, eu e o
pai deles
ainda ganhávamos, um e
outro, ordenados de doutores, assim diziam
as vozes
a prestação do empréstimo
ficaria um pouco alta, mas a casa seria nossa
e decidimos
e decidimos
tínhamos, ao tempo, dois
subsídios e aumentos de ordenado regulares; vivíamos, até, com algum desafogo:
os meninos na escola e na música e no desporto
fazíamos, até, férias,
curtinhas e em hotéis baratos ou acampando, e tínhamos um carro, cada um, mas
nunca um carro novo
depois, tudo foi acontecendo
e nem sei como, e nem percebi
porquê, deixaram de telefonar a oferecer o mundo a crédito, deixaram de dizer: “compre agora, pague depois”
e os telefonemas tornaram-se
avisos de vozes agressivas a avisar que tinha terminado, há dois
dias, o prazo
e os media anunciavam o princípio
da poupança e denegriam os seus violadores
e o que mais se ouvia era
falar em penhoras de ordenados
tu terias dito, mãe: é o
lucro, o visado, Maria do Rosário, o lucro e não o bem da gente
e terias acrescentado: toma
cuidado!
mas tudo foi acontecendo,
mãe
e fui pagando, tantas vezes
nem podendo, sobretudo depois que o pai deles partiu sem nem dizer adeus e o
tribunal nunca mais decide uma pensão, e eu sozinha a pagar tudo e desde há
quase um ano o meu desemprego…já fiz limpezas, e dê explicações e fiz aquela
receita de rissóis que me ensinaste, mas, ainda assim, é escasso o mercado…muitas
vezes, não deu para a prestação…mal dava para que os meninos não passassem fome
e, ainda assim, cheguei a pedir e ouvi, mãe, aquele: tenha paciência, hoje não
posso, o ladainhar de quem não sabe que há quem não tenha mesmo nada
tu tinhas-me dito, mãe, tu
tinhas-me contado, mas eu nunca tinha vivido
de que culpa me acusam é o
que, hoje, me pergunto
se terei sido eu que não
segui os teus conselhos
se terei sido eu que errei, que
não tive o cuidado de que fui avisada
vão retirar-me tudo, mãe
que, dizem, o recheio é também penhora
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