Cobrança
Ao longe, Marieta conseguia enxergar a silhueta
do
que parecia ser uma mulher, se o
que ela estivesse vendo fosse mesmo um vestido. Devia ser a prima.
Já não era sem tempo,
pensou.
Eleonora
vinha
caminhando
devagar,
trocando
a
mala
de mão
de
vez
em
quando
para
descansar
a
coluna
e
um
dos lados
do
corpo.
Às
vezes,
parava
um
pouco.
O
sol
já
estava mais
baixo,
mas
quando
a
caminhada
começou,
depois
de uma
longa
viagem
de
ônibus
que
havia
durado
mais
de
seis horas,
ainda
salpicava
o
ar
e
a
terra
com
seu
bafo
escaldante, transformando
cansaço
em
exaustão.
Eleonora
foi
se
aproximando
da
calçada
onde
Marieta
a
esperava.
Fazia
mais de
vinte
anos
que
não
via
ninguém
daquelas
bandas,
e
não tinha
certeza
se
era
ela
mesmo.
Havia
seguido
a
orientação: No
ponto
final
do
ônibus,
tem
uma
estrada
batida
de
terra, caminhe
por
ela
que
vai
dar
lá
em
casa.
Assim
que
a
estrada acabar,
virando
não
mais
que
um
fiapo
de
chão,
à
direita vai
estar
nossa
casa,
não
tem
erro.
E
eu
vou
lhe
esperar
na calçada,
havia
dito
a
prima.
E
assim
ela
fez,
e
parece
mesmo
que
ia
dando
certo.
Não sabia ainda como daria a
notícia que tinha ido ali para dar.
Quando
ligara
para
o
único
resto
de
família
que
ainda
tinha,
não
dera
detalhes.
Falara
como
quem
manda
um
telegrama. Papai morreu. Preciso
ir até vocês. Me digam o endereço. Eles o deram, sem entender.
Mais tarde, um pouco mais refeita, ela finalmente falou com todos de
maneira mais sóbria
e
se
fez
entender.
Tinha
havido
um
acidente,
do
qual a
única
vítima
fora
o
pai.
Ela
queria
muito
ter
ido
até
ali
de carro, mas ele havia se
acabado no desastre, de modo que precisara saber como chegar até lá
de
ônibus.
Embora não se vissem há tanto tempo, todos
sabiam o motivo da visita de Eleonora: precisavam falar da casa em
que ela morava com o pai.
Há sete anos, sua mãe havia saído de casa
para ir morar em outra cidade com um homem muito mais jovem que seu
pai, que ela conhecera durante uma visita que fizera a um centro
cultural, onde haveria uma exposição, que ele estava ajudando a
montar, levando os itens de um lado pro outro com a ajuda de outros
homens. Nem ela nem seu pai jamais entenderam a atitude da mãe, mas
um dia seu pai lhe falara do espírito indomável da mulher desde a
época
em
que
namoravam.
Ela
era
dada
a
sumiços,
e
depois reaparecia como se sempre
tivesse estado ali.
Apaixonado, tudo perdoava, sem
antever o que estava por vir e que, enfim, veio. Era da natureza
dela, ele lhe disse, e as forças da natureza devem ser respeitadas.
Ele falava essas coisas como
se
tivesse
aceitado,
mas
quem
o
ouvisse
compreenderia
que
suas
palavras
estavam
mais
próximas
da
resignação.
A disposição
para
refazer
a
vida
com
alguém
nunca
veio.
Um ano
e
pouco
depois
disso,
ele
admitiu
que
estava
deprimido; e os irmãos, que eram
quatro além dele, se reuniram a
pedido
dele
mesmo,
que
fora
até
a
cidade
onde
eles
moravam para pedir que não
continuassem o processo de venda da casa. Ele planejava comprar um
outro apartamento, dali a um tempo, assim que pudesse, na verdade,
mas não agora. Alguns
acharam
que
era
tolice:
a
casa
era
enorme,
já
tinham
tido propostas de duas
construtoras, que queriam
demoli-la para construir um prédio, E se o país
atravessasse uma crise?, um dos irmãos questionou, as ofertas iriam
sumir, disse, exasperado, e era uma grana que daria pra cada um
comprar um apartamento, se quisessem, Inclusive o Leandro,
disse
uma
das
irmãs,
sem
a
menor
necessidade,
mas
no fim,
com
medo
de
uma
disputa
judicial
que
poderia
protelar a venda do imóvel ainda
mais, combinaram com ele um prazo de seis anos, que fora antecipado
em dois anos, por conta de sua
morte.
Marieta foi logo pedindo desculpas por não ter
ido até ela e ajudado com a mala, e Eleonora disse que não tinha
problema, afinal, ela nem tinha como ter certeza de que ela
era
mesmo
a
pessoa
que
aguardavam.
Estavam
há
tanto tempo sem se ver,
justificou. Além do mais, disse
Marieta, eu tenho medo de sair e os meninos escapulirem de casa. Mas
vá entrando, vá entrando, disse a
prima.
A porta da casa estava aberta, e assim que ela
se viu na sala, notou que todos os seus parentes estavam espalhados
ao redor do espaço. Uns sentados à mesa, outros no sofá, e um ou
outro em pé, mas todos pareciam reunidos como para esperá-la.
Eleonora não se fez de rogada e colocou a mala no chão. Quando
levantou a cabeça, todas as feições que enxergava lhe eram
completamente estranhas. As pessoas
que
há
não
mais
que
dois
segundos
ela
conseguia
mais ou menos posicionar em algum
momento da sua infância, quando vinha passar férias na casa de um
dos tios,
agora eram todos gente que ela nunca havia visto na
vida. Deve ser o calor, pensou, e disse para os que ali estavam que
precisava de uma cadeira e de um copo d’água, não estava muito
bem, ao que alguém correu para a cozinha dizendo, Claro, claro, como
pudemos ser tão insensíveis?!
Eleonora
bebeu
a
água
lentamente,
de
olhos
fechados,
na expectativa
de
que
quando
os
abrisse
tudo
voltaria
ao
normal.
Não
voltou.
Todas
as
pessoas
que
se
encontravam
ali,
os
dois tios,
as
duas
tias,
dois
filhos
de
um
de
seus
tios
e
o
advogado que
representava
a
família,
continuavam
sendo
pessoas
que nunca havia visto. Nervosa,
Eleonora nem chegou a abrir a mala onde estavam apenas os documentos
da casa e do processo da venda. Levantou-se, pediu licença e disse
que voltaria
em
outra
ocasião.
Um
dos
supostos
tios
se
interpôs em seu caminho, O que
está acontecendo, Eleonora? Nós temos
interesse
em
que
isso
se
resolva
o
quanto
antes!
Sem conseguir olhar o estranho no
rosto, ela disse, Eu também, mas não estou me sentindo nada bem.
Uma mulher, que deveria ser sua tia, falou então, Deite um
pouquinho, você deve estar cansada da viagem. Eu também achava que
era isso, mas não é. Preciso ir embora, prometo a vocês que volto
outro dia. Ainda ouviu um Se essa menina estiver aprontando
alguma
coisa
pra
cima
da
gente,
e
Ela
pensa
que
estamos exigindo o quê além dos
nossos direitos? antes de conseguir se desvencilhar do irmão de seu
pai que barrava a porta e chegar novamente a calçada. Os tios
ficaram falando alguma coisa dentro da casa, mas ela não
distinguia mais
as
palavras.
Não
fazia
ideia
do
que
eles
lhe
fariam
caso descobrissem
que
o
pai
havia
morrido
afundado
em
dívidas e
que
a
casa
seria
tomada
para
pagá-las.
Estaria
seu
cérebro inventando coisas como
forma de defendê-la de algo
pior?
Marieta
levantou-se
de
onde
estava
na
calçada
assim
que
a viu, Já resolveram? Eleonora
não conseguiu responder. Com a mala debaixo do braço e a lua já
anunciada no céu, correu para longe dali o mais que pôde. A prima
estacou, sem entender, e quando percebeu que Eleonora já ia lon- ge,
jogou-se no chão, voltando-se para a porta da casa. A transformação
levou menos de um minuto. Entrou na casa rastejando e sibilando, onde
juntou-se a todos os outros parentes, que agora também deslizavam
pela casa subindo nas
maçanetas,
deslizando
pela
porta
da
geladeira,
entrando em
gavetas,
enfiando-se
debaixo
de
algum
móvel.
Estavam atarantados, irados,
chacoalhavam seus rabos com força, enlinhavam-se uns nos outros,
doidos por algum ratinho ou pássaro que passasse por ali desavisado,
porque se tem coisa que aplaca a raiva é
comer.
Do livro Todo naufrágio é também um lugar de chegada. Editora Moinhos. 2016.
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