Quando
Cacilda deu por si, após um curto
período de sensação de irrealidade, percebeu que se transformara
numa árvore do jardim em frente de sua casa.
Permaneceu
de braços levantados, curiosamente sem esforço, e pernas bem
metidas na terra, como quem tem medo de se mexer em uma situação de
perigo. Não conseguia discernir sons nem imagens, mas a agitação
do ar trazia-lhe muita informação óbvia e outra que ainda não
sabia bem interpretar, o mesmo acontecendo às subtis vibrações do
solo que lhe faziam tremelicar as pernas.
«O
que terá acontecido?», surgiu na nebulosa da sua consciência, o
que lhe transmitiu um instante de confiança, por, ao menos, perceber
que dispunha dessa capacidade de controlo de si. «Talvez tenha tido
uma quebra de tensão quando me levantei. Ou já estava a tomar
banho? Não me lembro.»
Era
uma chatice, de qualquer modo: entrava às 10 no supermercado e não
estava a ver como podia chegar a horas. Felizmente que no início do
dia havia poucos clientes e talvez as colegas conseguissem aguentar o
serviço sem grandes complicações. Mas do raspanete da chefe não
se ia livrar.
Avaliou
a situação com mais detalhe. Era mais do que as pernas o que tinha
enterrado. Percebeu a pressão da terra até ao alto da anca, o que
um leve roçar das ervas que lhe tocavam veio confirmar. Para baixo,
era humidade e tensão firme. E uma certeza de imobilização. Para
cima, secura, agitação do ar e vibração luminosa. Com esta
vibração vinha um conforto de ganho de energia. Não enchia
quaisquer pulmões, mas a sensação de plenitude respiratória era
real.
«Estou
com a pele muito rugosa», percebeu. «Então as partes da barriga e
do peito estão bem escamosas. Peito, salvo seja. Está mais
espalmado do que quando me deito de costas. Só se forem aquelas
elevações junto à confluência dos braços mais baixos. Caramba!
Se tiver de aplicar cremes a este corpanzil todo, tenho de trazer a
prateleira inteira», gracejou com a situação.
Percebeu
o carro dos do 3º andar a arrancar. «Ainda bem que não me viram.»
Pouco depois, a vizinha da cave a passear o cão. «Se se aproximar,
é capaz de reconhecer a tatuagem em forma de coração que tenho ao
fundo das costas... Não, acho que nem olhou. E se o cão me vem
urinar ao troço… Faço o quê? Atiro-lhe com umas pétalas? Nem
sequer ainda tenho vagens rijas… Ai a minha vida!»
Percebeu
pela primeira vez o toque múltiplo do que deveriam ser insetos. O
primeiro pensamento foi de incómodo, mas pouco depois toda aquela
azáfama por sobre o seu corpo, se lhe podia chamar isso, tornou-se
confortável e até sensual.
«Sensual,
como? Aonde fui buscar esta ideia?», admirou-se. Então percebeu que
o seu sexo estava distribuído por uma miríade de pontos do seu
corpo, onde as abelhas se atarefavam na recolha de pólen, o que lhe
transmitia múltiplas sensações de regozijo. «Devo estar a fazer
uma linda figura, de múltiplos braços no ar a agitar pequenos sexos
coloridos, entusiasmada com os toques de quem chega, entra, deixa
sémen de outras árvores que nem sequer conheço e se vai embora sem
um beijo de despedida...» Sorriu-se com o próprio gracejo, mas
duvidava que algum outro ser o tivesse notado.
Ser
caixa no supermercado era muito cansativo e mal pago, mas tinha essa
particularidade de permitir o contacto com muitas pessoas. Durante
uma jornada de trabalho trocava palavras, sorrisos, olhares e toques
de mãos com dezenas de mulheres e homens. Desde os gatões aos
velhadas. Fora lá que conhecera o último namorado, da lista que já
ia longa e mal sucedida. Fora assim num toque casual, na entrega do
troco em moedas em que algumas tinham caído e houvera risos e troca
de gracejos. Ele devia ter gostado, porque quando voltava procurava
sempre a caixa dela. E voltava cada vez com mais frequência. Enfim,
o costume, em tudo. Ao fim de uns meses a viverem juntos, arranjou
uma desculpa esfarrapada de que precisava de espaço. «Espaço…
Ele é que devia estar aqui para sentir o que é falta de espaço
para as pernas.»
«A
esta hora já deram pela minha falta. Vou ter de inventar qualquer
coisa com a saúde da minha mãe. Lá se vai um dia de salário! E se
isto se prolonga? Quem virá à minha procura? Não será a minha
mãe, com certeza, que fica pesarosa quando não lhe atendo o
telefone, mas mal sabe onde moro. E os ex-namorados foram de vez.»
Com
o avançar do dia e do calor, os festões olorosos de flores brancas,
pendentes dos múltiplos ramos da acácia bastarda em que Cacilda se
transformara eram uma atração irresistível para muitas dezenas de
abelhas e besouros. Ela não lhes resistia, antes se expunha, num
deleite físico de entrega, à orgia que os insetos representavam.
Nunca se entusiasmara com a ideia de ter sexo com mais de um homem,
mas certa vez acontecera. Não gostara. A ilusão de excitação
acrescida gorara-se em grande medida. Era muito membro para dar
atenção, muito físico e pouca alma, egoísmo a dobrar.
«Será
que vou passar aqui a noite? Deve estar frio.» A noite foi estranha.
Com o entardecer veio uma espécie de sufocamento. As folhas já não
recebiam luz, já não lhe transmitiam energia. Teve medo. Então,
paulatinamente, recomeçou a “respirar” com conforto, expirando o
que a estava a entupir. Frio não sentiu muito, só um ténue
encarquilhamento das folhas. Deixou-se entorpecer, num sossego de que
tanto precisava.
O
novo dia trouxe-lhe a perceção ténue, fluida, da absorção que se
produzia nos recônditos que os seus membros inferiores alcançavam.
E a primeira ideia de imobilidade subterrânea também era falsa:
impercetivelmente, as suas extremidades tateavam, sondavam e
deslocavam-se milimetricamente para a humidade. E bebiam. «Ali, pelo
menos, a pele deve estar bem hidratada.» E quando a orgia floral
recomeçou, intuiu claramente os movimentos ínfimos que se produziam
dentro das suas corolas. E esse conhecimento trouxe-lhe uma alegria
que nunca tinha podido sentir — a de que ia ser mãe. Percebeu a
evidência do processo de chegada dos frutos. Daí a uns dias, não
podia ainda calcular quantos, ia “parir” vagens cheias de
sementes. Era de uma grande ironia o que lhe estava a acontecer. E de
certo modo trazia algum consolo às injustiças da vida. Ia gerar
centenas de filhos, poucos meses depois da constatação dramática
de que lhe tinha cessado o período. E não cessara por estar
grávida, que já não estava com um homem havia quase um ano. «Nem
tudo é mau», alegrou-se. Aliás, avaliando bem, quase tudo naquela
situação era melhor do que na sua vida. Não precisava de ir aturar
a chefe e toda a gentalha consumista. Não precisava das angústias
de esperar por um homem, nem das humilhações de ser preterida ou
rejeitada. Não precisava de se angustiar com o envelhecimento da sua
mãe. Só ainda não tinha certeza se ia conseguir habituar-se a
passar a vida sem sair do mesmo sítio. Muitas vezes, da janela do
seu 2º andar, contemplara a acácia e a lamentara exatamente por
esta imobilidade forçada. Mas, talvez, algumas vezes tivesse
invejado a sua exuberância de flores e frutos, inconscientemente,
pelo menos. Seria esta transformação um “castigo” por aquele
pecado de inveja?
Esta
lembrança e as conjeturas bizarras que lhe acudiam, trouxeram-lhe,
no momento, uma suspeita assustadora: «E se tudo isto não passa de
imaginação, de ideias na minha cabeça? Será que estou à janela a
imaginar que sou uma acácia? Lembro-me de, há muitos anos, ter
andado “cismática”.» Assim, explicava-se a sensação de
irrealidade que experimentara antes de se ver transformada na acácia.
Concentrou-se na hipótese, mas daí a pouco pareceu-lhe tão ou mais
bizarra do que a própria transformação. «Mais provavelmente sou
uma acácia que pensa que pode ser uma mulher na janela do 2º andar
a imaginar-se acácia», riu-se, o que, desta vez, transmitiu uma
ténue agitação a algumas das suas folhas. De qualquer modo, não
havia como saber. Esta constatação foi o primeiro passo do
necessário processo de habituação ao seu estado e de aceitação
da ideia.
Com
a chegada do verão e as cigarras a fazerem vibrar o ar que envolvia
o seu corpo carregado de vagens pendentes, como uma mãe cheia de
filhos, mais do que resignar-se à sua condição, abraçou-a com
todos os ramos da sua fronde.
Joaquim
Bispo
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Imagem:
Gustav
Klimt, A
Árvore da Vida,
1909.
Museu
de Artes Aplicadas, Viena, Áustria, 102 x 195 cm.
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(Este
conto recebeu uma Menção Especial «pelo seu realismo mágico e
muita criatividade» no Concurso Literário da AFEMIL — Academia
Feminina Mineira de Letras —, Belo Horizonte/MG, Brasil, em 2016)
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[Esta é a minha humilde homenagem a Kafka e à sua obra “A Metamorfose”, publicada há 102 anos, e que se tornou uma das mais importantes obras de referência da Literatura contemporânea.]
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6 comentários:
Imaginação sem limites do escritor , e muita curiosidade do leitor para saber o que realmente terá acontecido...
Muito interessante e intimista.Fez-me logo lembrar a METAMORFOSE DE KAFKA.Parabéns.
Muito interessante e intimista. Lembrei'me logo da METAMORFOSE DE KAFKA. GOSTEI. Parabéns
Muito interessante e intimista.Fez-me logo lembrar a METAMORFOSE DE KAFKA.Parabéns.
O que “realmente” aconteceu, Águas, foi o que o escritor, que é um grande mentiroso, contou. :) Abraço e obrigado pela leitura.
Obrigado, Maria Fernandes. Pois deve fazer lembrar "A Metamorfose", porque foi inspirado por essa obra, claro. :)
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