de 19 a 28 de fevereiro de 2015
A
maior parte das crianças da vila nasceu na própria vila, e todas
seguiam vivendo ali até o fim. Dizer “nascer na vila” quer dizer
ter nascido mesmo lá, nas próprias casas, vindos à luz da vila
pelas mãos da Velha, a parteira.
A Velha tinha uma neta, ou até bisneta, porque a Velha era muito
velha, e a guria que andava com ela, sua ajudante desde muito
pequenininha, na época dessa história, não devia ter catorze anos.
Era certo que tinha catorze anos quando ela ajudou a nascer Nenê, o
filho da sua melhor amiga. Depois que Nenê nasceu, a mãezinha dele
virou Mãezinha. A melhor amiga, a primeira pessoa a ver a carinha
amassada dele, virou Madrinha, ou Dindinha. Entre si, se chamavam
Comadre.
Mãezinha foi tri corajosa, mais do que tinham sido as irmãs, que
preferiram a cesária na Santa Casa. Quis ganhar de parto normal, em
casa, como a mãe dela tinha ganho ela, as irmãs e o irmão. E quis
que Nenê fosse o primeiro parto da melhor amiga, que chamou pra ser
madrinha. Tinham a mesma idade, as gurias. As duas estavam
economizando pra festa de quinze anos desde os treze. Compraram
juntas o enxoval do Nenê.
Também tinha, na época dessa história, os guri, que sempre andavam
juntos. Eram seis, os guri. Um dos seis era o pai do Nenê. Depois
que Nenê nasceu, virou Paizinho, mas o que mais pegou foi Compadre,
porque era mais engraçado, e nenhum dos guris se animou a chamar ele
de Paizinho. Compadre era só um guri antes do guri dele nascer.
Continuou um guri depois. Era bonito que era um diabo. Ficou com a
Mãezinha, mas já tinha ficado com a Dindinha, e com quase todas as
gurias da vila. Gostava da Mãezinha, gostava das outras também, não
pra casar, ele dizia, Como assim, casar?. Mas depois que o Nenê
nasceu, quis arrumar um emprego e começou a construir uma casa pra
ir morar com a Mãezinha, nos fundos da casa da mãe dele. Era o
único dos guri que trabalhava.
Outro dos guri, o mais velho, que os outros chamavam Mais Velho,
morava sozinho com os três cavalos que criava na última casa na
única rua da vila. Os outros debochavam dele. Se aquela rua fosse um
intestino, a casa dele seria o cu. Ele ria junto. Só sai merda dessa
vila mesmo, e todo mundo passa pela minha casa, tá certo. Na outra
ponta da vila, na entrada, ficava, quem diria, uma boca. Eu não
digo? E todo mundo ria. Os caras vinham de carro do centro, ou do
bairro ali perto, passavam na boca, pegavam, pagavam ou, dependendo
da cara deles, pagavam e depois pegavam, atravessavam todas as curvas
da vila e saíam, passando pela casa do Mais Velho. Olhaí a merda
indo embora. Eles riam que se mijavam. Mais velho era engraçado pra
caralho.
Outro dos guri era o Caçula. Caçula era irmão do Compadre, tio do
Nenê. Antes era só Caçula. Nasceu o Nenê, virou Tio Caçula.
Devia ter onze, ou mais, ou menos, ele não dizia. Queria ser grande,
como o Mais Velho, que era um touro. Tio Caçula descobriu a punheta
só ano passado, e não quis mais saber de outra coisa. Tocava oito,
dez, doze por dia. Ficava louco se ficasse mais de duas horas sem
bater uma. Sentava no fundo da sala, estava no sexto ano, e batia até
esporrar nas cuecas, olhando pra qualquer pedaço de pele das colegas
que conseguisse ver. Vivia com cheiro de porra. A mãe deles deu
nele até ele tomar vergonha, quando chamaram ela na escola. Ficou
uma semana de castigo. Batia doze punhetas por dia, do mesmo jeito.
Outro dos guri era filho da dona da boca. Os outros apelidaram ele de
Dentinho, porque ele perdeu um dos dentes da frente numa briga. O
dente era de leite, mas a história era boa. Nasceu outro no lugar.
Era colega de aula do Tio Caçula. Dentinho era ruim de briga, mas
era metido. Uma vez quis botar pra cima do Jamanta. Deu na cara dele
no recreio. O Jamanta deu um soco na barriga do Dentinho que fez ele
mijar nas calças, na frente de todo mundo. O Mais Velho e o Compadre
esperaram ele passar pela casa do Mais Velho. Chamaram ele, de boa. E
aí, Jamanta, tá a fim de jogar um Play? Jamanta era louco por
videogame. Jamanta entrou na casa do Mais Velho. Os outros guri tavam
lá dentro. Jamanta saiu da casa do Mais Velho, mancando e cheirando
a merda. Depois disso, baixava a cabeça quando via o Dentinho.
Outro dos guri não morava na vila. Morava no bairro ali perto, com a
avó, mas a mãe dele trabalhava na vila, na boca da mãe do
Dentinho. Eles respeitavam. Nunca nenhum dos guri falou nada da mãe
dele. Nem quando Mais Velho foi com ela. Ele era um cara tão gente
fina que os guri chamavam ele Gente Fina. Pegou. Lá vem o Gente
Fina. Aí, Gente Fina! Gente Fina levava coisas pra casa da avó, que
a mãe dele mandava, e levava coisas pra mãe, que a vó dele
mandava, e às vezes levava coisas da boca da mãe do Dentinho pra
outros lugares, e ganhava uns pila. Comprava tudo em revista em
quadrinho. Era fã do Batman. Batman é o cara!, ele dizia, enche os
bandido de porrada, demule os cara, tá ligado, mas não mata os
cara. Mataram os pai dele quando ele era guri, tá ligado., Grande
merda, dizia o Mais Velho, mataram os meu e nem por isso eu sou o
Batman., Minha vó contou que mataram meu pai ano retrasado., E daí?,
E daí que era o meu pai, caralho., Grande merda, se mataram teu pai
é porque ele merecia., Não conheci meu pai., Nem eu., Nem eu o
quê?, Não conheci o meu também., Ah, tá, mas tu conheceu o meu?,
Conheci., E aí?, E aí o quê?, Ele merecia morrer?, Sei lá, Gente
Fina, era um merda, tá ligado, ficou devendo, não quis pagar,
queimaram ele. É assim que funciona., É foda., É, é foda., Trouxe
uma nova do Hulk, quer ler?, Bah, afudê, me amarro no Hulk!
Outro dos guri era o irmão da Mãezinha. Quando Compadre começou a
namorar com a Mãezinha, o irmão dela virou Cunhado. Depois que o
Nenê nasceu, virou Tio Cunhado. Tio Cunhado era um guri quietão, na
dele. Tio Cunhado era apaixonado pela Dindinha, e isso era
insuportável pra ele. Pensava nela o dia todo. Sentia a espinha
gelar quando ela chegava. Ficava atrás da parede ouvindo a voz dela
na sala, ela conversando sobre as coisas do Nenê com a Mãezinha, e
sobre os outros nenês que ela ajudava a parir. Ela ria de um jeito
lindo, não tinha vergonha de rir, como a Mãezinha. Quando Tio
Cunhado tomava coragem, ia até a sala, sentava ali e fingia que
assistia televisão, mas não se controlava e olhava pra ela, quando
ela não estava olhando. Que cor linda. O jeito que ela arrumava o
cabelo. O jeito que ela parava com as mãos. O jeito que segurava com
tanto carinho as mãos da Mãezinha. Quando Dindinha olhava pra ele,
o estômago ficava gelado, e ele desviava o olhar. Achava que ela
sabia que ele gostava dela. Uns dias que ela ficou sem aparecer, ele
teve febre. Quando soube que Dindinha tinha ficado com o Compadre
antes de ficar com a Mãezinha, imaginou Cunhado sendo atropelado por
um caminhão. Mas tinha o Nenê, e ele não queria que o Nenê
crescesse sem pai. Eles eram amigos, no fim das contas. Mas ficou
emburrado com Compadre por uma semana, sem explicar por quê. Mais
Velho sacou tudo. Mais Velho sempre saca tudo. Um dia, Tio Cunhado
tomou coragem de ir falar com Dindinha. Elas tavam combinando as
coisas pro batizado do Nenê. Quando ela tava indo embora, de
noitinha, ele chamou ela. Dinhinha., Oi, Tio., Posso falar contigo?,
ele estava tremendo, talvez ela tenha percebido. Fala aí., Não sei
se eu consigo., A vô tá me esperando, Tio Cunhado. Quer ir comigo
até lá? Tá tarde. Ela morava com a vó no sítio, e o último
poste era na frente da casa do Mais Velho. Dava pra ouvir o coração
dele batendo. Saíram pelo portão. O que que foi, Tio?, ela
perguntou, ele resmungou, mas ela não entendeu. Ela chegou mais
perto. Fala, guri. Eles eram da mesma altura. Estavam passando
debaixo do poste. A luz criou um negócio em volta dela, não dava
pra ver o rosto dela, só o contorno iluminado. Ela parou, de frente
pra ele, e o poste ficou atrás dela. Ela devia ver a cara dele, mas
ele só via aquela luz em volta da cabeça dela. Ele nunca mais
conseguiu esquecer aquela imagem. Eu to apaixonado por ti.
A Dindinha riu, na hora. Riu muito, daquele jeito que ela ria. No
começo, ele riu também, nervoso. Talvez ela estivesse nervosa
também, ou talvez tivesse achado graça. Ela não conseguia parar de
rir. Tio Cunhado começou a ficar chateado. Um nó na garganta. O que
é que foi? Por que tá rindo tanto?, Eu não acredito que tu disse
isso, cara., Por quê?, Ela deu um passo na direção dele. Ele
estava com os braços estendidos, caindo com o próprio peso.
Dindinha segurou a cabeça dele com as duas mãos. Ele não sabia
beijar. Ela teve que ensinar. Não sabia o que fazer com os braços,
e ela ensinou isso também. O beijo era muito babado, com a boca
muito aberta, e ela fechou a boca dele, com os dedos da mão assim,
apertando de leve os lábios dele. Não abre muito, e mexe a língua
mais devagar. Ele fez direito, depois. Ela gostou. Gostou de como ele
era carinhoso, do jeito que fazia um negócio no cabelo dela, na
nuca. Ela não conseguia ver, porque estava fazendo sombra na cara
dele, o poste estava atrás dela, mas ele estava beijando de olho
aberto. Queria ver ela, mas só via o breu. Sentia o hálito dela
dentro da boca dele, a respiração dela perto da dele, as duas
ficando mais forte. Não sabia se queria parar, se ela tava cansada,
mas ela continou beijando ele. Ficou com vergonha quando sentiu que
estava ficando de pau duro. Afastou um pouco. Eu te amo, Dindinha.
Dindinha deu um passo pro lado, mas continuou olhando pra ele. O
rosto dela finalmente ficou iluminado. Meu Deus, como ela era linda,
ele pensava depois, mesmo que não conseguisse mais lembrar a cara
dela naquele dia. Ela riu. Deu uma ajeitada no cabelo crespo. Não
fala merda, cara., Eu te amo, de verdade., Tá tarde, Tio. Me leva
até lá na entrada. Eu te amo, ele disse, olhando pra baixo. Ela
pegou na mão dele. Cunhado tava sentindo uma coisa que nunca mais
voltou a sentir. Teve que se segurar pra não chorar na frente da
Dindinha. Foram caminhando de mão dada até quase a esquina. Eles
dois soltaram quando chegavam perto do poste, na frente da casa do
Mais Velho. A estradinha que levava pra casa dela começava depois da
cerca de arame farpado, era só pular. Tá bom aqui., ela disse. Te
levo até lá., ele falou. Ela pensou um pouco, Não precisa mesmo,
Cunhado. Ele ficou parado, olhando pra ela. Ela deu mais um passo, e
deu um selinho nele. Amanhã eu passo lá., ela disse. A gente vai
ficar de novo?, Não sei. Amanhã tu me traz de novo. Deram mais um
beijo. Ela riu, daquele jeito. Ele riu também. Tchau., ela disse.
Ele ajudou afastar os dois fios de arame pra ela passar. Ela se foi,
sumiu na estradinha escura que conhecia como ninguém. Ele ficou
sozinho, parado, por um tempo. Ninguém saberia dizer se ele riu ou
se ele chorou naqueles minutos que não acabaram mais.
Quando Cunhado voltou, Compadre, Caçula, Dentinho e Gente Fina
estavam fumando sentados no cordão da calçada, na frente da casa do
Mais Velho. E aí, Cunhado, perguntou o Mais Velho, Comeu? Vai à
merda, Mais Velho., Já to na merda, disse o Mais Velho, todo mundo
riu. Tá ligado que ela dá pro Jura, né?, disse o Compadre. Quem?,
perguntou o Cunhado. A minha vó! A Dindinha, porra. A Dindinha dá
pro Jura desde a quinta série. Diz que ele bate nela, e que ela
gosta., disse o Compadre, rindo. Vai tomar no cu, Mais Velho. Vão
tudo vocês tomar no cu, tá ligado. Vão se foder!, gritou Tio
Cunhado. Os outros riram até não poder mais. Cunhado não parou, e
continuou indo pra casa, puto da vida, com muita raiva dos guri.
Ainda conseguiu ouvir o Mais Velho gritando, Ela te chupou do jeito
que chupa o Jura, Cunhado? Ele diz que ela é a melhor. Cunhado
chegou em casa, e teve que se controlar pra não bater a porta. O
Nenê já tava dormindo. Teu namorado é um pau-no-cu, Mãezinha.,
disse Cunhado, com a cara vermelha de ódio. Se jogou na cama e ficou
no escuro, sem conseguir dormir. Pensava ora na imagem da Dindinha
com o poste atrás dela, com aquela luz dourada no cabelo dela, ora
no Jura com cara de safado, e a Dindinha chupando ele, ora imaginando
o Jura com a garganta cortada, esguichando sangue pelo buraco aberto,
que nem naquele filme.
No outro dia, Cunhado não saiu de casa, não quis ir à aula. A mãe
deles, que depois que o Nenê nasceu virou Vó Zinha, saiu antes das
sete, ela trabalhava no centro, e voltava tri tarde, no último
ônibus. Eles se viravam bem. A Mãezinha saiu logo depois, junto com
o Compadre, antes de ele ir pro mercado, pra levar o Nenê no
postinho. Cunhado ficou em casa, sozinho, dormindo, a manhã toda.
Antes do meio dia, bateram na porta. Era Dindinha.
Oi, ele falou, assustado., Posso entrar, ela perguntou?, Entra, ele
falou, saindo da frente da porta, fechando em seguida. O que tu falou
pros teus amigos?, Eu não falei nada. Fala o que eles te falaram,
então., Não interessa, eles são uns babaca., Fala agora o que eles
te disseram, se não eu nunca mais olho na tua cara!, ela tava muito
braba., Falaram que tu dá pro Jura desde a quinta série., ela botou
as duas mãos nos olhos, Eu vou matar aqueles filhos da puta., Eles
são uns babaca, não liga., Cunhado disse, tentando abraçá-la. Não
chega perto de mim!, Mas eu não falei nada, Dindinha. Até te
defendi. Não preciso que me defendam, tá me ouvindo? Esses merda
não sabem nada da minha vida., Tu tá muito nervosa, Dindinha., E
vou ficar mais ainda se eu não tirar isso a limpo. Tu sabe o que
aconteceu? Alguém foi falar isso pra minha vó. Os teus amigo
ficaram gritando na rua que eu isso, que eu aquilo, agora a minha vó
tá louca, quer fazer escândalo. Tudo isso só por causa de uns piá
de merda., Mas tu tem alguma coisa com o Jura?, Até tu, Cunhado?,
Tem ou não tem?, Olha, vai à merda tu também. Vocês são tudo
igual, um bando de piá cagado. Maconheiro de merda!, disse Dindinha,
indo na direção da porta. Dindinha, calma. Calma, porra!, disse
Cunhado, parando entre ela e a porta. Me deixa sair, se não eu.,
Senão tu o quê? Vai contar pro Jura?, Sai da minha frente,
Cunhado., Vai contar pra ele?, Talvez. Se ele já não souber., Então
é verdade que tu dá pra ele? Tu chupa o pau dele?, Não é da tua
conta. Sai da minha frente!, Chupa ou não chupa?, Não, Cunhado. Eu
não chupo ninguém. To com nojo de ti. Sai!, Desculpa, Dindinha.,
Anda, sai da minha frente agora, senão eu vou gritar., Dindinha,
desculpa., Sai, porra!, ela disse, empurrando Cunhado. Cunhado se
esquivou, agarrando o braço dela, Eu to com ciúme, caralho, tu não
tá vendo?, E eu to com nojo da tua cara. Não fala mais comigo, seu
babaca., A gente não vai mais ficar?, Eu nunca fiquei contigo,
otário. Aquilo foi só um beijo. Um beijo ruim pra caralho, ainda.
Tu não sabe beijar. Piá! É isso o que tu é. Um piá! Agora me
solta.
Cunhado soltou. Dindinha abriu a porta e saiu. Cunhado caiu de
joelhos, depois deitou, e ficou chorando até cansar.
Jura encontrou o Caçula e o Dentinho na saída do colégio. Todo
mundo dizia que o Jura era perigoso, mas ninguém tinha visto ele
fazer nada com ninguém. Era mais velho que o Mais Velho, já tinha
até uns cabelos brancos. Que tinha sido preso, que tinha matado um
cara, que tinha matado mais de um cara, que tinha feito um monte de
coisa que ninguém sabia. Jura não falava com ninguém, e só
aparecia na boca pra comprar cachaça, dava boa tarde e ia embora.
Morava no campo, numa tapera perto da casa da Velha.
As pessoas na vila diziam um monte de coisas. Diziam que a Dindinha
vivia meio que amaziada com ele. Que se ouviam os gritos dela, todos
os tipos de grito, dentro de casa. Diziam que ele botava os bichos
pra dormir dentro de casa, e que faziam coisas, o Jura, a Velha e a
Dindinha. Que eram macumbeiros e tudo. O Jura esperou a saída do
colégio. Caçula conseguiu escapar. Dentinho não. Deu dois tapas na
cara do Dentinho. Disse, Vou capar um por um se continuarem falando o
que não devem de mim e da guria. Olhou no grão do olho do Dentinho.
Dentinho acreditou nele.
Mãezinha soube da história quando chegou em casa com o Nenê.
Tentou ligar pra Dindinha, mas a Dindinha não atendia. Quis saber do
Compadre, O que vocês andaram falando, pra Dindinha não querer
falar comigo?, Compadre falou, A Dindinha é uma puta. Tu não tinha
que andar mais com ela. Andou até dizendo que o Nenê não é meu
filho. Ela é uma fingida, tá ligado. Ela tem inveja de ti, porque
tu tem o Nenê e agora tem uma família. Mãezinha ficou pensativa.
Cunhado tava no quarto, e ouviu tudo. Saiu de lá com sangue nos
olhos. O Compadre se antecipou, O Cunhado levou ela pra casa ontem.
Ela deu pra ele no mato. Ele contou pra nós., Mentira, Compadre! Que
mentira!. O Nenê começou a chorar. Eu fiquei com ela, sim, mas foi
só isso. Os guri que começaram a gritar na rua, depois, que ela
dava pro Jura., O quê?!, gritou a Mãezinha, o Nenê cada vez mais
furioso, Mas vocês são uns inútil mesmo! Vocês não sabem nada e
ficam falando merda! Sai daqui os dois. Compadre!, alguém gritou na
frente da casa, era o Mais Velho. Compadre e Cunhado sairam. Mais
Velho estava na frente, com a mesma paciência de sempre. Chega aí,
Compadre. Chega tu também, ô, pegador, temo que trocar uma ideia.,
Qual é?, perguntou o Compadre, Cunhado chegou logo depois. Mais
velho disse, olhando pro Cunhado, O comedor da tua princesa mandou um
recado pelo Dentinho. Mãezinha saiu na frente da casa. Onde é que
vocês vão?, ela gritou pro Compadre, com o Nenê no peito. Relaxa,
mulher., ele disse, Vamo ali resolver um bagulho.
Os seis guri estavam na casa do Mais Velho. Cunhado não sabia o que
pensar. Estava confuso com tudo aquilo. O Jura mandou dizer que vai
capar nós tudo se a gente continuar falando dele e da Dindinha,
disse o Dentinho, pela oitava ou décima vez., O Jura é perigoso,
disse o Gente Fina., Dá pra ver na cara dele. Vamo esquecer essa
merda toda. Sei lá, pedir desculpa pra Dindinha. O Mais Velho serviu
um martelinho de cachaça e tomou num gole. Ele quer capar a gente,
vamo lá mostrar pra ele então, como é que se capa alguém. Seis
contra um, doze bola contra duas. Vamo ver se ele é colhudo mesmo.
Cunhado olhou nos olhos do Mais Velho. Mais Velho tinha sacado tudo.
Ele sempre saca tudo.
Os guri foram até a tapera pelo meio do mato, na trilha que eles
mesmos usavam pra ir pescar no açude, que ficava depois da casinha
do Jura. Ele tinha uns quatro cachorros, mas já tavam acostumados
com os guri. Nem latiram quando viram eles saindo do meio das
árvores, umas seis da tarde, quando já tava escurecendo. A chaminé
tava fumegando, então, ele devia estar em casa. Ô Jura!, gritou o
Mais Velho, Vem aqui fora capar a gente!. O Jura resmungou lá
dentro, depois saiu. Mais Velho, Compadre e Gente Fina estavam na
frente. Gente Fina, Caçula, e Cunhado, um pouco pra trás. O Jura
saiu na porta. Os cachorros começaram a latir, ele assobiou e eles
pararam. Jura não disse nada, estava com a mão pra trás. Mais
Velho também estava. Se encararam. Jura mostrou que tava com um
machado. Dentinho deixou cair uns pingos de xixi na cueca. Compadre
bateu de ombro com Mais Velho e cochichou, Vamo embora, Mais Velho.,
Nada, só vamo dar um susto nele, só. Alguém espiou de dentro da
casa. Volta pra dentro, disse o Jura. A pessoa saiu.
Era a Dindinha. Cunhado deu dois passos pra frente, ficou do lado do
Dentinho. Cunhado e Dindinha se encararam. Ela tava chorosa. Tinha
uma marca vermelha na cara. Ficou do lado do Jura, e tocou no peito
dele, empurrando ele de leve, cochichando uma coisa que os guris não
ouviram. Cunhado só conseguia ver a mão de Dindinha perto do
pescoço do Jura. Lembrou da mão dela no rosto dele, ontem à noite,
quando pensou que era a coisa mais inexplicável que já tinha
sentido, e sentiu raiva quando Jura virou a cabeça de lado,
aproximou a boca da boca da Dindinha. Cunhado pegou o revólver da
mão do Mais Velho e não mirou. Acertou do lado da cabeça do Jura,
meio no olho, o cérebro dele ir parar na fachada da casa.
Dindinha deu um berro, e tentou segurar o Jura enquanto caia. Cunhado
caminhou até lá, com mais cinco balas. Imaginou Dindinha grávida
do Jura, imaginou-a chupando o Jura depois de ter levado uma surra
dele, não imaginou que ela estivesse deitada, meio por cima dele,
tentando segurar a cabeça ensanguentada do homenzarrão, dizendo no
meio do choro Pai... paizinho... Cunhado deixou a arma cair. Ela
olhou pro Cunhado. Ela estava com a roupa empapada de sangue, o lindo
cabelo ensanguentado, o rosto salpicado com sangue e pedaços do
cérebro do Jura. Ela olhou para Cunhado e não reconheceu.
Cunhado olhou para trás. Os guri tinham
corrido de volta pro mato, todos, menos Mais Velho, que estava parado
no mesmo lugar. Dindinha saiu correndo, chorando, na direção da
casa da Velha. Cunhado fez menção de ir atrás dela, mas o Mais
Velho impediu. Deixa ela ir. Me ajuda aqui com o cara. Nenhum dos
guris nunca falou quem tinha atirado no Jura. A arma foi encontrada
junto com o corpo. Quando veio a polícia, Mais Velho se entregou,
numa boa. Ele mesmo disse onde tinha enterrado. Disse que fez tudo
sozinho. Nunca ninguém soube pra onde a Dindinha e a Velha tinham
ido, depois daquilo. Dizem que ela voltou quando o Nenê já era
grande, pra vê-lo uma última vez, antes de sumir pra sempre. Dizem
que ela tinha também tinha um gurizinho, que ninguém sabe de quem
era filho. Dizem também que a Dindinha perguntou pelo Tio Cunhado,
mas a Mãezinha não soube dizer onde ele andava. Na real, dizem que
ela não quis dizer o que tinha acontecido.