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terça-feira, 28 de abril de 2015

TIQUIRA

            Analfabeta, burra, mais ignorante que a filha da Naná Marisqueira. Atoleimada, lerda, uma mula, uma besta, desmiolada e sem futuro. Mesmo assim, Marlene matou o traste do Pajé e fugiu de Barra do Corda.

         Marlene não nasceu. Na trajetória da humanidade, é apenas mais um quidam. Pessoas como ela não vêm ao mundo da mesma forma que as sofisticadas criaturas belas e etéreas que povoam os condomínios fechados. Como que estigmatizados por uma sina hereditária, os miseráveis são evacuados em favelas venéreas ou praças gatunas. Sob viadutos, nas esquinas e atrás das grades, mana uma cascata de escusos necessários à manutenção do bem-estar de uma minoria cujo sangue é azul celestial. Há marlenes aos montes, feitas em série, uma raça pré-moldada para servir de braço e sabujo aos suseranos modernos, que vivem em um simulacro comportamental dos mocinhos pedantes e sebosos das novelas das nove. As marlenes são desprovidas das vias nervosas periféricas da dor, não sentem nada. Treinadas apenas para suportar e suportar e suportar, ostentam a própria miséria como se possuíssem um dom divino. Não reclamam, não discordam, não exigem. A elas cabe apenas pedir, implorar, mendigar por um gesto qualquer de aprovação. Também são bem-vindas algumas peças de roupa usadas e gastas à exaustão, uma fatia dormida de tapioca, meia caneca d’água. Deus lhe pague. 

         E feia. Ai, Marlene é feia. Feia como apenas alguém que se agarra à fome a fim de esquecer um pouco da sede consegue ser. Seus dezoito anos não servem para nada. Marlene é velha, tão antiga quanto a exploração rotineira que castiga o sertanejo e o entorpece de cachaça e promessas desde que os poderosos descobriram que as calamidades naturais da seca e da cheia poderiam servir de perfeito nicho para suas gestões vigaristas, seus governos de escroques.

Marlene tem dois ou três apelidos, nenhum vestido de festa e uma impinge no lado interno de sua coxa sem carnes que, graças a Deus, fornece uma coceirinha gostosa, um indefectível prazer. Alguém diria impossível, difícil de acreditar que justamente ela ― mulherzinha ordinária e axucralhada ― possuía um sonho. E seu sonho era do tamanho de sua cabecinha de minhoca, seu pensamento de piaba. Queria porque queria casar com o Pajé, um sujeito tosco e abrutalhado que era dono de quatro barcos de pesca e, por isso, tido pelos menos afortunados como alguém que vivia no luxo. Desprovido de caráter e moral, Pajé era capaz de surrar aleijados e cuspir na cara de anjinho. E foram justamente essas desprezíveis qualidades que despertaram uma bizarra querença naquele coração que mal existe, que bate pouco, dentro daquela cabaça a qual Marlene chama peito. Pensava ela que apenas um homem indubitavelmente rico e educado poderia tratar a ralé com tão requintado desprezo, com aquele nojo exacerbado.
         Vem cá, diaba disse no dia de sua morte o corpulento Pajé, espalhafatado dentro de uma rede de vistosas varandas rendadas, nu, o membro bêbado, com o cordão de ouro dezoito esmagado entre seus imundiçados dentes. Marlene aproximou-se a adivinhar um nome de senhora, um vestido de noiva, a impinge coçando um pouco mais perto da virilha. Deitou-se sobre o corpo peludo e ensopado de suor, fedido a banha de porco, e permitiu que Pajé a deflorasse.

Ai que dor! Vou morrer, vou morrer... Vou casar, vou casar... sofria imersa em fabuloso contentamento uma esperançosa Marlene, que dentro de pouco tempo lamberia o caldo de galinha caipira impregnado nas pontas gordas de seus dedos cheios de anéis. Viajaria para os Lençóis Maranhenses e o menino que seguraria sua frasqueira comprada na capital a chamaria de Dona Marlene do Pajé. Que honra. Que pena daquela pata, filha da Naná Marisqueira.

         Encontraram o corpo do Pajé banhado em sangue no alpendre de sua casa de alvenaria, dentro da caprichada rede de varandas rendadas. A polícia caçou Marlene por todas as redondezas, mas ninguém a encontrou nas cercanias de Barra do Corda. Talvez tivesse fugido em uma canoa pelo Mearim ou entrado na boleia de um caminhão na BR-226. Marlene simplesmente havia desaparecido da face da terra da mesma forma que aqui havia chegado e permanecido até então: sem ser notada.

         Ao lado do cadáver, havia uma garrafa de Tiquira quase seca, pouco sobrava do líquido arroxeado no fundo do vasilhame. O cadáver do Pajé estava totalmente molhado, como se uma tina de água houvesse sido despejada sobre seu corpo ensebado, que já exalava odor ainda mais rançoso que quando em vida.

Vendo aquela cena, a velha Naná Marisqueira, meio bruxa e grande conhecedora das coisas, resmungou dentre suas pálidas gengivas, ganhando a atenção dos curiosos que se acotovelavam ao redor do defunto:

Deve de tê negado botá aliança no dedo daquela doida e ela fez essa servicidão com o desgraçado. Plantou bem oito, dez facada e, vendo que o desinfeliz num morria, entornou-lhe à fina força uma garrafa de Tiquira goela abaixo e depois banhô o excomungado. Assim num tem cristão que se assobreviva. Tiquira e bãe d’água fria... Num deu outra. Taí. Mortim, mortim. Manda o sanfoneiro Zé Pilintra tocar uma moda que Barra do Corda num tem mais dono. E, quem diria, meu povo? Foi Marlene.







segunda-feira, 27 de abril de 2015

Colcha de Retalhos #8

Seguem alguns breves textos da coluna Colcha de Retalhos, homônima do livro que está disponível gratuitamente AQUI:


VENDO-ME

Rendo-me a esta situação deplorável.
Entrego-me a este sujeito desprezível.
Deixo-me levar como cadela afável.
E vendo-me, no espelho, ajeito batom e rímel.




ALIVIADO

Puxou o ar, para espairar, e soltou aliviado. Sentiu como se há muito tempo não tivesse respirado, inspirado.
Dissipou a neblina que lhe cobriu o mundo e deu um passo atrás. Dali, aliviado, olhou para a própria vida e esboçou um sorriso no canto da boca.




INDISPOSTOS

Os opostos se atraem e se enganam
Mas suas ações, sinceras, os traem




EXPERIÊNCIA

Ao pararem em um semáforo, ao lado de uma carroça puxada por um burro, o garoto ficou observando o animal, questionou-se por alguns momentos e decidiu perguntar:
- Vovô, qual o nome desse negócio que tapa a visão dos burros?
Sem nem ter visto o burro, o avô respondeu, com precisão:
- Preconceito, meu querido. Preconceito.






domingo, 26 de abril de 2015

SLU no Diário de uma PhD

Era pra ser um mero estudo de caso. Corriqueiro. Pesquisa socioantropológica de praxe. Embasaria meu próximo artigo em publicação nacional, quiçá inglesa. Paperzinho extra no meu currículo Lattes. Metodologia adequada. Exata delimitação do corpus. Prazo determinado.

Mas sabe que os estudos desandam, né? De repente, a vida desrespeita a ciência — se é que já houve, de fato, obediência e respeito mútuos entre essas duas obstinadas senhoras.

Confesso que me envolvi. Desacertei. Quem nunca? Respirava teoria há décadas. Anos a fio encaminhando aluno de Mestrado, participando de banca de Doutorado... A ABNT não consegue impor regra à paixão humana! Acabei topando com a realidade e me desorientando.

O nome dele é Altamiro Gomes. Gari do Serviço de Limpeza Urbana (SLU). Lixeiro de pai e mãe. Irmão de caça-recicláveis cooperados. Ex-marido de catadora de piolho. Pai de filhotes piolhentos. Figurino? O laranjão do dia a dia.

Nossa primeira entrevista foi proveitosa. Altamiro não se afastou da vassoura, atraído pelos papeizinhos de bala no chão. A pá, concentrada no saneamento universitário, deslizava ágil e fominha, catando até as poeirinhas miúdas. Intimidado diante do gravador, contou sobre o ofício com alguma reserva. Foi se soltando aos poucos. “É o lixo que me sustenta” — repetia, tentando consolar-se a si mesmo. Disse odiar o uniforme que usava há oito anos, mas que a profissão valia a pena, porque agora ele não passava fome mais. “Meus filhos vão pra escola, comem biscoito recheado, usam tênis de loja. Tenho até moto”.

Falava de forma pausada, com voz grave e rouca. “Parece que os detritos pequenos grudam na goela” — explicou pigarreante. Altamiro tem o Ensino Médio completo e, segundo declarou, admira gente culta como eu. Sabe fazer contas, gosta de história e poesia. “Tenho uns versos guardados, que nunca mostrei pra ninguém. Quem ia ler escrito de gari? Tudo que eu faço, o pessoal associa com sujeira”.
Contou que era bom aluno, mas teve de parar os estudos para entrar na vida adulta. Foi pai aos dezessete anos. O casamento durou seis anos e rendeu mais duas filhas, uma com síndrome fatal. “Com o tempo, a mulher tomou raiva, desgostou pra valer. Parece que a paixão virou nojo. Deve ser assim em todo relacionamento de gari” — sentenciou. Quando falou da filhinha morta, segurou o choro. “Enquanto ela viveu, tentei ser bom pai”.

Foram várias entrevistas técnicas, devidamente registradas. Conversamos de um tudo, principalmente sobre a invisibilidade de sua classe social. “Mas um dia ainda vão me enxergar como gente, doutora. Vão me cumprimentar e me estender a mão”. A fala me comoveu. Fui incitada a lhe fazer o convite: “Altamiro, queria que você fosse à minha casa”.

Ele ficou meio sem jeito, emocionado: “Desentupo caixa de gordura, corto grama, limpo piscina. Vai me contratar como diarista?”. “Não. Você é meu convidado, Altamiro. Quero que tome um chá comigo, ou uma cerveja, se preferir”.

O rapaz pediu uns minutinhos, tomou um banho num chuveiro da universidade mesmo, vestiu-se como gente e veio ao meu encontro. “Pronto, doutora”.

Fomos no meu carro: ele, encolhido no banco do passageiro; eu, dirigindo mal como sempre. Um homem jovem, mas maduro, de poucas e sábias palavras. Nenhum pingo de machismo. No trajeto até minha casa, Altamiro contou histórias divertidas de objetos que havia encontrado no lixo, e algumas macabras, de restos de corpo misturados aos detritos. “Foi uma sensação horrível mexer em parte morta de gente que eu nem conheci”.

Ficou bem à vontade lá na minha quitinete. Deixou os sapatos do lado de fora, arregaçou as mangas da camisa e pediu pra lavar as mãos. “Sei cozinhar. Quer que eu prepare alguma coisa?” Deixei: “Tudo bem. A cozinha é pequena. Quase não uso o fogão. Almoço fora e preparo os lanches no micro-ondas”. Pediu para abrir a geladeira e encontrou alguns ingredientes. “Com tomate, cebola, orégano, ovo de codorna e pimenta, tudo fica bom”. Aquilo virou uma omelete dos deuses!

O primeiro beijo foi na cozinha americana, logo na primeira visita: ele do lado de lá da bancada, vestido com o avental, e eu de cá, completamente acesa, depois de muito me insinuar. Confesso que o ataque foi meu. A doutora pegou o gari!

Depois dos aperitivos, liguei a vitrola. Era um bolero antigo. Pra minha surpresa, ele adorou o som do vinil. Um gari pé de valsa era demais pra minha cabeça! Guiou-me com leveza e elegância: firme, delicado, resolvido! Um lixeiro irresistível, admirável, delicioso — principalmente na minha cama, onde vimos nos encontrando há meses, sempre depois das aulas de Antropologia Comparada.

O cheiro dele nunca foi mau. Miro vai me encontrar asseado, até perfumoso. Vez ou outra, prepara carne de panela, arroz de forno, legumes recheados. Meu apetite só aumenta. Ele cozinha bem, e nos comemos maravilhosamente, sem títulos, sem preconceito, sem regras — como nunca tive a oportunidade, nem enquanto jovem, em nenhuma relação com aluno, engomadinho ou acadêmico.
O lixeiro anônimo e invisível que eu procurava como amostra se tornou o melhor amante.

Até ontem, estava tudo perfeito. Eu viveria assim pra sempre, me encontrando com Miro às escondidas. Porém, ele veio com uma história que cheira mal à beça: disse ter encontrado um par de alianças de ouro no lixo. Insistiu em colocar a mais fina no meu anelar esquerdo e a outra no seu-vizinho canhoto dele. A argola amarela me serviu direitinho, e isso me assombrou. Depois daquela presepada, ele me mostrou os versos que fez “pra doutora mais linda do universo”. Estava confiante que só. O texto era algo que rimava “gari” com “abacaxi”, “lixo” com “bicho”, “professora” com “doutora” e “amor” com “calor”. Um desastre!

Assim que Miro saiu lá de casa, escondi o aro do compromisso dentro de um livro velho na prateleira mais alta da biblioteca. Voltei a ser inalcançável. E que esse gari se mantenha invisível como antes. Não tenho nojo dele. Tenho mesmo é vergonha.

Maria Amélia Elói





sábado, 25 de abril de 2015

Monumento ao 25 de Abril ... O




Perante uma obra de arte, cada observador faz dela uma leitura diferente, o que atesta a multiplicidade de sentidos que as obras de arte, geralmente, têm, mas que também reflete a diversidade de cultura, de aspirações e de conceção do mundo dos observadores.
Perante o monumento de João Cutileiro implantado no alto do Parque Eduardo VII em 97, muita coisa já se disse. Muitas observações esboçam um sorriso condescendente pela marotice que a escultura parece representar, outras mostram revolta pela ordinarice que lá leem, ou pela boçalização de um acontecimento com a pureza que é atribuída ao 25 de abril de 74.

Independentemente das suas declarações, o que o artista quis transmitir não sei. Aliás, uma obra de arte diz muito mais do que o artista quis dizer, ou pensa que ela diz. O que eu vejo, como observador formatado pelas culturas que a minha vida atravessou, é uma crítica violenta e desencantada ao processo começado em 25 de abril.
Todos falam do pénis, do pirilau, do falo. Eu também vejo um membro masculino, mas tão frouxo, tão impotente, tão pequeno, que mais se deve falar em pilinha. Não vejo um pujante e túrgido símbolo masculino no momento de lançar um jorro de sémen fertilizador. Vejo uma ereção diminuta, que mal sai do escroto, sustentada artificialmente por espeques, escorrendo uma aguadilha. (Numa associação óbvia, pode-se falar de xixi, o que podia configurar a leitura extrema, mas direta para as massas, de que o 25 de abril não passou de «tesão do mijo».) Esta tímida escorrência é o que lhe dá a leitura de pénis, mas, em vez da esperada magnificência de obelisco, o nanismo genital transforma-o em repuxo de jardim. Decorativo e irrelevante.

Falta-lhe escala. Colocado na colina talvez mais alta de Lisboa, tinha de ter uma dimensão bem mais avantajada, dada a sua vocação totémica, e lançar um jacto potente de vários metros de altura. Por outro lado, a opção por uma escala diminuta também pode apontar para outra falta de arrojo, a dos encomendadores, que ficariam desconfortáveis com um vergalho monumental no mais alto da sua cidade.

Em posição fronteira e subjacente está um cravo estilizado. É difícil de identificar de imediato, mas é um cravo, sem dúvida: tem um cálice verde e pétalas. Mas são pétalas que parecem ter sido amarrotadas a partir de cima: o cravo foi esmagado pelos poderes cimeiros.
A localização e a forma aplanada podem sugerir uma ara, um altar de sacrifícios, a que não falta a cor vermelha do sangue que foi cravo.

A enquadrar o altar/cravo, duas colunas de mármore polido com pretensões de elegância, mas ainda assim com um tratamento plástico e iconográfico mais expressionista do que realista, característico do escultor. Podem conferir solenidade ao conjunto, como colunas de templo ou círios a enquadrar o local restrito do culto. Neste caso, o culto a um lingam, um pilar cósmico em forma fálica. Ou representar duas classes "polidas" ofertando um sacrifício à força primordial, a fonte da vida. Para garantirem a sobrevivência?

O monumento implantou-se junto ao local onde existia um pedestal destinado a uma futura estátua equestre do Santo Condestável. O pedestal foi semidesmoronado para ilustrar a velha ordem que o 25 de abril queria derrubar. Dado o tratamento plástico de rudeza e as opções formais de assemblagem, todo o monumento se lê como “escombros”. Pode querer ilustrar a nova ordem do 25 de abril que, ao irromper, os provocou, mas também pode querer dizer que este não teve tempo para construir um harmónico novo edifício nacional, não teve pujança erétil para levar a revolução mais longe. O cravo (o povo?) foi esmagado e sacrificado pelos poderes dominantes. De antigo, só se derrubou um pequeno pedestal. Sobranceiros, lá se mantêm intactos os majestosos pilares do Estado Novo, poderosos, eternos!

Joaquim Bispo
* * *
Ilustração de Rodolfo Bispo: https://www.facebook.com/rodolfo.bispo.77







sexta-feira, 24 de abril de 2015

TROVA DE EDWEINE LOUREIRO _ TEMA: CEREJEIRA



Embora breve, uma flor
num galho da cerejeira
ensina lições de amor
que valem a vida inteira.

(Edweine Loureiro
Saitama – Japão)





quarta-feira, 22 de abril de 2015

Segunda voz


Destino é invenção de gente insegura. Diná as vezes tinha vontade de mandar fazer uma camiseta com a sentença estampada em caixa alta. Em vermelho sinaleira, para não restar dúvida e evitar a aproximação da turma do “Deus sabe o que faz”. Consciente de que andava azeda, entendia também que a fossa era inevitável. Tinha obrigação de cumprir o ciclo cinza até o final, esgotar a dor, antes de retomar o colorido. Podia lidar com contratempos, com imprevistos, com problemas, com tragédias, até, mas não contava com a sequência de catástrofes em sua vida. Estava sufocando debaixo de tanto infortúnio e não alcançava as tintas para se repintar.

Realizava tarefas cotidianas como máquina, porque alguém deveria fazê-las, mas era como se mandasse apenas o corpo para a rua. A alma ficava perdida entre as gavetas do armário, cheia de nada. Segundo dia do mês, péssimo para ir ao banco. Era isso ou arcar com uma multa gorda e o beiço do marido. Senha na mão, Diná sentou-se na cadeira vaga na área de espera. Perderia coisa de uma hora naquela bobagem. O senhor ao lado puxou conversa, ignorando sua cara de não-quero-papo. Entre sorrisinhos e concordâncias, lá pelas tantas o homem professa, hoje em dia tem filho a mulher que pode e não a que quer. Depois dos trinta a capacidade de engravidar cai pela metade e a mulher tem tantas tarefas, tantos compromissos que vai deixando a formação da família em segundo plano e quando vê não dá mais tempo, perdeu o bonde. Por que raios ele entrou nesse assunto, pensou Diná, enquanto respondia ah é para o falante senhor, não por acaso obstetra aposentado. 

Saiu com a conta paga e a resistência por um fio. Chega, sabe? Não posso acreditar que estou nessa vida para colecionar perdas feito troféus ao avesso. Perdi o viço buscando a colocação que eu merecia na empresa, depois de anos de dedicação e estudo. Perdi a confiança no meu marido, que provavelmente me trai com alguma ordinária da firma e pensa que me engambela com a conversa da hora extra, da pilha de relatórios para amanhã ou de que ficou preso no trânsito ou. Perdi o emprego para uma criatura mais jovem, mais magra e mais alta, com quilômetros de lattes. Perdi a criatividade. Perdi a energia. Perdi meu filho na sexta semana da gestação, pela segunda vez. E já passei dos trinta. Impressionante como nada evolui, nada nasce de mim. Voltou a pé para casa. Subiu os seis lances de escada. Entrou. Num impulso, foi até a sacada e sentou no parapeito. A vista dava para os fundos do prédio, circundado com grades pontiagudas e cerca elétrica. Despencar dali era morte indiscutível. 

Comum em duplas sertanejas, a segunda voz normalmente é feita pelo sujeito menos expressivo e mais discreto, que tem o papel fundamental de dar o eixo à voz principal. É quem faz pouco sucesso com fãs, mas segura as pontas e apara os exageros do protagonista, não deixa a canção se perder em agudos, não descompassa, pelos dois. Diná não cantava, literalmente, mas é possível que sua ladainha mental tenha encorajado uma segunda voz. Pensa melhor, Diná, disse o rapaz quase transparente, debruçado ao lado dela. Olha bem, olha fundo, olha ao redor. O que mais fazes é gerar. Apavorada com a ideia de estar louca, para completar a derrota, desceu de onde estava, correu para a cama, cobriu-se com o lençol até a cabeça e ferrou no sono. O rapaz fez sua parte. Regou as violetas, o pé de salsa, o de manjericão e o tomateiro de Diná, que recém dava as primeiras flores amarelas, e sumiu.





terça-feira, 21 de abril de 2015

Via Láctea

Viajou dentro da constelação de sardas que banhava o colo nu vialactante da amada, aterrissando no canyon de seus seios cujas aréolas rosáceas destacavam-se à luz artificial feito Fobos e Deimos no horizonte marciano. Pós-cópula, continuaram assim, juntinhos, orgulhoso primeiro casal de astronautas a se amarem no espaço infinito.





segunda-feira, 20 de abril de 2015

A moça que errou de porta

                                                                           José Guilherme Vereza


Mudanças são detestáveis. Em menos de 4 anos, por três ocasiões, Alexandrino praguejou o
destino e a má vontade geral dos senhorios, atravancado entre caixas e mais caixas por
todos os cantos do quarto e sala recém empossado. Xingou também os indolentes da empresa
de mudanças, sujeitos infernais, despejam móveis, tralhas, bugigangas, livros,
trecos e vinis, e o cliente que se foda para arrumar tudo.

Alexandrino passou a esmiuçar seus pertences inúteis, produtos de neuróticos apegos
sem mais nem por quê, coçando o cocuruto, aquele gesto clichê de quem não sabe por onde
começar qualquer coisa. Precisava encontrar seu companheiro de solidão na multidão
de quinquilharias, o que o fez com alguma sofreguidão, já que não se lembrava onde teria
despachado o amigo de observação e delírios.
Lembrava apenas que tinha usado meias e cuecas para proteger a peça de solavancos e mãos
pouco cuidadosas, mas horas depois, teve a surpresa de achá-lo no meio de utensílios de cozinha,
dentro de uma peneira, com duas colheres de pau amarradas em xis.
Não pergunte a razão de estranha proteção.
O importante é que já poderia dar vazão à sua ansiedade.
Enfim, o binóculo.

Apesar de enfurnado no meio de uma reserva de Mata Atlântica, o novo apartamento de
Alexandrino oferecia algumas tentações à curiosidade obsessiva.

O jardim nos fundos de um sanatório à esquerda da varanda foi logo batizado
de “Recanto dos Pulmões”, onde novos vizinhos despertavam com uma orquestra de
tosses e pigarros, pela qual executavam a sinfonia
também batizada de “O alvorecer dos tísicos”.

Em frente à varanda, árvores de copas frondosas, quando agitadas pelo vento,
descortinavam o azul de uma piscina aparentemente em forma de feijãozinho.
Dependendo da fúria da natureza, a piscina aparecia com menos ou mais pudores.
Disse o corretor que uma madame costumava tomar sol de peitos de fora em dia de calor forte,
ousando tirar a parte debaixo quando se sentia observada por olhos babões.
Prato cheio para Alexandrino.

Ligeiramente à direita, estava uma das curvas da ladeira de paralelepípedo que ligava
o edifício à parte mais urbana do bairro, com um ponto de ônibus, um jornaleiro e um quitandeiro
ambulante, todos cobertos pela luz tênue de um poste solitário ao chegar do anoitecer.
Um pouco mais à direita ainda, lado oposto ao sanatório, um edifício de quatro andares
e janelões deixaram Alexandrino saltitando guloso, passando a língua pelos lábios.
Alguns nus ligeiros, toalhas descortinadas, muitas indiscrições.

Mas nada tão atraente quanto à varanda debaixo, à direita ao seu apartamento.
Dava medo de olhar. E assim, Alexandrino nem percebeu que bem nas barbas do seu voyeurismo,
na primeira tarde-noite do primeiro sábado, uma festa estava se organizando.
Ouvia sem atenção o tilintar dos copos, pratos e talheres, o burburinho
apressado de palavras indecifráveis, mas certamente cheias de frisson e
gargalhadas - e a vitrola que já arrastava uma Bossa Nova, algo diferente das canções
que se acostumou ouvir. Alexandrino remexia caixas e mais caixas, empilhava livros,
guardava roupas, já estava exausto.
Mal percebeu a campainha.

- Oi, desculpe, acho que errei de porta.
- Acho que sim. E infelizmente. A festa é no andar de baixo.
- Desculpe mais uma vez. Não quis atrapalhar o senhor.
- Não se preocupe.  E não repare a bagunça. Acabei de me mudar. E não me chama de senhor.
- Então... 
- Então??
- Até ... boa noite
- Pra você também. E erre sempre...

Alexandrino fechou a porta e os olhos.  Reviu uma mulher de vinte e tantos anos, moreninha do sol carioca, vestido tubinho lilás pastel, joelhos à mostra, cabelos curtos roçando os maxilares e um sorriso devastador. Trazia na mão direita um presente e na esquerda algo como uma garrafa embrulhada em papel celofane. Falava olhos nos olhos. Tinha a firmeza da sinceridade e a fragilidade de quem acabou de cometer uma gafe.

Alexandrino não estava acostumado com isso. Nunca o destino tinha entregue em seu domicilio
uma inspiração tão violenta. Chegou à taquicardia.

Apesar de seus quase 38 anos, tinha um medo de mulher que se pelava. Mulher, não: amor.
Sempre dispôs de belas amantes à sua volta e na sua vida, mas nada de amadoras, fabricantes
contumazes de desgostos, segundo o que dizia a partir de alguns traumas inesquecíveis.
Preferia as profissionais, a quem reservava uma boa parte do seu orçamento mensal e nenhum
pedaço do seu coração. Volta e meia acordava com uma contratada, e diante do corpo ao seu
lado, pedia que se vestisse e tomasse o rumo da vida. Sem constrangimentos de parte a parte.
A hora de ir embora, sempre calada, era expressa através de um gentil canudinho de notas
colocado entre um seio e outro, preso ao sutiã. Às vezes, instalava o mimo pela da frente da
calcinha, numa alusão à qualidade do serviço.

E assim partia cada um para o seu canto. As moças cambaleavam seus saltos porta afora e
Alexandrino virava-se para um último cochilo, justo e saciado. Desse jeito Alexandrino
seguia a vida, protegendo-se de tremores como o que acabara de sentir com a moça equivocada,
que mesmo errando a porta, acertara em cheio seus medos mais tenebrosos, sentimentos nada paralisantes, muito pelo contrário: empurrado por uma força incomum rastejou até a varanda,
onde ficou como um pracinha na trincheira, binóculo na mão, olhos fixos nos movimentos
que vinham do apartamento debaixo.
Era um olhar de viés, numa posição de cima para baixo, onde só se alcançava, na maior parte,
chão e assoalho, mas o bastante para descobrir a dona das pernas bem torneadas
que escapavam do tubinho lilás.

Era ela. Que gingava no ritmo de algo parecido com “Era uma vez um Lobo Mau...”. 
Que encontrara o caminho da festa e destilava seu charme venenoso deixando escapar ao
binóculo potente coxas morenas de pelinhos dourados.
Que por inocência ou maldade exibia seu balanço cada vez mais próximo do ponto onde
a varanda pertencia aos abelhudos. E depois do Lobo Mau, vieram Bolinha de Sabão, 
Diz que Fui por Aí, toda sorte de sucessos emergentes, até que Alexandrino sucumbiu.
Perdeu as forças na lajota fria, deixando o tempo para trás.

Voltou aos sentidos no primeiro raio de sol, e percebeu que o sonho era persistente:
a moça permanecia no mesmo lugar, no seu balanço estonteante, agora, embalado de um
Rock and Roll pélvico, coxas mais à mostra do que nunca e, a mais cruel das tentações:
descalça. Completamente descalça, expondo a nudez mal intencionada de pezinhos
esculpidos pelos deuses em dia de diabo.

O que se via naquele momento emanava cheiro de festa e desejo. Cerveja fermentada,
cigarro, uísque, rum, Coca-Cola, vitrola, palmas, risos, gritinhos. Em pouco tempo,
o vozerio já não era tão intenso, tudo foi se dissipando. Mas a moça ainda resolveu
cometer o último ato de perversidade: como certa de que havia testemunha do seu gingado,
chegou o mais que pode no parapeito da varanda. Olhou para cima à esquerda e fulminou
com um sorriso afiado um Alexandrino encabulado, indisfarçável, pego em flagrante,
atrás de seu binóculo. E ainda teve a impiedade de levantar
um copo e lhe mandar entre os lábios um “Já acordou ou nem dormiu? ” 

É possível que Alexandrino tenha respondido. Mas ele não se lembraria.
Estava por demais perturbado para se lembrar de qualquer outra coisa naquela noite,
naquela madrugada, naquele dia que raiava.

Já passava de duas da tarde. Sobre o colchão malvestido de lençóis, ninho improvisado
direto no taco do quarto desajeitado, Alexandrino acordou lentamente ao lado de uma
moreninha nua que ressonava sem pudores nas profundezas a que foi atirada por tantos
êxtases e prazeres diversos e recorrentes.
Alexandrino reparou seu rosto escondido entre os cabelos pretos e um travesseiro sem fronha.
Conferiu orgulhoso o dourado dos pelinhos das coxas por onde se lambuzara minutos atrás.
Fitou sua estatura na medida da sua fantasia, seus pés maldosos semi envoltos num edredom amassado, sua pélvis posta em sossego, tal como seu triângulo bem aparado repousando feliz,
depois de tanta atenção e carinhos a ele dedicados horas a fio.

Embeveceu-se, enterneceu-se, estranhou-se. E olhou em volta:
o tubinho lilás pastel, a calcinha, o sutiã, as sandálias de salto alto, cada pedaço atirado
a léguas um do outro. As caixas, os livros, os vinis, os trecos, tudo que se via pela porta
entreaberta do quarto bagunçado ao caos da sala, tudo fora do lugar.

Voltou os olhos a ela. Como era mesmo seu nome? Sônia, acho que ela disse em algum
momento, um momento qualquer sem ponteiro e sem relógio, que se eternizava a cada instante silencioso e contemplativo. Sônia. Que sorria como se sonhasse, que sonhava como se
sorrisse. Será que ela gostaria de um café na cama? Onde está o pó de café?
Tem manteiga? Pão de forma? Geléia? Queijo fresco? Uma flor na bandeja?
Em que caixa de papelão ficou a torradeira?

Uma semana depois o apartamento estava arrumado.
Com capricho, toques de vida e traços de civilização amorosa.

E lá nos cafundós da entrada de serviço, dois serventes do prédio,
que ainda recolhiam os restos da mudança, quebravam a cabeça
para consertar um binóculo partido.





sábado, 18 de abril de 2015

Fragmentos de areia


         
        
      Uma concha às vezes aparece, mas geralmente caminho sozinha sobre minhas farpas e me perco. Me acho, depois me desacho e penso não vou me suportar. Então vêm as ondas e me recobrem, afogam – eu que sei quase nada de caminhos, sede, calor. Eu que sei tão pouco dos meus grãos finos, ligeiros e arrependidos, distorcidos a tal maneira que nem sei se consigo um dia fazer deles um punhado, em minhas mãos, e deste punhado um corpo, objeto, ser.
O vento me desfez muitas vezes, mas sigo. É doce mudar de direção, despertar, abrir-me ao mundo e com ele me encontrar. Vagar sem ser onda, sendo só grãos de areia que procuram um corpo, o meu, o seu, e que não querem apenas se dissipar. Querem ferver, fritar, fissurar.
Atrito. A areia se cola a meus pés e pernas e arde. Dói, irrita, quero tirá-la, mas a cada vez que vou lavar-me, preciso regressar e ela se gruda novamente. É pegajosa, sinto vontade de rolar, me recobrir toda, e olho para você, que ri de mim e se diverte. Vejo, me acha tresloucada, daí te puxo para mim.
Com minhas mãos arenosas aperto teu pau e te provoco, quero sentir tua língua lambendo minha areia. Jogo um punhado dela, areia, nos pelos do teu peito e te faço rolar comigo. Podemos fazer o que quisermos, não há testemunhas. Até comer areia, e eu passo alguns grãos na minha língua, só um pouquinho, e dou para você provar. Beijo tua boca e esfrego areia no teus ombros. O vento bate e desorienta meus cabelos, sei que nossa areia não ficará gravada. Depois nos lavaremos, e no banho nossos corpos não serão os mesmos. Agora os quero sujos.

Teu pau arenoso roça em mim e cava uma abertura triturante, os grãos vêm junto. Eles me ferem por dentro, mas eu gosto e peço que enfie fundo. Solto o biquíni, espalho areia em meus seios. Percebo querer muitos seios, e já não sei se sonho, se é a areia que vem e mistura tudo, mas dou alguns seios para você. E teu corpo, mãos e pés grandes, arredondados, macios, a nuca forte e larga. Ah, teu corpo está tão repleto que gozo de te ver, a boca no mamilo salgado, e caio para trás, estertorada e gemente.





Habemus manifesto


Pai, olha mais um novo manifesto.
A febre está em 39 graus. Não adianta um termômetro.
O remédio não serve e leva uma multidão indignada para as ruas do país.
Diferente do teu tempo, né? Lá em 68 a marcha era interrompida. O estampido não era de um fuzil, mas de um forte raio que caia sobre a cabeça de tanta gente.
15 de março
12 de abril
Condição febril de muita gente, grande parte com plano de saúde, mal atendido e escutando o jornal sobre a situação de um hospital público, enquanto o almoço acontece e a corrupção anoitece o país.
Esse feito continuará até a hora que parar, por que meu pai?
- O Brasil este senhor a quatro dias de completar 515 anos
sair para manifestar é opção comum
direito eu diria
- Pois é, pai;
ao manifestar tenha mais perguntas que respostas
são fortes armas e argumentos de lamento e incompreensão

Quão bom seria mais manifestos escutados e menos camisas da seleção brasileira de futebol e o onipotente brasão da CBF.
O Brasil é uma nação, não apenas um bando de torcedor em close para um selfie.






sexta-feira, 17 de abril de 2015

Quando acabei de acordar





                   

                     Pernilongo, não venha morder pela manhã, quando acabei de acordar...
















quinta-feira, 16 de abril de 2015

O menino

São os olhos dele que não me deixam dormir. Os olhos opacos, estáticos, engessados, pousados na ausência. Eles não pedem, esses olhos. Não se movem em buscas. Sabem que seja nos arredores, seja no imensurável do longe, o que há é o nada. Não, não é. Antes fosse o nada. Esse vazio que não acalenta, mas que também não dói. O que cerca esses olhos vazios é o tudo. O inalcançável e esfuziante colorido do tudo. Que não lhe pertence. 
Ele apenas desistiu. Sabe que os vidros das vitrines foram feitos para promover o apartheid do pão. Ele sabe — aprendeu nas aulas de cotidiano — que lugar de menino pobre e preto é no sinal dos cruzamentos, nos montes de lixo, nos becos do morro, no papelão das caixas desmembradas em camas, na porta dos cafés pedindo um trocado e ganhando deboche. E limpa com cuspe o sangue do dedo que machucou na véspera. E cheira um pouco de thinner pra matar a fome que nem é de véspera. E não volta para o barraco pobre onde vive com a mãe porque lá agora tem um homem que faz a sua mãe de pasto, e que faz os filhos da sua mãe de pasto. 
Ele não quer olhar mais nada. Não quer ver o que não pode ter. Nem quer ver o que incomoda. Como a piedade nos olhos da mulher que lhe trouxe comida. Foi ontem? Ou anteontem? Ela passou as mãos nos seus cabelos sujos e emaranhados e sorriu e perguntou o nome dele e sorriu de novo. Depois lhe deu a marmita embrulhada num saco de plástico branco. E ele não aguentou. Sentiu o corpo esquentando, tremendo, se preparando para um abraço que não existiria. Mas existiu. Existiu, sim. E aí ela foi embora. Tinha mesmo que ir. Todos vão. 
Por isso ele não quer mais ver. Não ia suportar outro sorriso. Não para depois ter que olhar novamente para a feiura das calçadas cheias de escarros. Ter que olhar para a lata de cola, para os pés descalços, para o dedo sujo de sangue que ele vai limpar mais uma vez com a saliva grossa. Ele não quer mais ver o sol que é amarelo como o dos desenhos dos meninos que ele viu no mural do pátio da escolinha. Viu pela grade. E achou bonito. E quis ter lápis de cor de ponta afiada para desenhar um sol para si mesmo. Para guardar no bolso do short surrado e iluminar o breu do medo.
Ele não quer mais ver o que é bonito. Nem o céu cheio de estrelas, nem as nuvens gordas e brancas, nem os desenhos dos meninos, nem o sorriso da moça que acarinha os seus cabelos. Ver é sofrimento. Desejo de mais. E ele não quer, não pode. 
São os olhos dele que me mordem os sentidos. Até ontem, opacos, apáticos, tão cheios de renúncia. Hoje, dois buracos fundos de onde escorre o sangue ainda vivo que ele limpa com saliva. Dizem que furou com um lápis de cor. Para desenhar um sol por dentro.
Ele agora quase sorri. Eu sigo adiante. Com os meus olhos culpados.






quarta-feira, 15 de abril de 2015

Que Deus o guarde



Ela trazia-o na algibeira da saia, um bolso estreito e fundo que se desprendia a partir da cintura como se fosse alforge.
Um dia mostrou-mo.
Nesse dia, fiquei sabendo do relógio e fiquei sabendo que aquele bolso podia conter tesouros. De vez em quando, raramente, ela segurava a minha mão e guiava-me até eu encontrar o que lá me tinha colocado: um berlinde novo, um par de meias que tecera nas cinco agulhas, um naco de folar doce embrulhado em guardanapo, as primeiras nêsperas num pacotinho de cartão. E, num Natal, lá estavam, embrulhadas em papel celofane, duas notas de réis: foi quando assentei praça, e já tinha sido quando fui chamado para as sortes.
O bolso ficava dependurado entre a saia de cima e a saia de baixo, e balançava ao ritmo dos seus passos. Disso, que, por vezes, tilintasse, e era se havia pedrinha ou dedal ou outra peça que ela tivesse, para ali, jogado. Coisa miúda que bulia com o relógio que era redondo: um mostrador encrustado em prata gravada com risquinhos, raminhos de planta de uma qualquer espécie que também decoravam a tampa que protegia um vidro límpido, vagamente convexo, através do qual os algarismos pareciam arredondar-se.
Mostrou-me o relógio uma vez apenas e eu fiquei maravilhado.
Depois disso, só voltaria a vê-lo ao tirar-lho do bolso, estavam as mulheres a preparar-lhe o corpo para o enterro.
Minha tia-avó de nome Mariana Brites.
O relógio tinha pertencido a um seu bisavô que andaria com ele no bolso do colete preso por uma corrente que se terá perdido, ou terá sido empenhada ou vendida, ou minha tia-avó a terá ofertado pelo casamento de alguma afilhada muito querida.
Esse bisavô de Mariana Brites havia de trazê-lo naquele domingo de Páscoa, quando, no regresso de ter assistido à missa com a bisneta, foi acometido do que nem terá sido doloroso mas tão intenso, que ele nem subiu os dois degraus da casa onde, um dia, eu havia de nascer. Morreu ali mesmo e, por perto, apenas minha tia-avó que um dia ficaria senhora do relógio, esse que ela usava no resguardo de uma saia de cima e outra saia de baixo. E que ninguém lho referisse. Que ninguém nunca lhe perguntasse: que horas são, menina Mariana? que ela responderia: e eu lá sei de horas, criatura de Deus.
E não sabia.
Que minha tia Mariana Brites guiou-se sempre pelas badaladas do relógio da torre e nem terá aberto a caixinha de prata muito mais vezes do que aquela em que decidiu mostrar-me o seu tesouro.
Terá sido, pois, pelo relógio da Igreja que ela soube a hora certa de eu ter vindo ao mundo.
Nasceste às dez em ponto, disse-me, e repetiu-me.
Dez pancadas batidas, uma a uma, na torre da Igreja, e ela contando.
Estaria o meu pé esquerdo a sair para este mundo um pouco depois do meu pé direito, quando Mariana Brites contou a derradeira badalada e, enquanto isso, no bolso da saia, fazia tic-tac o relógio que herdara.
E os deuses que me perdoem se é heresia, mas foi o que fui ouvindo: que ao soar da décima pancada, minha mãe ouviu, não o tic-tac compassado do relógio ressoando de entre cada uma das saias que Mariana Brites, nesse dia, trazia cobertas com um avental muito alvo, mas uma voz que dizia, repetindo: que Deus o guarde, que Deus o guarde. Minha mãe escutando essa voz cava, voz de homem com catarro, ela que, até aí, estivera debulhada em ais e em orações que enviava aos deuses e a São Clemente, santinho da sua devoção. Minha mãe a saborear o milagre de me ter trazido ao mundo, terá escutado a voz que repetia: que Deus o guarde.
Eu ouvi contar e nem foi minha mãe que mo contou.
Terei escutado das mulheres; das conversas que elas permitiam que escorressem pelas frinchas das portas: palavras soltas que me chegavam embaralhadas em medidas de peito e de cintura e linhas e alinhavos e tesouras, nas tardes diligentes da costura.
Terá sido desse modo que fiquei sabendo que minha mãe tinha ouvido uma voz ciciada a quebrar o silêncio imenso e improvável que se dera naquele intervalo entre ela estar gozando um merecido alívio, e eu ainda não ter sido sacudido pelo choro incontido que eram os meus pulmões a aprenderem como.
Ao lado de minha mãe, a ampará-la no acto de eu ter nascido, incansável, pequenina, muito magra, Mariana Brites que nunca confirmou nem desdisse, e também não mostraria pasmo quando, já homem feito, lhe perguntasse: a minha mãe ouviu a voz dizendo que Deus o guarde? ela ouviu mesmo, ti Mariana?
Ficou a olhar-me com aquele seu olhar cinzento muito claro e muito brilhante, e disse, simplesmente: chamava-se Bento, menino; esse seu trisavô era Bento de seu nome.
Que Deus o guarde, terá minha mãe ouvido, e só depois foi o meu primeiro choro, e só depois se deu o largar das fressuras, doendo como se ela de novo me parisse; e, auxiliando, Mariana Brites, minha tia-avó, solteira e donzela como ela mesma se vangloriava ruborescendo, ao de leve, nas maçãs do rosto e no pescoço.
Ia Abril a meio quando vim ao mundo. Eram dez em ponto no relógio da torre e seriam outras tantas no relógio que a tia Mariana Brites trazia no bolso.
No Abril seguinte, sugada por doença indeterminada pelos físicos, minha mãe morreu.
Talvez, entretanto, ela tenha contado: quando me nasceu o menino, ouvi a voz do avô Bento.
Ou nem ela o terá feito, receosa dos deuses, e terá sido a tia Mariana Brites quem tenha dito: no dia que lhe nasceu o filho, o meu bisavô encomendou o menino a Deus.
Terá sido de um modo ou de outro, ou eu não teria ouvido as mulheres segredando: quando lhe nasceu o filho, ouviram a voz dum avô antigo.
E benziam-se, que eu sei que elas se benziam sempre.
E nem terão dito, seja o que seja, acerca do relógio que a minha tia Mariana Brites trazia no bolso.
Talvez nunca nenhuma delas o tenha referido.
Talvez tenha sido eu que imaginei a voz desse avô Bento a surgir de dentro daquele mecanismo escondido na caixinha de prata trabalhada, onde o vidro se mantém límpido e onde ainda se ouve o tic-tac a cada minuto.







sábado, 11 de abril de 2015

-




Meu canto de amor é como um gemido do blues
rasgado
sofrido
melodioso
perdido
como os apelos desencantados da vida...





sexta-feira, 10 de abril de 2015

Notas desde o Fim do Mundo (excerto)

Notas desde o Fim do Mundo
Texto e tradução: Henry Alfred Bugalho

http://www.wattpad.com/story/29132793-notes-from-the-end-of-the-world

Manuscrito recuperado em um sotão em New Lexington, OH (EUA)
Robert Campbell, Jr.

Porque escrevo

Eu escrevo.

Por quê?

Porque não há nada mais para se fazer. Porque não há mais ninguém com quem conversar. Porque é uma afirmação existencial de que eu ainda existo.

Escrevo, logo existo.

Encontrei esta velha máquina de escrever Remington no meu porão. Coisas velhas do meu avô. Ela sempre esteve lá. Bem, pelo menos desde que ele morreu vinte anos atrás. Só decidi dar uma olhada naquelas caixas depois que o mundo acabou; então desci, procurando por alguma razão que justificasse o fato de estar vivo; por algum motivo para me manter persistindo, mesmo não havendo um sentido superior ou transcendental para a vida. Se havia Deus ou deuses ou santos, todos eles morreram junto com o restante da humanidade. Encontrei muitas e muitas fotos, e uma infinidade de cartas. Meu avô havia lutado na Segunda Guerra Mundial. Aqui e ali eu podia ver uma foto dele em seu uniforme, trajando um sorriso de orgulho, provavelmente contente por estar lutando contra os nazistas em algum rincão da Europa. Um salvador do mundo contra as forças malignas do Eixo. Que bela vida ele deve ter tido nesta época! Depois, ele se casou com a minha vó, tiveram cinco filhos, acomodaram-se nesta casa e o resto é história.

Meu pai cresceu nesta casa, e juro que, de vez em quando, posso ver o fantasma dele vagando por estes corredores e quartos à noite. Talvez seja apenas a minha imaginação, ou talvez eu também esteja adoecendo e morrerei em uma semana ou duas. Delírio... Este é um dos sintomas da doença que extinguiu o homo sapiens sapiens da Terra.

Minha família se mudou para cá depois que meu avô morreu. Eu era um adolescente neste período e, para mim, parecia mais uma punição; deixar todos os meus amigos em Manhattan para vir para este subúrbio sem vida e tedioso. Logo que eu tive uma oportunidade, retornei a Nova York para estudar, conheci minha esposa e não retornei mais para este lugar por alguns longos anos. Por que eu viria para cá? Por que eu deixaria as luzes da cidade e as intermináveis aventuras da Big Apple para voltar para isto?

Entretanto, quando tudo começou, quando todos começaram a morrer, e a voltarem à vida novamente como cruéis e imbecis animais, não consegui pensar em melhor lugar para me esconder.

O mundo acabou seis meses atrás (eu acho, porque não tenho computado precisamente o tempo; tudo que sei é que era verão durante a epidemia, e que estava nevando pesadamente lá fora hoje de manhã), e durante este período eu levantei muitas centenas de indagações. Mas uma recorrente, que me assombra a cada santo dia, que ainda estou tentando responder é:

Por que eu sobrevivi? Por que sou o único que restou?


Trecho do work-in-progress Notes from the End of the World, disponível para leitura em inglês no WriteOn e no Wattpad





quinta-feira, 9 de abril de 2015


Pequeno excerto de Páscoa

Fernanda Fatureto

Em 5/4: É Páscoa e escrevo. A chuva cai delicadamente sobre as plantas. A cidade cinza começa a acender suas luzes e o vento frio corta a pele. Há muito a Páscoa ressoa como um mito cristão distante que nos obrigada ao confessário para relembrar o quanto somos bons conosco e cruéis com os outros. A páscoa nos impele para o paladar doce – um conforto útil para nossas almas (palavra gasta pelo evangélio): ainda acreditamos que a alma existe?
Ao retomar o trajeto para casa, vejo meninos nos faróis e penso no menino Jesus. Todas as vidas deveriam valer o mesmo. 
A publicidade dos painéis da cidade mostram ovos de chocolate e logo esquecemos de Jesus. Como esqueceremos que todas as vidas devem ter o mesmo valor. Uma páscoa esquecida. 





Carta ao filho

Samuel,

Não tenho muito a dizer. Apenas o necessário que até hoje não obtive de sua atenção.

Você me acusa, sempre. Sobre os mais variados problemas, com os mais discrepantes argumentos – se é que se pode chamar de argumento as frases curtas, desconexas de sentido em sua concepção, apinhadas de gírias que você aprendeu com seu bando em alguma boca de fumo por aí.

Sou o motivo de tudo de errado que acontece em sua vida, e a razão de seu conflito com o mundo, segundo o pouco que decifrei de suas palavras. Mas que mundo tão cruel é esse em que você vive? O mundo do seu lar, onde você tem um quarto pra dormir, roupa pra vestir, comida à mesa nas refeições e tudo que desejar? Ou um mundo imaginado, pintado em tons obscuros, fruto de companhias erráticas e errantes, as quais você resolveu se unir só pra me afrontar?

Você aponta o dedo pra mim, brada aos berros, e eu tenho de aguentar tudo calado, pacientemente, em consideração a sua mãe, que tem a saúde frágil desde o seu nascimento – você sabia disso, não? - e não quer que a situação se deteriore mais. Isso é um peso enorme pra mim. Logo eu que fui criado debaixo de cabresto dentro de casa e fora dela, em colégio militar, e depois formei família, pela lei natural da vida, sem nunca levantar a voz aos meus pais, por respeito e por medo – mais por medo, é verdade. Ainda assim, havia hierarquia.

Suas atitudes o levaram ao lugar onde você está agora, não sua filiação. Se você tivesse uma parte do meu caráter, e se espelhasse em mim como exemplo, certamente sua juventude teria sido bem diferente. Mas você é assim, inconsequente, incoerente, despreza tudo que lhe traga o mínimo de dignidade. Gosta da sujeira social, do lixo cultural. Se contenta com as migalhas do que tem, sem pensar no por vir.

Você me despreza, e mesmo não sendo sua intenção, pela forte ligação com sua mãe – que me é uma incógnita –, você a leva junto para o mesmo poço fundo onde me atirou. E isso não é justo. Você pode supor que estou querendo colocar um contra o outro, e, no meu íntimo, há até esse desejo perverso, mas o que estou querendo dizer é que, me condenando ao limbo de sua vida, você a faz sofrer duplamente. Claro que você ainda não tinha se dado conta disso, arrogante que está.

Confesso que te amo, mas pra você isso não quer dizer muito mais que simples palavras enxertadas no meio de um “acerto de contas”. Digo assim, entre aspas, porque não há uma discussão bilateral. Nem nesta carta nem quando você proferia seus gritos contra mim, sem me dar chance de resposta. Mas é pelo amor que ainda tento essa reaproximação – a última? –, com aquele que um dia já me admirou e me chamou de ´meu herói`. Em que ponto deixei de ser essa figura mítica, me pergunto, sem conseguir encontrar uma data, um fato, uma interpretação equivocada ou palavra mal colocada de minha parte que pudesse consubstanciar seu abominável comportamento.

Você quer criar sua própria identidade, é natural, e o apoiaria nesse sentido, não fosse sua infindável dedicação à autodestruição a partir do personagem que forjou para si. A psicologia é capaz de explicar seus desatinos, isso eu já pesquisei, mas são tantas as possibilidades diagnósticas que nunca cheguei a uma conclusão irrevogável. Seria preciso recorrer a um profissional do ramo, mas logo descartei essa ideia, sabendo que não estaríamos em condições de entrar em acordo sobre isso. Por ironia do destino, agora você é obrigado, mas soube que se cala nas sessões.

Se um dia você aceitasse ao menos um conselho meu, que fosse este: converse com a psicóloga. Exponha seus sentimentos. Fale de mim – preencha sessões e mais sessões com sua predileção por me atacar, mas ao menos fale. Você está perdido, por mais que não admita ou não tenha se dado conta de seus medos por trás dessa máscara de transgressor que você se revestiu. Reveja sua vida, ouça o que ela tem a dizer. Depois disso, escolha entre continuar a ter atitudes infantis ou se tornar um adulto responsável daqui a pouquíssimo tempo.

Não tenho muito mais a dizer, até porque ficamos tanto tempo sem nos falarmos, e já pensei e repensei tantas questões, e por tanto tempo, que não vejo sentido em me estender. Também acredito que me esforço a escrever estas palavras mais por obrigação moral do que por ter esperança de que sejam lidas por você.

Olhe a sua volta, e tente calcular o quanto está perdendo de tempo neste lugar.

Com estima,

Seu Pai.


Foto: Until we think in the opposite way we can't take the full essence of reality, de Vincepal.
Usada sob licença Creative Commons.





quarta-feira, 8 de abril de 2015

Dindinha


publicado originalmente em http://f417s-d1ver5.blogspot.com.br
de 19 a 28 de fevereiro de 2015




 A maior parte das crianças da vila nasceu na própria vila, e todas seguiam vivendo ali até o fim. Dizer “nascer na vila” quer dizer ter nascido mesmo lá, nas próprias casas, vindos à luz da vila pelas mãos da Velha, a parteira.
A Velha tinha uma neta, ou até bisneta, porque a Velha era muito velha, e a guria que andava com ela, sua ajudante desde muito pequenininha, na época dessa história, não devia ter catorze anos. Era certo que tinha catorze anos quando ela ajudou a nascer Nenê, o filho da sua melhor amiga. Depois que Nenê nasceu, a mãezinha dele virou Mãezinha. A melhor amiga, a primeira pessoa a ver a carinha amassada dele, virou Madrinha, ou Dindinha. Entre si, se chamavam Comadre.
Mãezinha foi tri corajosa, mais do que tinham sido as irmãs, que preferiram a cesária na Santa Casa. Quis ganhar de parto normal, em casa, como a mãe dela tinha ganho ela, as irmãs e o irmão. E quis que Nenê fosse o primeiro parto da melhor amiga, que chamou pra ser madrinha. Tinham a mesma idade, as gurias. As duas estavam economizando pra festa de quinze anos desde os treze. Compraram juntas o enxoval do Nenê.
Também tinha, na época dessa história, os guri, que sempre andavam juntos. Eram seis, os guri. Um dos seis era o pai do Nenê. Depois que Nenê nasceu, virou Paizinho, mas o que mais pegou foi Compadre, porque era mais engraçado, e nenhum dos guris se animou a chamar ele de Paizinho. Compadre era só um guri antes do guri dele nascer. Continuou um guri depois. Era bonito que era um diabo. Ficou com a Mãezinha, mas já tinha ficado com a Dindinha, e com quase todas as gurias da vila. Gostava da Mãezinha, gostava das outras também, não pra casar, ele dizia, Como assim, casar?. Mas depois que o Nenê nasceu, quis arrumar um emprego e começou a construir uma casa pra ir morar com a Mãezinha, nos fundos da casa da mãe dele. Era o único dos guri que trabalhava.
Outro dos guri, o mais velho, que os outros chamavam Mais Velho, morava sozinho com os três cavalos que criava na última casa na única rua da vila. Os outros debochavam dele. Se aquela rua fosse um intestino, a casa dele seria o cu. Ele ria junto. Só sai merda dessa vila mesmo, e todo mundo passa pela minha casa, tá certo. Na outra ponta da vila, na entrada, ficava, quem diria, uma boca. Eu não digo? E todo mundo ria. Os caras vinham de carro do centro, ou do bairro ali perto, passavam na boca, pegavam, pagavam ou, dependendo da cara deles, pagavam e depois pegavam, atravessavam todas as curvas da vila e saíam, passando pela casa do Mais Velho. Olhaí a merda indo embora. Eles riam que se mijavam. Mais velho era engraçado pra caralho.
Outro dos guri era o Caçula. Caçula era irmão do Compadre, tio do Nenê. Antes era só Caçula. Nasceu o Nenê, virou Tio Caçula. Devia ter onze, ou mais, ou menos, ele não dizia. Queria ser grande, como o Mais Velho, que era um touro. Tio Caçula descobriu a punheta só ano passado, e não quis mais saber de outra coisa. Tocava oito, dez, doze por dia. Ficava louco se ficasse mais de duas horas sem bater uma. Sentava no fundo da sala, estava no sexto ano, e batia até esporrar nas cuecas, olhando pra qualquer pedaço de pele das colegas que conseguisse ver. Vivia com cheiro de porra. A mãe deles deu nele até ele tomar vergonha, quando chamaram ela na escola. Ficou uma semana de castigo. Batia doze punhetas por dia, do mesmo jeito.
Outro dos guri era filho da dona da boca. Os outros apelidaram ele de Dentinho, porque ele perdeu um dos dentes da frente numa briga. O dente era de leite, mas a história era boa. Nasceu outro no lugar. Era colega de aula do Tio Caçula. Dentinho era ruim de briga, mas era metido. Uma vez quis botar pra cima do Jamanta. Deu na cara dele no recreio. O Jamanta deu um soco na barriga do Dentinho que fez ele mijar nas calças, na frente de todo mundo. O Mais Velho e o Compadre esperaram ele passar pela casa do Mais Velho. Chamaram ele, de boa. E aí, Jamanta, tá a fim de jogar um Play? Jamanta era louco por videogame. Jamanta entrou na casa do Mais Velho. Os outros guri tavam lá dentro. Jamanta saiu da casa do Mais Velho, mancando e cheirando a merda. Depois disso, baixava a cabeça quando via o Dentinho.
Outro dos guri não morava na vila. Morava no bairro ali perto, com a avó, mas a mãe dele trabalhava na vila, na boca da mãe do Dentinho. Eles respeitavam. Nunca nenhum dos guri falou nada da mãe dele. Nem quando Mais Velho foi com ela. Ele era um cara tão gente fina que os guri chamavam ele Gente Fina. Pegou. Lá vem o Gente Fina. Aí, Gente Fina! Gente Fina levava coisas pra casa da avó, que a mãe dele mandava, e levava coisas pra mãe, que a vó dele mandava, e às vezes levava coisas da boca da mãe do Dentinho pra outros lugares, e ganhava uns pila. Comprava tudo em revista em quadrinho. Era fã do Batman. Batman é o cara!, ele dizia, enche os bandido de porrada, demule os cara, tá ligado, mas não mata os cara. Mataram os pai dele quando ele era guri, tá ligado., Grande merda, dizia o Mais Velho, mataram os meu e nem por isso eu sou o Batman., Minha vó contou que mataram meu pai ano retrasado., E daí?, E daí que era o meu pai, caralho., Grande merda, se mataram teu pai é porque ele merecia., Não conheci meu pai., Nem eu., Nem eu o quê?, Não conheci o meu também., Ah, tá, mas tu conheceu o meu?, Conheci., E aí?, E aí o quê?, Ele merecia morrer?, Sei lá, Gente Fina, era um merda, tá ligado, ficou devendo, não quis pagar, queimaram ele. É assim que funciona., É foda., É, é foda., Trouxe uma nova do Hulk, quer ler?, Bah, afudê, me amarro no Hulk!
Outro dos guri era o irmão da Mãezinha. Quando Compadre começou a namorar com a Mãezinha, o irmão dela virou Cunhado. Depois que o Nenê nasceu, virou Tio Cunhado. Tio Cunhado era um guri quietão, na dele. Tio Cunhado era apaixonado pela Dindinha, e isso era insuportável pra ele. Pensava nela o dia todo. Sentia a espinha gelar quando ela chegava. Ficava atrás da parede ouvindo a voz dela na sala, ela conversando sobre as coisas do Nenê com a Mãezinha, e sobre os outros nenês que ela ajudava a parir. Ela ria de um jeito lindo, não tinha vergonha de rir, como a Mãezinha. Quando Tio Cunhado tomava coragem, ia até a sala, sentava ali e fingia que assistia televisão, mas não se controlava e olhava pra ela, quando ela não estava olhando. Que cor linda. O jeito que ela arrumava o cabelo. O jeito que ela parava com as mãos. O jeito que segurava com tanto carinho as mãos da Mãezinha. Quando Dindinha olhava pra ele, o estômago ficava gelado, e ele desviava o olhar. Achava que ela sabia que ele gostava dela. Uns dias que ela ficou sem aparecer, ele teve febre. Quando soube que Dindinha tinha ficado com o Compadre antes de ficar com a Mãezinha, imaginou Cunhado sendo atropelado por um caminhão. Mas tinha o Nenê, e ele não queria que o Nenê crescesse sem pai. Eles eram amigos, no fim das contas. Mas ficou emburrado com Compadre por uma semana, sem explicar por quê. Mais Velho sacou tudo. Mais Velho sempre saca tudo. Um dia, Tio Cunhado tomou coragem de ir falar com Dindinha. Elas tavam combinando as coisas pro batizado do Nenê. Quando ela tava indo embora, de noitinha, ele chamou ela. Dinhinha., Oi, Tio., Posso falar contigo?, ele estava tremendo, talvez ela tenha percebido. Fala aí., Não sei se eu consigo., A vô tá me esperando, Tio Cunhado. Quer ir comigo até lá? Tá tarde. Ela morava com a vó no sítio, e o último poste era na frente da casa do Mais Velho. Dava pra ouvir o coração dele batendo. Saíram pelo portão. O que que foi, Tio?, ela perguntou, ele resmungou, mas ela não entendeu. Ela chegou mais perto. Fala, guri. Eles eram da mesma altura. Estavam passando debaixo do poste. A luz criou um negócio em volta dela, não dava pra ver o rosto dela, só o contorno iluminado. Ela parou, de frente pra ele, e o poste ficou atrás dela. Ela devia ver a cara dele, mas ele só via aquela luz em volta da cabeça dela. Ele nunca mais conseguiu esquecer aquela imagem. Eu to apaixonado por ti.
A Dindinha riu, na hora. Riu muito, daquele jeito que ela ria. No começo, ele riu também, nervoso. Talvez ela estivesse nervosa também, ou talvez tivesse achado graça. Ela não conseguia parar de rir. Tio Cunhado começou a ficar chateado. Um nó na garganta. O que é que foi? Por que tá rindo tanto?, Eu não acredito que tu disse isso, cara., Por quê?, Ela deu um passo na direção dele. Ele estava com os braços estendidos, caindo com o próprio peso. Dindinha segurou a cabeça dele com as duas mãos. Ele não sabia beijar. Ela teve que ensinar. Não sabia o que fazer com os braços, e ela ensinou isso também. O beijo era muito babado, com a boca muito aberta, e ela fechou a boca dele, com os dedos da mão assim, apertando de leve os lábios dele. Não abre muito, e mexe a língua mais devagar. Ele fez direito, depois. Ela gostou. Gostou de como ele era carinhoso, do jeito que fazia um negócio no cabelo dela, na nuca. Ela não conseguia ver, porque estava fazendo sombra na cara dele, o poste estava atrás dela, mas ele estava beijando de olho aberto. Queria ver ela, mas só via o breu. Sentia o hálito dela dentro da boca dele, a respiração dela perto da dele, as duas ficando mais forte. Não sabia se queria parar, se ela tava cansada, mas ela continou beijando ele. Ficou com vergonha quando sentiu que estava ficando de pau duro. Afastou um pouco. Eu te amo, Dindinha.
Dindinha deu um passo pro lado, mas continuou olhando pra ele. O rosto dela finalmente ficou iluminado. Meu Deus, como ela era linda, ele pensava depois, mesmo que não conseguisse mais lembrar a cara dela naquele dia. Ela riu. Deu uma ajeitada no cabelo crespo. Não fala merda, cara., Eu te amo, de verdade., Tá tarde, Tio. Me leva até lá na entrada. Eu te amo, ele disse, olhando pra baixo. Ela pegou na mão dele. Cunhado tava sentindo uma coisa que nunca mais voltou a sentir. Teve que se segurar pra não chorar na frente da Dindinha. Foram caminhando de mão dada até quase a esquina. Eles dois soltaram quando chegavam perto do poste, na frente da casa do Mais Velho. A estradinha que levava pra casa dela começava depois da cerca de arame farpado, era só pular. Tá bom aqui., ela disse. Te levo até lá., ele falou. Ela pensou um pouco, Não precisa mesmo, Cunhado. Ele ficou parado, olhando pra ela. Ela deu mais um passo, e deu um selinho nele. Amanhã eu passo lá., ela disse. A gente vai ficar de novo?, Não sei. Amanhã tu me traz de novo. Deram mais um beijo. Ela riu, daquele jeito. Ele riu também. Tchau., ela disse. Ele ajudou afastar os dois fios de arame pra ela passar. Ela se foi, sumiu na estradinha escura que conhecia como ninguém. Ele ficou sozinho, parado, por um tempo. Ninguém saberia dizer se ele riu ou se ele chorou naqueles minutos que não acabaram mais.
Quando Cunhado voltou, Compadre, Caçula, Dentinho e Gente Fina estavam fumando sentados no cordão da calçada, na frente da casa do Mais Velho. E aí, Cunhado, perguntou o Mais Velho, Comeu? Vai à merda, Mais Velho., Já to na merda, disse o Mais Velho, todo mundo riu. Tá ligado que ela dá pro Jura, né?, disse o Compadre. Quem?, perguntou o Cunhado. A minha vó! A Dindinha, porra. A Dindinha dá pro Jura desde a quinta série. Diz que ele bate nela, e que ela gosta., disse o Compadre, rindo. Vai tomar no cu, Mais Velho. Vão tudo vocês tomar no cu, tá ligado. Vão se foder!, gritou Tio Cunhado. Os outros riram até não poder mais. Cunhado não parou, e continuou indo pra casa, puto da vida, com muita raiva dos guri. Ainda conseguiu ouvir o Mais Velho gritando, Ela te chupou do jeito que chupa o Jura, Cunhado? Ele diz que ela é a melhor. Cunhado chegou em casa, e teve que se controlar pra não bater a porta. O Nenê já tava dormindo. Teu namorado é um pau-no-cu, Mãezinha., disse Cunhado, com a cara vermelha de ódio. Se jogou na cama e ficou no escuro, sem conseguir dormir. Pensava ora na imagem da Dindinha com o poste atrás dela, com aquela luz dourada no cabelo dela, ora no Jura com cara de safado, e a Dindinha chupando ele, ora imaginando o Jura com a garganta cortada, esguichando sangue pelo buraco aberto, que nem naquele filme.
No outro dia, Cunhado não saiu de casa, não quis ir à aula. A mãe deles, que depois que o Nenê nasceu virou Vó Zinha, saiu antes das sete, ela trabalhava no centro, e voltava tri tarde, no último ônibus. Eles se viravam bem. A Mãezinha saiu logo depois, junto com o Compadre, antes de ele ir pro mercado, pra levar o Nenê no postinho. Cunhado ficou em casa, sozinho, dormindo, a manhã toda. Antes do meio dia, bateram na porta. Era Dindinha.
Oi, ele falou, assustado., Posso entrar, ela perguntou?, Entra, ele falou, saindo da frente da porta, fechando em seguida. O que tu falou pros teus amigos?, Eu não falei nada. Fala o que eles te falaram, então., Não interessa, eles são uns babaca., Fala agora o que eles te disseram, se não eu nunca mais olho na tua cara!, ela tava muito braba., Falaram que tu dá pro Jura desde a quinta série., ela botou as duas mãos nos olhos, Eu vou matar aqueles filhos da puta., Eles são uns babaca, não liga., Cunhado disse, tentando abraçá-la. Não chega perto de mim!, Mas eu não falei nada, Dindinha. Até te defendi. Não preciso que me defendam, tá me ouvindo? Esses merda não sabem nada da minha vida., Tu tá muito nervosa, Dindinha., E vou ficar mais ainda se eu não tirar isso a limpo. Tu sabe o que aconteceu? Alguém foi falar isso pra minha vó. Os teus amigo ficaram gritando na rua que eu isso, que eu aquilo, agora a minha vó tá louca, quer fazer escândalo. Tudo isso só por causa de uns piá de merda., Mas tu tem alguma coisa com o Jura?, Até tu, Cunhado?, Tem ou não tem?, Olha, vai à merda tu também. Vocês são tudo igual, um bando de piá cagado. Maconheiro de merda!, disse Dindinha, indo na direção da porta. Dindinha, calma. Calma, porra!, disse Cunhado, parando entre ela e a porta. Me deixa sair, se não eu., Senão tu o quê? Vai contar pro Jura?, Sai da minha frente, Cunhado., Vai contar pra ele?, Talvez. Se ele já não souber., Então é verdade que tu dá pra ele? Tu chupa o pau dele?, Não é da tua conta. Sai da minha frente!, Chupa ou não chupa?, Não, Cunhado. Eu não chupo ninguém. To com nojo de ti. Sai!, Desculpa, Dindinha., Anda, sai da minha frente agora, senão eu vou gritar., Dindinha, desculpa., Sai, porra!, ela disse, empurrando Cunhado. Cunhado se esquivou, agarrando o braço dela, Eu to com ciúme, caralho, tu não tá vendo?, E eu to com nojo da tua cara. Não fala mais comigo, seu babaca., A gente não vai mais ficar?, Eu nunca fiquei contigo, otário. Aquilo foi só um beijo. Um beijo ruim pra caralho, ainda. Tu não sabe beijar. Piá! É isso o que tu é. Um piá! Agora me solta.
Cunhado soltou. Dindinha abriu a porta e saiu. Cunhado caiu de joelhos, depois deitou, e ficou chorando até cansar.
Jura encontrou o Caçula e o Dentinho na saída do colégio. Todo mundo dizia que o Jura era perigoso, mas ninguém tinha visto ele fazer nada com ninguém. Era mais velho que o Mais Velho, já tinha até uns cabelos brancos. Que tinha sido preso, que tinha matado um cara, que tinha matado mais de um cara, que tinha feito um monte de coisa que ninguém sabia. Jura não falava com ninguém, e só aparecia na boca pra comprar cachaça, dava boa tarde e ia embora. Morava no campo, numa tapera perto da casa da Velha.
As pessoas na vila diziam um monte de coisas. Diziam que a Dindinha vivia meio que amaziada com ele. Que se ouviam os gritos dela, todos os tipos de grito, dentro de casa. Diziam que ele botava os bichos pra dormir dentro de casa, e que faziam coisas, o Jura, a Velha e a Dindinha. Que eram macumbeiros e tudo. O Jura esperou a saída do colégio. Caçula conseguiu escapar. Dentinho não. Deu dois tapas na cara do Dentinho. Disse, Vou capar um por um se continuarem falando o que não devem de mim e da guria. Olhou no grão do olho do Dentinho. Dentinho acreditou nele.
Mãezinha soube da história quando chegou em casa com o Nenê. Tentou ligar pra Dindinha, mas a Dindinha não atendia. Quis saber do Compadre, O que vocês andaram falando, pra Dindinha não querer falar comigo?, Compadre falou, A Dindinha é uma puta. Tu não tinha que andar mais com ela. Andou até dizendo que o Nenê não é meu filho. Ela é uma fingida, tá ligado. Ela tem inveja de ti, porque tu tem o Nenê e agora tem uma família. Mãezinha ficou pensativa. Cunhado tava no quarto, e ouviu tudo. Saiu de lá com sangue nos olhos. O Compadre se antecipou, O Cunhado levou ela pra casa ontem. Ela deu pra ele no mato. Ele contou pra nós., Mentira, Compadre! Que mentira!. O Nenê começou a chorar. Eu fiquei com ela, sim, mas foi só isso. Os guri que começaram a gritar na rua, depois, que ela dava pro Jura., O quê?!, gritou a Mãezinha, o Nenê cada vez mais furioso, Mas vocês são uns inútil mesmo! Vocês não sabem nada e ficam falando merda! Sai daqui os dois. Compadre!, alguém gritou na frente da casa, era o Mais Velho. Compadre e Cunhado sairam. Mais Velho estava na frente, com a mesma paciência de sempre. Chega aí, Compadre. Chega tu também, ô, pegador, temo que trocar uma ideia., Qual é?, perguntou o Compadre, Cunhado chegou logo depois. Mais velho disse, olhando pro Cunhado, O comedor da tua princesa mandou um recado pelo Dentinho. Mãezinha saiu na frente da casa. Onde é que vocês vão?, ela gritou pro Compadre, com o Nenê no peito. Relaxa, mulher., ele disse, Vamo ali resolver um bagulho.
Os seis guri estavam na casa do Mais Velho. Cunhado não sabia o que pensar. Estava confuso com tudo aquilo. O Jura mandou dizer que vai capar nós tudo se a gente continuar falando dele e da Dindinha, disse o Dentinho, pela oitava ou décima vez., O Jura é perigoso, disse o Gente Fina., Dá pra ver na cara dele. Vamo esquecer essa merda toda. Sei lá, pedir desculpa pra Dindinha. O Mais Velho serviu um martelinho de cachaça e tomou num gole. Ele quer capar a gente, vamo lá mostrar pra ele então, como é que se capa alguém. Seis contra um, doze bola contra duas. Vamo ver se ele é colhudo mesmo. Cunhado olhou nos olhos do Mais Velho. Mais Velho tinha sacado tudo. Ele sempre saca tudo.
Os guri foram até a tapera pelo meio do mato, na trilha que eles mesmos usavam pra ir pescar no açude, que ficava depois da casinha do Jura. Ele tinha uns quatro cachorros, mas já tavam acostumados com os guri. Nem latiram quando viram eles saindo do meio das árvores, umas seis da tarde, quando já tava escurecendo. A chaminé tava fumegando, então, ele devia estar em casa. Ô Jura!, gritou o Mais Velho, Vem aqui fora capar a gente!. O Jura resmungou lá dentro, depois saiu. Mais Velho, Compadre e Gente Fina estavam na frente. Gente Fina, Caçula, e Cunhado, um pouco pra trás. O Jura saiu na porta. Os cachorros começaram a latir, ele assobiou e eles pararam. Jura não disse nada, estava com a mão pra trás. Mais Velho também estava. Se encararam. Jura mostrou que tava com um machado. Dentinho deixou cair uns pingos de xixi na cueca. Compadre bateu de ombro com Mais Velho e cochichou, Vamo embora, Mais Velho., Nada, só vamo dar um susto nele, só. Alguém espiou de dentro da casa. Volta pra dentro, disse o Jura. A pessoa saiu.
Era a Dindinha. Cunhado deu dois passos pra frente, ficou do lado do Dentinho. Cunhado e Dindinha se encararam. Ela tava chorosa. Tinha uma marca vermelha na cara. Ficou do lado do Jura, e tocou no peito dele, empurrando ele de leve, cochichando uma coisa que os guris não ouviram. Cunhado só conseguia ver a mão de Dindinha perto do pescoço do Jura. Lembrou da mão dela no rosto dele, ontem à noite, quando pensou que era a coisa mais inexplicável que já tinha sentido, e sentiu raiva quando Jura virou a cabeça de lado, aproximou a boca da boca da Dindinha. Cunhado pegou o revólver da mão do Mais Velho e não mirou. Acertou do lado da cabeça do Jura, meio no olho, o cérebro dele ir parar na fachada da casa.
Dindinha deu um berro, e tentou segurar o Jura enquanto caia. Cunhado caminhou até lá, com mais cinco balas. Imaginou Dindinha grávida do Jura, imaginou-a chupando o Jura depois de ter levado uma surra dele, não imaginou que ela estivesse deitada, meio por cima dele, tentando segurar a cabeça ensanguentada do homenzarrão, dizendo no meio do choro Pai... paizinho... Cunhado deixou a arma cair. Ela olhou pro Cunhado. Ela estava com a roupa empapada de sangue, o lindo cabelo ensanguentado, o rosto salpicado com sangue e pedaços do cérebro do Jura. Ela olhou para Cunhado e não reconheceu.
Cunhado olhou para trás. Os guri tinham corrido de volta pro mato, todos, menos Mais Velho, que estava parado no mesmo lugar. Dindinha saiu correndo, chorando, na direção da casa da Velha. Cunhado fez menção de ir atrás dela, mas o Mais Velho impediu. Deixa ela ir. Me ajuda aqui com o cara. Nenhum dos guris nunca falou quem tinha atirado no Jura. A arma foi encontrada junto com o corpo. Quando veio a polícia, Mais Velho se entregou, numa boa. Ele mesmo disse onde tinha enterrado. Disse que fez tudo sozinho. Nunca ninguém soube pra onde a Dindinha e a Velha tinham ido, depois daquilo. Dizem que ela voltou quando o Nenê já era grande, pra vê-lo uma última vez, antes de sumir pra sempre. Dizem que ela tinha também tinha um gurizinho, que ninguém sabe de quem era filho. Dizem também que a Dindinha perguntou pelo Tio Cunhado, mas a Mãezinha não soube dizer onde ele andava. Na real, dizem que ela não quis dizer o que tinha acontecido.