Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Carta ao filho

Samuel,

Não tenho muito a dizer. Apenas o necessário que até hoje não obtive de sua atenção.

Você me acusa, sempre. Sobre os mais variados problemas, com os mais discrepantes argumentos – se é que se pode chamar de argumento as frases curtas, desconexas de sentido em sua concepção, apinhadas de gírias que você aprendeu com seu bando em alguma boca de fumo por aí.

Sou o motivo de tudo de errado que acontece em sua vida, e a razão de seu conflito com o mundo, segundo o pouco que decifrei de suas palavras. Mas que mundo tão cruel é esse em que você vive? O mundo do seu lar, onde você tem um quarto pra dormir, roupa pra vestir, comida à mesa nas refeições e tudo que desejar? Ou um mundo imaginado, pintado em tons obscuros, fruto de companhias erráticas e errantes, as quais você resolveu se unir só pra me afrontar?

Você aponta o dedo pra mim, brada aos berros, e eu tenho de aguentar tudo calado, pacientemente, em consideração a sua mãe, que tem a saúde frágil desde o seu nascimento – você sabia disso, não? - e não quer que a situação se deteriore mais. Isso é um peso enorme pra mim. Logo eu que fui criado debaixo de cabresto dentro de casa e fora dela, em colégio militar, e depois formei família, pela lei natural da vida, sem nunca levantar a voz aos meus pais, por respeito e por medo – mais por medo, é verdade. Ainda assim, havia hierarquia.

Suas atitudes o levaram ao lugar onde você está agora, não sua filiação. Se você tivesse uma parte do meu caráter, e se espelhasse em mim como exemplo, certamente sua juventude teria sido bem diferente. Mas você é assim, inconsequente, incoerente, despreza tudo que lhe traga o mínimo de dignidade. Gosta da sujeira social, do lixo cultural. Se contenta com as migalhas do que tem, sem pensar no por vir.

Você me despreza, e mesmo não sendo sua intenção, pela forte ligação com sua mãe – que me é uma incógnita –, você a leva junto para o mesmo poço fundo onde me atirou. E isso não é justo. Você pode supor que estou querendo colocar um contra o outro, e, no meu íntimo, há até esse desejo perverso, mas o que estou querendo dizer é que, me condenando ao limbo de sua vida, você a faz sofrer duplamente. Claro que você ainda não tinha se dado conta disso, arrogante que está.

Confesso que te amo, mas pra você isso não quer dizer muito mais que simples palavras enxertadas no meio de um “acerto de contas”. Digo assim, entre aspas, porque não há uma discussão bilateral. Nem nesta carta nem quando você proferia seus gritos contra mim, sem me dar chance de resposta. Mas é pelo amor que ainda tento essa reaproximação – a última? –, com aquele que um dia já me admirou e me chamou de ´meu herói`. Em que ponto deixei de ser essa figura mítica, me pergunto, sem conseguir encontrar uma data, um fato, uma interpretação equivocada ou palavra mal colocada de minha parte que pudesse consubstanciar seu abominável comportamento.

Você quer criar sua própria identidade, é natural, e o apoiaria nesse sentido, não fosse sua infindável dedicação à autodestruição a partir do personagem que forjou para si. A psicologia é capaz de explicar seus desatinos, isso eu já pesquisei, mas são tantas as possibilidades diagnósticas que nunca cheguei a uma conclusão irrevogável. Seria preciso recorrer a um profissional do ramo, mas logo descartei essa ideia, sabendo que não estaríamos em condições de entrar em acordo sobre isso. Por ironia do destino, agora você é obrigado, mas soube que se cala nas sessões.

Se um dia você aceitasse ao menos um conselho meu, que fosse este: converse com a psicóloga. Exponha seus sentimentos. Fale de mim – preencha sessões e mais sessões com sua predileção por me atacar, mas ao menos fale. Você está perdido, por mais que não admita ou não tenha se dado conta de seus medos por trás dessa máscara de transgressor que você se revestiu. Reveja sua vida, ouça o que ela tem a dizer. Depois disso, escolha entre continuar a ter atitudes infantis ou se tornar um adulto responsável daqui a pouquíssimo tempo.

Não tenho muito mais a dizer, até porque ficamos tanto tempo sem nos falarmos, e já pensei e repensei tantas questões, e por tanto tempo, que não vejo sentido em me estender. Também acredito que me esforço a escrever estas palavras mais por obrigação moral do que por ter esperança de que sejam lidas por você.

Olhe a sua volta, e tente calcular o quanto está perdendo de tempo neste lugar.

Com estima,

Seu Pai.


Foto: Until we think in the opposite way we can't take the full essence of reality, de Vincepal.
Usada sob licença Creative Commons.

Share




1 comentários:

Tenso. Todavia reflete a realidade de milhões de famílias "largadas" por aí.

Postar um comentário