TIQUIRA
Analfabeta,
burra, mais ignorante que a filha da Naná Marisqueira. Atoleimada, lerda, uma
mula, uma besta, desmiolada e sem futuro. Mesmo assim, Marlene matou o traste
do Pajé e fugiu de Barra do Corda.
Marlene não nasceu. Na trajetória da
humanidade, é apenas mais um quidam. Pessoas como ela não vêm ao mundo da mesma
forma que as sofisticadas criaturas belas e etéreas que povoam os condomínios
fechados. Como que estigmatizados por uma sina hereditária, os miseráveis são
evacuados em favelas venéreas ou praças gatunas. Sob viadutos, nas esquinas e
atrás das grades, mana uma cascata de escusos necessários à manutenção do
bem-estar de uma minoria cujo sangue é azul celestial. Há marlenes aos montes, feitas em série, uma raça pré-moldada para
servir de braço e sabujo aos suseranos modernos, que vivem em um simulacro
comportamental dos mocinhos pedantes e sebosos das novelas das nove. As marlenes são desprovidas das vias
nervosas periféricas da dor, não sentem nada. Treinadas apenas para suportar e
suportar e suportar, ostentam a própria miséria como se possuíssem um dom
divino. Não reclamam, não discordam, não exigem. A elas cabe apenas pedir,
implorar, mendigar por um gesto qualquer de aprovação. Também são bem-vindas
algumas peças de roupa usadas e gastas à exaustão, uma fatia dormida de
tapioca, meia caneca d’água. Deus lhe pague.
E feia. Ai, Marlene é feia. Feia como
apenas alguém que se agarra à fome a fim de esquecer um pouco da sede consegue
ser. Seus dezoito anos não servem para nada. Marlene é velha, tão antiga quanto
a exploração rotineira que castiga o sertanejo e o entorpece de cachaça e
promessas desde que os poderosos descobriram que as calamidades naturais da
seca e da cheia poderiam servir de perfeito nicho para suas gestões vigaristas,
seus governos de escroques.
Marlene
tem dois ou três apelidos, nenhum vestido de festa e uma impinge no lado
interno de sua coxa sem carnes que, graças a Deus, fornece uma coceirinha
gostosa, um indefectível prazer. Alguém diria impossível, difícil de acreditar
que justamente ela ― mulherzinha ordinária e axucralhada ― possuía um sonho. E
seu sonho era do tamanho de sua cabecinha de minhoca, seu pensamento de piaba.
Queria porque queria casar com o Pajé, um sujeito tosco e abrutalhado que era
dono de quatro barcos de pesca e, por isso, tido pelos menos afortunados como
alguém que vivia no luxo. Desprovido de caráter e
moral, Pajé era capaz de surrar aleijados e cuspir na cara de anjinho. E foram
justamente essas desprezíveis qualidades que despertaram uma bizarra querença
naquele coração que mal existe, que bate pouco, dentro daquela cabaça a qual
Marlene chama peito. Pensava ela que apenas um homem indubitavelmente rico e
educado poderia tratar a ralé com tão requintado desprezo, com aquele nojo
exacerbado.
― Vem cá, diaba ― disse
no dia de sua morte o corpulento Pajé, espalhafatado
dentro de uma rede de vistosas varandas rendadas, nu, o membro bêbado, com o
cordão de ouro dezoito esmagado entre seus imundiçados dentes. Marlene
aproximou-se a adivinhar um nome de senhora, um vestido de noiva, a impinge
coçando um pouco mais perto da virilha. Deitou-se sobre o corpo peludo e
ensopado de suor, fedido a banha de porco, e permitiu que Pajé a deflorasse.
―
Ai que dor! Vou morrer, vou morrer... Vou casar, vou casar... ― sofria
imersa em fabuloso contentamento uma esperançosa Marlene, que dentro de pouco
tempo lamberia o caldo de galinha caipira impregnado nas pontas gordas de seus
dedos cheios de anéis. Viajaria para os Lençóis Maranhenses e o menino que
seguraria sua frasqueira comprada na capital a chamaria de Dona Marlene do
Pajé. Que honra. Que pena daquela pata, filha da Naná Marisqueira.
Encontraram o corpo do Pajé banhado em
sangue no alpendre de sua casa de alvenaria, dentro da caprichada rede de
varandas rendadas. A polícia caçou Marlene por todas as redondezas, mas ninguém
a encontrou nas cercanias de Barra do Corda. Talvez tivesse fugido em uma canoa
pelo Mearim ou entrado na boleia de um caminhão na BR-226. Marlene simplesmente
havia desaparecido da face da terra da mesma forma que aqui havia chegado e
permanecido até então: sem ser notada.
Ao lado do cadáver, havia uma garrafa
de Tiquira quase seca, pouco sobrava do líquido arroxeado no fundo do
vasilhame. O cadáver do Pajé estava totalmente molhado, como se uma tina de
água houvesse sido despejada sobre seu corpo ensebado, que já exalava odor
ainda mais rançoso que quando em vida.
Vendo
aquela cena, a velha Naná Marisqueira, meio bruxa e grande conhecedora das
coisas, resmungou dentre suas pálidas gengivas, ganhando a atenção dos curiosos
que se acotovelavam ao redor do defunto:
―
Deve de tê negado botá aliança no dedo daquela doida e ela fez essa servicidão
com o desgraçado. Plantou bem oito, dez facada e, vendo que o desinfeliz num
morria, entornou-lhe à fina força uma garrafa de Tiquira goela abaixo e depois
banhô o excomungado. Assim num tem cristão que se assobreviva. Tiquira e bãe
d’água fria... Num deu outra. Taí. Mortim, mortim. Manda o sanfoneiro Zé
Pilintra tocar uma moda que Barra do Corda num tem mais dono. E, quem diria,
meu povo? Foi Marlene.
6 comentários:
maravilha! nem ainda li seu nome e estou aqui babada deste texto excelente! o texto que mostra como o português não tem brasil, angola ou outro a que pertença, o português tem apenas a força de uma palavra a seguir à outra a dar corpo, a dar pedaços de literatura como este! Obrigada Emerson, muito obrigada! (por isso e pelo tema, tá visto!)
Maria de Fátima, obrigado pelo carinho!
Que coisa, Emerson! Que texto! Parabéns, amigo!
Esse cabra é fora de série! Não tem nada que seja menos que muito bom. Mas esse Tiquira se superou! Impecável de maravilhoso de cabo a rabo. Eu vi a cena como se estivesse nela e pensei "dava um episódio de TV". Beijos!
Cecília, minha loura linda, quando você gosta de um texto meu, fico nas nuvens! Cínthia, minha madrinha arretada, quase sinto daqui sua empolgação. É gratificante quando ganhamos o apreço e o respeito de quem tanto admiramos... Beijos!!!!
Encontrei a revista por acaso, zapeei e encontrei Tiquira, caninha da melhor qualidade, me moveu a lê-lo. Inquietude e vigor q tiram a gente da modorra. Só presta assim. Grata surpresa. Obrigada pela ótima prosa!
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