Perante
uma obra de arte, cada observador faz dela uma leitura diferente, o
que atesta a multiplicidade de sentidos que as obras de arte,
geralmente, têm, mas que também reflete a diversidade de cultura,
de aspirações e de conceção do mundo dos observadores.
Perante o monumento de João Cutileiro implantado no alto do Parque Eduardo VII em 97, muita coisa já se disse. Muitas observações esboçam um sorriso condescendente pela marotice que a escultura parece representar, outras mostram revolta pela ordinarice que lá leem, ou pela boçalização de um acontecimento com a pureza que é atribuída ao 25 de abril de 74.
Independentemente das suas declarações, o que o artista quis transmitir não sei. Aliás, uma obra de arte diz muito mais do que o artista quis dizer, ou pensa que ela diz. O que eu vejo, como
observador formatado pelas culturas que a minha vida atravessou, é
uma crítica violenta e desencantada ao processo começado em 25 de
abril.
Todos
falam do pénis, do pirilau, do falo. Eu também vejo um membro
masculino, mas tão frouxo, tão impotente, tão pequeno, que mais se
deve falar em pilinha. Não vejo um pujante e túrgido símbolo
masculino no momento de lançar um jorro de sémen fertilizador. Vejo
uma ereção diminuta, que mal sai do escroto, sustentada
artificialmente por espeques, escorrendo uma aguadilha. (Numa associação óbvia, pode-se falar de xixi, o que podia configurar a leitura extrema, mas direta para as massas, de que o 25 de abril não
passou de «tesão do mijo».) Esta tímida escorrência é o que lhe dá a leitura de pénis, mas, em vez da esperada magnificência de obelisco, o nanismo genital transforma-o em repuxo de jardim. Decorativo e irrelevante.
Falta-lhe
escala. Colocado na colina talvez mais alta de Lisboa, tinha de ter
uma dimensão bem mais avantajada, dada a sua vocação totémica, e
lançar um jacto potente de vários metros de altura. Por outro lado,
a opção por uma escala diminuta também pode apontar para outra
falta de arrojo, a dos encomendadores, que ficariam desconfortáveis com um vergalho monumental no mais alto da sua cidade.
Em
posição fronteira e subjacente está um cravo estilizado. É
difícil de identificar de imediato, mas é um cravo, sem dúvida:
tem um cálice verde e pétalas. Mas são pétalas que parecem ter
sido amarrotadas a partir de cima: o cravo foi esmagado pelos poderes
cimeiros.
A
localização e a forma aplanada podem sugerir uma ara, um altar de
sacrifícios, a que não falta a cor vermelha do sangue que foi
cravo.
A
enquadrar o altar/cravo, duas colunas de mármore polido com pretensões de elegância,
mas ainda assim com um tratamento plástico e iconográfico mais expressionista do que realista, característico do escultor. Podem conferir solenidade ao conjunto, como colunas de templo ou círios a enquadrar o local restrito do culto. Neste caso, o
culto a um lingam, um pilar cósmico em forma fálica. Ou representar duas classes "polidas" ofertando um sacrifício à força primordial, a fonte da vida. Para garantirem a sobrevivência?
O
monumento implantou-se junto ao local onde existia um pedestal destinado a uma futura estátua equestre do Santo
Condestável. O pedestal foi semidesmoronado para ilustrar a velha
ordem que o 25 de abril queria derrubar. Dado o tratamento plástico de rudeza e as opções formais de assemblagem, todo o monumento se lê como
“escombros”. Pode querer ilustrar a nova ordem do 25 de abril que, ao irromper, os
provocou, mas também pode querer dizer que este não teve tempo para
construir um harmónico novo edifício nacional, não teve pujança erétil para
levar a revolução mais longe. O cravo (o povo?) foi esmagado e sacrificado pelos poderes dominantes.
De antigo, só se derrubou um pequeno pedestal. Sobranceiros, lá se
mantêm intactos os majestosos pilares do Estado Novo, poderosos,
eternos!
Joaquim
Bispo
*
* *
Ilustração
de Rodolfo Bispo: https://www.facebook.com/rodolfo.bispo.77
1 comentários:
Muito bem, aplaudo.
Acrescentaria apenas encontrarem-se aqui revelados, nesta composição escultórica, qual o objectivo do evento ao qual pretende comemorar a composição escultórica contemporânea, sua finalidade real e suas consequências e ainda simultaneamente, ao recorrente “método” utilizado.
Ao que se propõe então o aludido evento segundo as mesmas alusões inscritas na referida composição?
À plena destruição e ruína do Regímen ao que se propôs substituir.
E que tipo de Regímen os elementos esculturais permitem identificar?
As duas colunas estilizadas não se encontrarão ali por mero acaso. Parecem-se acercar-se mais à Ordem Toscana a qual foi desenvolvida na época Romana e a qual se tratou duma simplificação de idênticas proporções da Ordem Dórica da antiga Grécia. Fazem-se representar aqui, simbolicamente, de um só golpe a destruição da Ordem e Espiritualidade do Império Romano e da Cultura Helénica.
O perfil fálico, composto por quatro imperfeitos cubos sobrepostos em pedra bruta, por si já bastante alusivos, culminando este em uma permanente espermatorreia representando assim como um escorrimento do que deveria constituir sua Virilidade Espiritual, agora irremediavelmente perdida, com o que os poderes fácticos se regozijam e aclamam já pela vitória final em um contexto claramente mais abrangente, mas não deixando sempre de disseminar aqui e acolá por onde passam mensagens simbólicas e subliminares de suas reais intenções como de sua mesma natureza em uma já permanente arrogância verdadeiramente espantosa.
Finalmente o Cravo, representando o povo agora já Liberado do que o protegia, conformando como magistralmente já referido, uma espécie de Pira ou Altar do Sacrifício e aonde sua cor Vermelho de Sangue, finalmente, se diluirá consumado.
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