Ela trazia-o na algibeira da saia, um bolso estreito e fundo que se desprendia a partir da cintura como se fosse alforge.
Um dia mostrou-mo.
O bolso ficava dependurado entre a saia de cima e a saia de baixo, e balançava ao ritmo dos seus passos. Disso, que, por vezes, tilintasse, e era se havia pedrinha ou dedal ou outra peça que ela tivesse, para ali, jogado. Coisa miúda que bulia com o relógio que era redondo: um mostrador encrustado em prata gravada com risquinhos, raminhos de planta de uma qualquer espécie que também decoravam a tampa que protegia um vidro límpido, vagamente convexo, através do qual os algarismos pareciam arredondar-se.
Mostrou-me o relógio uma vez apenas e eu fiquei maravilhado.
Depois disso, só voltaria a vê-lo ao tirar-lho do bolso, estavam as mulheres a preparar-lhe o corpo para o enterro.
Minha tia-avó de nome Mariana Brites.
O relógio tinha pertencido a um seu bisavô que andaria com ele no bolso do colete preso por uma corrente que se terá perdido, ou terá sido empenhada ou vendida, ou minha tia-avó a terá ofertado pelo casamento de alguma afilhada muito querida.
Esse bisavô de Mariana Brites havia de trazê-lo naquele domingo de Páscoa, quando, no regresso de ter assistido à missa com a bisneta, foi acometido do que nem terá sido doloroso mas tão intenso, que ele nem subiu os dois degraus da casa onde, um dia, eu havia de nascer. Morreu ali mesmo e, por perto, apenas minha tia-avó que um dia ficaria senhora do relógio, esse que ela usava no resguardo de uma saia de cima e outra saia de baixo. E que ninguém lho referisse. Que ninguém nunca lhe perguntasse: que horas são, menina Mariana? que ela responderia: e eu lá sei de horas, criatura de Deus.
E não sabia.
Que minha tia Mariana Brites guiou-se sempre pelas badaladas do relógio da torre e nem terá aberto a caixinha de prata muito mais vezes do que aquela em que decidiu mostrar-me o seu tesouro.
Terá sido, pois, pelo relógio da Igreja que ela soube a hora certa de eu ter vindo ao mundo.
Nasceste às dez em ponto, disse-me, e repetiu-me.
Dez pancadas batidas, uma a uma, na torre da Igreja, e ela contando.
Estaria o meu pé esquerdo a sair para este mundo um pouco depois do meu pé direito, quando Mariana Brites contou a derradeira badalada e, enquanto isso, no bolso da saia, fazia tic-tac o relógio que herdara.
E os deuses que me perdoem se é heresia, mas foi o que fui ouvindo: que ao soar da décima pancada, minha mãe ouviu, não o tic-tac compassado do relógio ressoando de entre cada uma das saias que Mariana Brites, nesse dia, trazia cobertas com um avental muito alvo, mas uma voz que dizia, repetindo: que Deus o guarde, que Deus o guarde. Minha mãe escutando essa voz cava, voz de homem com catarro, ela que, até aí, estivera debulhada em ais e em orações que enviava aos deuses e a São Clemente, santinho da sua devoção. Minha mãe a saborear o milagre de me ter trazido ao mundo, terá escutado a voz que repetia: que Deus o guarde.
Eu ouvi contar e nem foi minha mãe que mo contou.
Terei escutado das mulheres; das conversas que elas permitiam que escorressem pelas frinchas das portas: palavras soltas que me chegavam embaralhadas em medidas de peito e de cintura e linhas e alinhavos e tesouras, nas tardes diligentes da costura.
Terá sido desse modo que fiquei sabendo que minha mãe tinha ouvido uma voz ciciada a quebrar o silêncio imenso e improvável que se dera naquele intervalo entre ela estar gozando um merecido alívio, e eu ainda não ter sido sacudido pelo choro incontido que eram os meus pulmões a aprenderem como.
Ao lado de minha mãe, a ampará-la no acto de eu ter nascido, incansável, pequenina, muito magra, Mariana Brites que nunca confirmou nem desdisse, e também não mostraria pasmo quando, já homem feito, lhe perguntasse: a minha mãe ouviu a voz dizendo que Deus o guarde? ela ouviu mesmo, ti Mariana?
Ficou a olhar-me com aquele seu olhar cinzento muito claro e muito brilhante, e disse, simplesmente: chamava-se Bento, menino; esse seu trisavô era Bento de seu nome.
Que Deus o guarde, terá minha mãe ouvido, e só depois foi o meu primeiro choro, e só depois se deu o largar das fressuras, doendo como se ela de novo me parisse; e, auxiliando, Mariana Brites, minha tia-avó, solteira e donzela como ela mesma se vangloriava ruborescendo, ao de leve, nas maçãs do rosto e no pescoço.
Ia Abril a meio quando vim ao mundo. Eram dez em ponto no relógio da torre e seriam outras tantas no relógio que a tia Mariana Brites trazia no bolso.
No Abril seguinte, sugada por doença indeterminada pelos físicos, minha mãe morreu.
Talvez, entretanto, ela tenha contado: quando me nasceu o menino, ouvi a voz do avô Bento.
Ou nem ela o terá feito, receosa dos deuses, e terá sido a tia Mariana Brites quem tenha dito: no dia que lhe nasceu o filho, o meu bisavô encomendou o menino a Deus.
Terá sido de um modo ou de outro, ou eu não teria ouvido as mulheres segredando: quando lhe nasceu o filho, ouviram a voz dum avô antigo.
E benziam-se, que eu sei que elas se benziam sempre.
E nem terão dito, seja o que seja, acerca do relógio que a minha tia Mariana Brites trazia no bolso.
Talvez nunca nenhuma delas o tenha referido.
Talvez tenha sido eu que imaginei a voz desse avô Bento a surgir de dentro daquele mecanismo escondido na caixinha de prata trabalhada, onde o vidro se mantém límpido e onde ainda se ouve o tic-tac a cada minuto.
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