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domingo, 26 de abril de 2015

SLU no Diário de uma PhD

Era pra ser um mero estudo de caso. Corriqueiro. Pesquisa socioantropológica de praxe. Embasaria meu próximo artigo em publicação nacional, quiçá inglesa. Paperzinho extra no meu currículo Lattes. Metodologia adequada. Exata delimitação do corpus. Prazo determinado.

Mas sabe que os estudos desandam, né? De repente, a vida desrespeita a ciência — se é que já houve, de fato, obediência e respeito mútuos entre essas duas obstinadas senhoras.

Confesso que me envolvi. Desacertei. Quem nunca? Respirava teoria há décadas. Anos a fio encaminhando aluno de Mestrado, participando de banca de Doutorado... A ABNT não consegue impor regra à paixão humana! Acabei topando com a realidade e me desorientando.

O nome dele é Altamiro Gomes. Gari do Serviço de Limpeza Urbana (SLU). Lixeiro de pai e mãe. Irmão de caça-recicláveis cooperados. Ex-marido de catadora de piolho. Pai de filhotes piolhentos. Figurino? O laranjão do dia a dia.

Nossa primeira entrevista foi proveitosa. Altamiro não se afastou da vassoura, atraído pelos papeizinhos de bala no chão. A pá, concentrada no saneamento universitário, deslizava ágil e fominha, catando até as poeirinhas miúdas. Intimidado diante do gravador, contou sobre o ofício com alguma reserva. Foi se soltando aos poucos. “É o lixo que me sustenta” — repetia, tentando consolar-se a si mesmo. Disse odiar o uniforme que usava há oito anos, mas que a profissão valia a pena, porque agora ele não passava fome mais. “Meus filhos vão pra escola, comem biscoito recheado, usam tênis de loja. Tenho até moto”.

Falava de forma pausada, com voz grave e rouca. “Parece que os detritos pequenos grudam na goela” — explicou pigarreante. Altamiro tem o Ensino Médio completo e, segundo declarou, admira gente culta como eu. Sabe fazer contas, gosta de história e poesia. “Tenho uns versos guardados, que nunca mostrei pra ninguém. Quem ia ler escrito de gari? Tudo que eu faço, o pessoal associa com sujeira”.
Contou que era bom aluno, mas teve de parar os estudos para entrar na vida adulta. Foi pai aos dezessete anos. O casamento durou seis anos e rendeu mais duas filhas, uma com síndrome fatal. “Com o tempo, a mulher tomou raiva, desgostou pra valer. Parece que a paixão virou nojo. Deve ser assim em todo relacionamento de gari” — sentenciou. Quando falou da filhinha morta, segurou o choro. “Enquanto ela viveu, tentei ser bom pai”.

Foram várias entrevistas técnicas, devidamente registradas. Conversamos de um tudo, principalmente sobre a invisibilidade de sua classe social. “Mas um dia ainda vão me enxergar como gente, doutora. Vão me cumprimentar e me estender a mão”. A fala me comoveu. Fui incitada a lhe fazer o convite: “Altamiro, queria que você fosse à minha casa”.

Ele ficou meio sem jeito, emocionado: “Desentupo caixa de gordura, corto grama, limpo piscina. Vai me contratar como diarista?”. “Não. Você é meu convidado, Altamiro. Quero que tome um chá comigo, ou uma cerveja, se preferir”.

O rapaz pediu uns minutinhos, tomou um banho num chuveiro da universidade mesmo, vestiu-se como gente e veio ao meu encontro. “Pronto, doutora”.

Fomos no meu carro: ele, encolhido no banco do passageiro; eu, dirigindo mal como sempre. Um homem jovem, mas maduro, de poucas e sábias palavras. Nenhum pingo de machismo. No trajeto até minha casa, Altamiro contou histórias divertidas de objetos que havia encontrado no lixo, e algumas macabras, de restos de corpo misturados aos detritos. “Foi uma sensação horrível mexer em parte morta de gente que eu nem conheci”.

Ficou bem à vontade lá na minha quitinete. Deixou os sapatos do lado de fora, arregaçou as mangas da camisa e pediu pra lavar as mãos. “Sei cozinhar. Quer que eu prepare alguma coisa?” Deixei: “Tudo bem. A cozinha é pequena. Quase não uso o fogão. Almoço fora e preparo os lanches no micro-ondas”. Pediu para abrir a geladeira e encontrou alguns ingredientes. “Com tomate, cebola, orégano, ovo de codorna e pimenta, tudo fica bom”. Aquilo virou uma omelete dos deuses!

O primeiro beijo foi na cozinha americana, logo na primeira visita: ele do lado de lá da bancada, vestido com o avental, e eu de cá, completamente acesa, depois de muito me insinuar. Confesso que o ataque foi meu. A doutora pegou o gari!

Depois dos aperitivos, liguei a vitrola. Era um bolero antigo. Pra minha surpresa, ele adorou o som do vinil. Um gari pé de valsa era demais pra minha cabeça! Guiou-me com leveza e elegância: firme, delicado, resolvido! Um lixeiro irresistível, admirável, delicioso — principalmente na minha cama, onde vimos nos encontrando há meses, sempre depois das aulas de Antropologia Comparada.

O cheiro dele nunca foi mau. Miro vai me encontrar asseado, até perfumoso. Vez ou outra, prepara carne de panela, arroz de forno, legumes recheados. Meu apetite só aumenta. Ele cozinha bem, e nos comemos maravilhosamente, sem títulos, sem preconceito, sem regras — como nunca tive a oportunidade, nem enquanto jovem, em nenhuma relação com aluno, engomadinho ou acadêmico.
O lixeiro anônimo e invisível que eu procurava como amostra se tornou o melhor amante.

Até ontem, estava tudo perfeito. Eu viveria assim pra sempre, me encontrando com Miro às escondidas. Porém, ele veio com uma história que cheira mal à beça: disse ter encontrado um par de alianças de ouro no lixo. Insistiu em colocar a mais fina no meu anelar esquerdo e a outra no seu-vizinho canhoto dele. A argola amarela me serviu direitinho, e isso me assombrou. Depois daquela presepada, ele me mostrou os versos que fez “pra doutora mais linda do universo”. Estava confiante que só. O texto era algo que rimava “gari” com “abacaxi”, “lixo” com “bicho”, “professora” com “doutora” e “amor” com “calor”. Um desastre!

Assim que Miro saiu lá de casa, escondi o aro do compromisso dentro de um livro velho na prateleira mais alta da biblioteca. Voltei a ser inalcançável. E que esse gari se mantenha invisível como antes. Não tenho nojo dele. Tenho mesmo é vergonha.

Maria Amélia Elói

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5 comentários:

Ah, que texto delicioso!

Certa vez, fiquei muito decepcionado com uma amiga policial que, em um encontro informal entre amigos, afirmou que 90% daqueles que moram em favelas são bandidos. Perguntei de que trabalho científico ela havia tirado aquele número. Respondeu-me que de sua experiência pessoal...

Moro na periferia e tenho familiares e amigos que vivem em comunidades muito, muito carentes, inclusive, em favelas perigosas. Através deles, conheci muita gente bacana, que sobrevive com dignidade e bom humor à guerra civil na qual nasceram. Não é crime ser pobre... Mas ser preconceituoso, sim. Há pessoas que, quando enxergam o gari, sempre o confundem com bandido.

Adorei seu texto... Dialogou muito bem sobre os abismos sociais que apartam pessoas que talvez se gostassem, caso colocassem seus complexos e suas arrogâncias de lado.

Obrigado, Maria Amélia Elói.

Ser Gari? Tudo bem. Mas ser mal poeta é demais. Mulheres sempre românticas. Parabéns pelo texto. Realidade ou ficção?

Obrigada pela leitura, Emerson Braga e Herr Barbuse. Fiquei muito feliz com os comentários. É ficção, mas se encaixaria bem na realidade, Herr.

Obrigada pela leitura, Emerson Braga e Herr Barbuse. Fiquei muito feliz com os comentários. É ficção, mas se encaixaria bem na realidade, Herr.

Texto simples, divertido, fluido, inteligente, com um desfecho surpreendentemente realista. Meus parabéns!

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