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segunda-feira, 20 de abril de 2015

A moça que errou de porta

                                                                           José Guilherme Vereza


Mudanças são detestáveis. Em menos de 4 anos, por três ocasiões, Alexandrino praguejou o
destino e a má vontade geral dos senhorios, atravancado entre caixas e mais caixas por
todos os cantos do quarto e sala recém empossado. Xingou também os indolentes da empresa
de mudanças, sujeitos infernais, despejam móveis, tralhas, bugigangas, livros,
trecos e vinis, e o cliente que se foda para arrumar tudo.

Alexandrino passou a esmiuçar seus pertences inúteis, produtos de neuróticos apegos
sem mais nem por quê, coçando o cocuruto, aquele gesto clichê de quem não sabe por onde
começar qualquer coisa. Precisava encontrar seu companheiro de solidão na multidão
de quinquilharias, o que o fez com alguma sofreguidão, já que não se lembrava onde teria
despachado o amigo de observação e delírios.
Lembrava apenas que tinha usado meias e cuecas para proteger a peça de solavancos e mãos
pouco cuidadosas, mas horas depois, teve a surpresa de achá-lo no meio de utensílios de cozinha,
dentro de uma peneira, com duas colheres de pau amarradas em xis.
Não pergunte a razão de estranha proteção.
O importante é que já poderia dar vazão à sua ansiedade.
Enfim, o binóculo.

Apesar de enfurnado no meio de uma reserva de Mata Atlântica, o novo apartamento de
Alexandrino oferecia algumas tentações à curiosidade obsessiva.

O jardim nos fundos de um sanatório à esquerda da varanda foi logo batizado
de “Recanto dos Pulmões”, onde novos vizinhos despertavam com uma orquestra de
tosses e pigarros, pela qual executavam a sinfonia
também batizada de “O alvorecer dos tísicos”.

Em frente à varanda, árvores de copas frondosas, quando agitadas pelo vento,
descortinavam o azul de uma piscina aparentemente em forma de feijãozinho.
Dependendo da fúria da natureza, a piscina aparecia com menos ou mais pudores.
Disse o corretor que uma madame costumava tomar sol de peitos de fora em dia de calor forte,
ousando tirar a parte debaixo quando se sentia observada por olhos babões.
Prato cheio para Alexandrino.

Ligeiramente à direita, estava uma das curvas da ladeira de paralelepípedo que ligava
o edifício à parte mais urbana do bairro, com um ponto de ônibus, um jornaleiro e um quitandeiro
ambulante, todos cobertos pela luz tênue de um poste solitário ao chegar do anoitecer.
Um pouco mais à direita ainda, lado oposto ao sanatório, um edifício de quatro andares
e janelões deixaram Alexandrino saltitando guloso, passando a língua pelos lábios.
Alguns nus ligeiros, toalhas descortinadas, muitas indiscrições.

Mas nada tão atraente quanto à varanda debaixo, à direita ao seu apartamento.
Dava medo de olhar. E assim, Alexandrino nem percebeu que bem nas barbas do seu voyeurismo,
na primeira tarde-noite do primeiro sábado, uma festa estava se organizando.
Ouvia sem atenção o tilintar dos copos, pratos e talheres, o burburinho
apressado de palavras indecifráveis, mas certamente cheias de frisson e
gargalhadas - e a vitrola que já arrastava uma Bossa Nova, algo diferente das canções
que se acostumou ouvir. Alexandrino remexia caixas e mais caixas, empilhava livros,
guardava roupas, já estava exausto.
Mal percebeu a campainha.

- Oi, desculpe, acho que errei de porta.
- Acho que sim. E infelizmente. A festa é no andar de baixo.
- Desculpe mais uma vez. Não quis atrapalhar o senhor.
- Não se preocupe.  E não repare a bagunça. Acabei de me mudar. E não me chama de senhor.
- Então... 
- Então??
- Até ... boa noite
- Pra você também. E erre sempre...

Alexandrino fechou a porta e os olhos.  Reviu uma mulher de vinte e tantos anos, moreninha do sol carioca, vestido tubinho lilás pastel, joelhos à mostra, cabelos curtos roçando os maxilares e um sorriso devastador. Trazia na mão direita um presente e na esquerda algo como uma garrafa embrulhada em papel celofane. Falava olhos nos olhos. Tinha a firmeza da sinceridade e a fragilidade de quem acabou de cometer uma gafe.

Alexandrino não estava acostumado com isso. Nunca o destino tinha entregue em seu domicilio
uma inspiração tão violenta. Chegou à taquicardia.

Apesar de seus quase 38 anos, tinha um medo de mulher que se pelava. Mulher, não: amor.
Sempre dispôs de belas amantes à sua volta e na sua vida, mas nada de amadoras, fabricantes
contumazes de desgostos, segundo o que dizia a partir de alguns traumas inesquecíveis.
Preferia as profissionais, a quem reservava uma boa parte do seu orçamento mensal e nenhum
pedaço do seu coração. Volta e meia acordava com uma contratada, e diante do corpo ao seu
lado, pedia que se vestisse e tomasse o rumo da vida. Sem constrangimentos de parte a parte.
A hora de ir embora, sempre calada, era expressa através de um gentil canudinho de notas
colocado entre um seio e outro, preso ao sutiã. Às vezes, instalava o mimo pela da frente da
calcinha, numa alusão à qualidade do serviço.

E assim partia cada um para o seu canto. As moças cambaleavam seus saltos porta afora e
Alexandrino virava-se para um último cochilo, justo e saciado. Desse jeito Alexandrino
seguia a vida, protegendo-se de tremores como o que acabara de sentir com a moça equivocada,
que mesmo errando a porta, acertara em cheio seus medos mais tenebrosos, sentimentos nada paralisantes, muito pelo contrário: empurrado por uma força incomum rastejou até a varanda,
onde ficou como um pracinha na trincheira, binóculo na mão, olhos fixos nos movimentos
que vinham do apartamento debaixo.
Era um olhar de viés, numa posição de cima para baixo, onde só se alcançava, na maior parte,
chão e assoalho, mas o bastante para descobrir a dona das pernas bem torneadas
que escapavam do tubinho lilás.

Era ela. Que gingava no ritmo de algo parecido com “Era uma vez um Lobo Mau...”. 
Que encontrara o caminho da festa e destilava seu charme venenoso deixando escapar ao
binóculo potente coxas morenas de pelinhos dourados.
Que por inocência ou maldade exibia seu balanço cada vez mais próximo do ponto onde
a varanda pertencia aos abelhudos. E depois do Lobo Mau, vieram Bolinha de Sabão, 
Diz que Fui por Aí, toda sorte de sucessos emergentes, até que Alexandrino sucumbiu.
Perdeu as forças na lajota fria, deixando o tempo para trás.

Voltou aos sentidos no primeiro raio de sol, e percebeu que o sonho era persistente:
a moça permanecia no mesmo lugar, no seu balanço estonteante, agora, embalado de um
Rock and Roll pélvico, coxas mais à mostra do que nunca e, a mais cruel das tentações:
descalça. Completamente descalça, expondo a nudez mal intencionada de pezinhos
esculpidos pelos deuses em dia de diabo.

O que se via naquele momento emanava cheiro de festa e desejo. Cerveja fermentada,
cigarro, uísque, rum, Coca-Cola, vitrola, palmas, risos, gritinhos. Em pouco tempo,
o vozerio já não era tão intenso, tudo foi se dissipando. Mas a moça ainda resolveu
cometer o último ato de perversidade: como certa de que havia testemunha do seu gingado,
chegou o mais que pode no parapeito da varanda. Olhou para cima à esquerda e fulminou
com um sorriso afiado um Alexandrino encabulado, indisfarçável, pego em flagrante,
atrás de seu binóculo. E ainda teve a impiedade de levantar
um copo e lhe mandar entre os lábios um “Já acordou ou nem dormiu? ” 

É possível que Alexandrino tenha respondido. Mas ele não se lembraria.
Estava por demais perturbado para se lembrar de qualquer outra coisa naquela noite,
naquela madrugada, naquele dia que raiava.

Já passava de duas da tarde. Sobre o colchão malvestido de lençóis, ninho improvisado
direto no taco do quarto desajeitado, Alexandrino acordou lentamente ao lado de uma
moreninha nua que ressonava sem pudores nas profundezas a que foi atirada por tantos
êxtases e prazeres diversos e recorrentes.
Alexandrino reparou seu rosto escondido entre os cabelos pretos e um travesseiro sem fronha.
Conferiu orgulhoso o dourado dos pelinhos das coxas por onde se lambuzara minutos atrás.
Fitou sua estatura na medida da sua fantasia, seus pés maldosos semi envoltos num edredom amassado, sua pélvis posta em sossego, tal como seu triângulo bem aparado repousando feliz,
depois de tanta atenção e carinhos a ele dedicados horas a fio.

Embeveceu-se, enterneceu-se, estranhou-se. E olhou em volta:
o tubinho lilás pastel, a calcinha, o sutiã, as sandálias de salto alto, cada pedaço atirado
a léguas um do outro. As caixas, os livros, os vinis, os trecos, tudo que se via pela porta
entreaberta do quarto bagunçado ao caos da sala, tudo fora do lugar.

Voltou os olhos a ela. Como era mesmo seu nome? Sônia, acho que ela disse em algum
momento, um momento qualquer sem ponteiro e sem relógio, que se eternizava a cada instante silencioso e contemplativo. Sônia. Que sorria como se sonhasse, que sonhava como se
sorrisse. Será que ela gostaria de um café na cama? Onde está o pó de café?
Tem manteiga? Pão de forma? Geléia? Queijo fresco? Uma flor na bandeja?
Em que caixa de papelão ficou a torradeira?

Uma semana depois o apartamento estava arrumado.
Com capricho, toques de vida e traços de civilização amorosa.

E lá nos cafundós da entrada de serviço, dois serventes do prédio,
que ainda recolhiam os restos da mudança, quebravam a cabeça
para consertar um binóculo partido.


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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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