Provavelmente, nenhum destes fatores individuais serve para nos distinguir das demais espécies; talvez tenhamos de pensá-las em conjunto, sendo o homem um animal que, em seu desenvolvimento, agregou uma série de valores e características e, por causa delas, distanciou-se de sua natureza instintiva, a ponto de renegá-la.
Mas nosso objeto de investigação será esta última asserção sobre o erotismo. De fato, o sexo, a cópula, o acasalamento por si não é um ato erótico, é uma prática de reprodução. Apesar de sua relação com o ato sexual, o erotismo e sexo não são sinônimos.
Entende-se o erotismo como uma representação estética do sexo.
Desde muito cedo em nossa História, o ser humano representa o corpo e as funções sexuais; as formas grotescas, exageradas, com que o corpo é recriado através de esculturas ou pinturas pré-históricas, ou durante a Antigüidade, parecem pretender estimular o receptor e excitá-lo, muitas são símbolos de fertilidade, mas várias tendem a apresentar o corpo humano e o sexo como objetos de desejo.
O erotismo, ao contrário do ato sexual, não visa estimular apenas os sentidos, mas principalmente a imaginação. O sexo é um ato físico (e por vezes mecânico) que culmina no gozo e relaxamento; o erotismo é uma prática simbólica, cujo prazer deriva da preparação, do adiamento, da incompletude, do irrealizável e indizível. A excitação proveniente do erótico começa antes do sexo, ou paralelamente, pois prescinde dele, e se estende para depois. Seu objetivo é o prolongamento do estímulo, ao invés da satisfação dum clímax.
Erotismo e tabu
É fundamental compreendermos que erotismo não existe sem tabus.
Os tabus são interdições sociais de atos, palavras, objetos, ou assuntos considerados ofensivos numa comunidade.
O primeiro a trabalhar exaustivamente o tema foi Sigmund Freud (1856-1939); segundo ele, as origens dos tabus são desconhecidas e transcendem o âmbito das religiões, são provenientes, possivelmente, de sociedades pré-religiosas.
O incesto é identificado como um dos tabus universais, ou seja, no cerne das interdições sociais, a primeira delas relaciona-se ao sexo. Apesar de as razões por detrás da proibição do incesto serem bastante pragmáticas, estimular a exogamia (Claude Lévi-Strauss), o que permite um sistema de trocas entre famílias e incentiva uma maior harmonia social, deste primeiro tabu sexual derivaria uma série de interdições: nudez, falar sobre sexo, restrições sexuais, repúdio aos órgãos sexuais, entre inúmeras outras.
Em parte, o apelo do erotismo reside nesta proibição, neste constrangimento em torno da sexualidade, duma prática condenada ao ambiente privado e regida por normas de conduta aceitáveis.
Pornografia e erotismo, ou a historicidade do erotismo
Um dos primeiros problemas que surge, ao se discutir o erotismo, é a eventual distinção entre “erótico” e “pornográfico”.
Via de regra, define-se erótico como aquela representação sutil, ou que subentende o sexo, enquanto que o pornográfico seria uma reprodução crua, ou até exagerada, do coito.
Certamente que nenhuma resposta definitiva pode ser dada sobre o assunto, pelo fato de que o limite entre um e outro situa-se num ponto-cego, num campo bastante discutível.
Na verdade, erotismo e pornografia dependem de três fatores principais: 1 – o fator histórico; 2 – o fator social, e 3 – o fator subjetivo.
Acredito que o fator histórico seja o preponderante na hora de traçarmos este horizonte.
Assim como em outros gêneros, tais quais o terror e o humor, o erótico depende muito do contexto histórico no qual está inserido. Em épocas de maior licenciosidade, como em Roma antiga ou durante os movimentos de liberação sexual da década de 70, erotismo e pornografia tenderam a se aproximar. Por outro lado, a disseminação do Cristianismo, a partir do século I d.C., reforçou um conjunto de condenações morais em torno da sexualidade.
O fator social também está intimamente vinculado ao assunto, pois tanto as classes superiores quanto as mais baixas tendem a ser mais libertinas (pelo que indicam as pesquisas de Alfred Kinsey), seja porque acreditam estar acima das normas seguidas pelos demais, seja pelo desconhecimento ou repúdio a elas. Os intelectuais iluministas atacaram ferozmente, por exemplo, a hipocrisia do clero europeu, que apregoava normas morais, mas que na prática as violavam, ou a aristocracia corrompida e devassa. Deste modo, a compreensão do que é “pornográfico” ou “erótico” também depende do nível social, da formação religiosa (há religiões mais tolerantes ao sexo do que outras), do país de origem e da formação educacional.
Enfim, o fator subjetivo, que provém diretamente dos dois primeiros fatores, é aquele pertinente ao foro íntimo de cada indivíduo, que julga, de acordo com sua própria experiência e vivência, os limites da moralidade.
Deste modo, temos um espectro de interpretações que nos impede de afirmarmos, categoricamente, onde começa e acaba o “erótico”. Enquanto autores como Marquês de Sade, D. H. Lawrence, Nabokov ou Henry Miller foram considerados pornográficos por seus contemporâneos — por vezes até sofrendo sanções, como aprisionamento ou censura —, e em nossa época a literatura deles é erótica (mesmo que possa ser considerada pornográfica por alguns leitores), não temos garantia alguma de que aquilo por nós considerado pornográfico hoje será classificado, no futuro, como erótico.
Arte e erotismo
Nossa primeira conceituação de erotismo estabeleceu um vínculo entre estesia e sexualidade.
Apesar de o erotismo possuir várias formas de manifestação, seja cotidianamente, enquanto elemento das práticas sexuais dos indivíduos, ou seja de modos mais extraordinários, como dos êxtases místicos de religiosos (associação feita por Bataille), o meio mais corriqueiro ainda costuma ser através da Arte.
O erotismo está presente no cinema, nas artes plásticas, na fotografia, na dança, na música, na televisão e na literatura. Estamos em constante contato com o erotismo, sendo as artes visuais as principais detentoras deste filão. Cenas eróticas chocam, ao mesmo tempo em que atraem. Anúncios publicitários tendem a associar seus produtos à sexualidade; cenas eróticas na TV aumentam a audiência; na salinha escura do cinema, a cena erótica causa incômodo, todos seguram a respiração, na tentativa de disfarçar a excitação. A imagem possui um poder difícil de ser recriado em outros formatos. A imagem é instantânea, é através da visão que temos o conhecimento imediato do mundo.
No entanto, foi a Literatura que produziu os melhores e mais duradouros resultados.
Um texto erótico não fornece, pela própria natureza da leitura, seus segredos de uma só vez. O leitor precisa explorá-lo linha após linha, palavra por palavra. Esta delimitação permite o autor controlar a excitabilidade do que diz, confere-lhe o poder de ditar o ritmo, de estabelecer como e quando deflagrará o estímulo, a cena erótica.
Alguns preferem uma escrita direta, utilizando um jargão mais vulgar, outros optam pela sutileza, por um léxico eufemístico. A qualidade não reside nestes pólos, mas sim como o autor se articula através deles.
Mas talvez a grande importância do erotismo resida naquilo a que ele se contrapõe: o erótico é a contraparte da normatização imposta a nós pelo trabalho e pela rotina, é uma de nossas válvulas escape.
O erotismo é um momento de libertação; é aquele instante no qual as amarras dos tabus, da moralidade, do permitido, do convencional se afrouxam. Uma vida de puro erotismo seria insustentável, mas uma sem erotismo algum seria insuportável.
3 comentários:
Um texto muito bom, inteligente, Henry!
o texto que eu gostaria de ter escrito!
Obrigado, Maria.
Apesar de eu não ser um grande autor de literatura erótica, este assunto é um que me interessa muito e que diz muito sobre nossa condição humana.
Abraços.
Beleza Henry Alfred;
Muito bom este texto, li num folego... Pergunta: Jorge Amado teria sido erótico ou pornográfico, ou nem um nem outro, apenas retratado a vida nua e crua?
Fábio W. Sousa - fabiowsousa@gmail.com
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