Por ser o
descaso uma ofensa à criação, e ao tempo, e à história, e à existência e às
narrativas do possível e impossível, haveria de não somente constar entre os
pecados capitais, mas encabeçar o inventário supremo de nossos sacrilégios, ou
então classificar-se em graus e classes de injúria e o descaso em relação à
pessoa constituir o mais grave dos insultos, pois a desconsideração para com o
indivíduo importa em uma ofensa à humanidade e à imaginação. Tal comentário,
entretanto, não pretende estabelecer condutas criminosas – e isto apesar de Valéria
merecer a concessão e a decência de uma recusa educada, dir-se-ia cavalheiresca,
ao invés do desdém com que a castigava o jovem Renato.
Titular do
mais branco e prosaico dos sorrisos, especialista na psique feminina e sádico
por decisão, desdenhava-a e cortejava-a como se Valéria representasse um dos destinos
concebíveis ao amor. Sucessivamente atraída e rechaçada, consecutivamente
aviltada, ao numa noite recordar-se de críticas acerca dos excessos em seus culotes,
Valéria naufragou nos lençóis e considerou o suicídio. Culminava a madrugada, o
firmamento qual negro vão, e as estrelas ela afrontou ao reanimar-se e contrapor suas
aspirações românticas aos veementes impulsos do relacionamento. Apercebeu-o
promissor e perfeito, com as atribulações essenciais aos lendários casos de
amor, e no alvorecer resolveu por vencer as hesitações de Renato e
conquistá-lo.
Ciente de
como ele somente envolvia-se com beldades, ela, mulher insossa e indistinta,
determinou-se um programa de renovação estética que compreendia a vigorosa
rotina de exercícios físicos das forças militares, princípios de reeducação
alimentar fundamentados nas técnicas dos faquires indianos, o uso artístico da
maquilagem e numerosas, senão infinitas, cirurgias plásticas, e também de aulas de
atuação, dicção, dança do ventre e poledance.
Resultou-se
o imediato.
Antes das
intervenções cirúrgicas, antes de seis meses, Renato cedia aos seus encantos e
ao novo formato de seu corpo, e também ele involuntariamente converteu-se ao
descobrir na coragem de outrem um atributo fascinante. Não apenas, agravava-se a
atração conforme o progresso de Valéria, e ela, ou assim a revelar-se ou assim a
tornar-se, à afeição e submissão reagiu com apatia e, adiante e com crueldade,
destratou o então apaixonado Renato, além de evitá-lo e acusá-lo de fraquezas
vis.
Eram
outros, eles, e era como se os demônios do amor ora habitassem a carne dele e
ora habitassem a carne dela. Valéria, porventura entusiasta da vingança,
recordava-se das mortificações passadas e engendrava as mais indignas provações
e punições. Na última, despiu-se, sentou na cama e, da mesinha de cabeceira, segurou
o telefone celular. Pela janela entreaberta assomava o dia, e quem sabe se a
afluência da manhã ou a sensualidade de seus propósitos conceberam-na atraente
aos olhos do acaso. Valéria deitou, abriu as pernas e, sorridente, fotografou o
ventre e seus abismos. À imagem adicionou uma legenda: “Você jamais possuirá
isto!”
Por
engano, ao invés de encaminhar o retrato para Renato, enviou-o para um grupo
com os membros da família.
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