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terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Férias a sério



Apesar de ser bastante cedo e de ainda nem sequer ter jantado, Leonor decidiu preparar a bagagem, deixando de fora apenas o necessário para essa noite e para se arranjar de manhã, evitando, pois, pressas e esquecimentos antes da partida que programara para as 7 da manhã. Isto era, bem vistas as coisas, o último ato destas suas férias especiais.

Sim, daí a dois dias retomaria a sua vida habitual de que, muito francamente, já tinha saudades. Para muitos, duas semanas podem parecer pouco como férias, mas no seu caso era o máximo que conseguia aguentar sem começar a perder todos os seus efeitos benéficos.

E pensar que tudo tinha derivado de um pequeno acidente!

Tendo arrumado a última peça de roupa de que não iria precisar, sentou-se na pequena varanda da cabana que alugara para tomar a sua habitual bebida de antes do jantar e dedicou-se a algo também nada típico nela, recordar como tudo começara.

Desde bem miúda, sempre gostara de ser o centro das atenções. Podia-se, até, dizer, que vivia apenas quando reparavam nela. Na escola, tornou-se rapidamente, uma das mais populares ou, pelo menos, umas das mais faladas, pelas suas roupas diferentes e, acima de tudo, pelo seu comportamento muito vivo e sempre a inventar alguma. Mas todos lhe desculpavam as brincadeiras e piadas, até mesmo os professores, porque não havia maldade nelas, era apenas “exuberância”, como lhe chamara a diretora.

E quando um pouco mais tarde descobriu o mundo dos podcasts... bom, foi o paraíso na terra. Podia agora estar sob escrutínio público quase o tempo todo que passava acordada, presencialmente ou via ecrãs, o que contava é que não dava um passo, nada fazia que não fosse imediatamente partilhado.

Inevitavelmente, mal acabou os estudos arranjou um emprego de relações públicas e, com o seu feitio e jeito para animar qualquer ambiente, tinha imenso êxito. Mas não tanto como na Internet, onde se podia orgulhar de ter uns milhares largos de seguidores que seguiam religiosamente todos os seus passos – bom, fora das horas de trabalho, bem entendido.

Ora um belo dia em que estava, como quase sempre, atrasada, Leonor escorregou e, para grande azar seu, embateu com a cara num muro áspero. Não foi grave, mas entre equimoses e feridas a sua face ficou uma lástima. Como cumpria os seus próprios horários sabia que não estranhariam não aparecer na agência nesse dia. Mas essa ausência não poderia prolongar-se muito ou daria azo a perguntas e, pior ainda, a alguma visita a casa!

E havia ainda o problema do seu podcast, nem pensar em filmar-se com aquele aspeto, tinha uma imagem a defender. Ora no hospital tinham sido muito claros, não voltaria ao normal antes de 10 a 15 dias.

Passou o resto do que seria o seu período laboral a dar voltas à cabeça e foi quase no limite que teve uma ideia genial que resolveria tudo: ir de férias.

Mas não umas férias como as que costumava tirar, uma vez que os seus seguidores esperariam ter ainda mais horas com ela. Não, teria de ser algo que justificasse uma total falta de imagens e de contactos. Pois bem, iria para uma aldeola que uma prima gabava muito como sendo um oásis de paz, de tal modo que nem Internet tinha! Mas havia várias opções de estadia, incluindo pequenas cabanas independentes, uma vez que era um destino muito popular para escritores e artistas em geral.

Com a alma de luto pelo corte total com o seu mundo eletrónico, Leonor rabiscou uma mensagem – sem imagem, claro – para o podcast a informar que fora chamada a cuidar de um familiar numa terriola isolada, não podendo, pois, manter as suas transmissões durante alguns dias, usando a mesma desculpa num telefonema para o emprego.

E lá foi ela, de orelha murcha, em direção ao exílio. Como o seu nome era bastante conhecido, pelo menos em certos meios, optou por usar o seu outro nome, Ana, que nunca utilizara por o achar demasiado corriqueiro, e o apelido da mãe, que também nunca usava. E como explicação para a sua estadia, caso lhe pedissem uma, decidiu ser uma escritora em crise de inspiração e que tivera um pequeno acidente de carro.

Espantosamente, correu até tudo muito bem, apesar de ser uma vida totalmente diferente da que levava há anos. Em vez de festas, saídas, convívios, compras, o máximo da animação era uma ida a um snack local onde “partilhava”, se é que se podia usar esse termo, uma refeição com meia dúzia de pessoas todas elas enfronhadas num livro ou em si próprias. E como optara por uma das cabanas, para evitar muitas perguntas sobre o que lhe acontecera, passava a maior parte do dia sem ver vivalma.

Mas não se sentia aborrecida, como esperara. E ao fim de dois ou três dias começou, até, a sentir um novo vigor, uma paixão renovada pela vida, dando caminhadas sem pensar em fazer comentários “giros” para o seu público e lendo, até, alguns dos livros que encontrara no seu alojamento e que não eram nada o seu género, bom, eram livros e não revistas...

E foi de alma limpa e renovada que regressou ao emprego e ao podcast após duas semanas de jejum total.

Só que em vez de uma vez sem exemplo, por pura necessidade, esta sua “pausa na vida” der origem a uma nova tradição. Passou a tirar, todos os anos, duas semanas “especiais” para carregar baterias, apresentando aos seus seguidores razões variadas para não estar sempre em direto, desde um familiar doente – pois, deviam pensar que já era azar – a um retiro num local que mantinha anónimo por razões legais e muitas outras, imaginação sempre fora o seu forte.

Felizmente, descobrira que duas semanas eram mais do que suficientes para tirar umas férias de si mesma, se durassem mais tempo as coisas tornavam-se complicadas, como descobrira da única vez que tentara estender um pouco esse período. Não, gostava demasiado da sua vida para abdicar dela mais tempo.

Luísa Lopes

Imagem feita com QuickWrite

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