É
estranho não lembrar de fatos simples do dia a dia. Venho me esquecendo das
coisas com certa frequência. Vó me diz que isso tem a ver com o cansaço. “Você
não para quieto, menino, é curso, aula, faculdade… Seu corpinho não vai
aguentar!”. Não é bem um aviso que soa na minha mente, mas uma determinação:
você não pode continuar assim. É uma compulsão, para me tirar dos pensamentos
ruins – por um lado, é uma fuga. Tenho medo do que pode ser; quem sabe, um
distúrbio precoce. É preciso dizer que meu pai era bipolar e o vi, em vários
momentos da vida, ser amarrado e arrancado de nossa convivência por brutamontes
– que ele acusava, quando voltava do transe, de tê-lo surrado. Ele envelheceu
horrores com as medicações fortes. Era letárgico e pacífico, ao final de seus
dias. Tinha tiques que o deixavam paralisado e bisonho para quem o visse.
Andava segurando as paredes quando não havia suporte de familiares. Uma noite,
acordei atordoado pensando que havia tido um pesadelo, mas era ele no banheiro,
caído, todo sujo de cocô; uma criança indefesa, chorando, com vergonha e com
medo. Mariazinha, minha mãe, também tinha problemas psiquiátricos; foi
internada várias vezes por esquizofrenia. Dessa – que Deus a tenha –, não sei o
paradeiro. Pouco ou nada tive contato com ela. Vivi muitos anos na casa de meus
avós paternos, porque tinham pena de mim e do meu pai. Ah, meu pai foi advogado
atuante, um bom “ganhador de causas”, como era conhecido. Mas de uma hora para
outra foi acometido pela doença que o sugou. Meus avós, por medo de dívidas –
porque meu pai virava pródigo quando estava em estado de euforia –, resolveram
impedi-lo de trabalhar. Então, resolveu escrever e se virar como revisor.
Escrevia poemas lindos, que contrastavam com sua condição. Só que o trabalho
era pingado e não garantia o sustento. Por isso, tive de batalhar desde cedo.
Comecei no comércio do meu tio Luís, que, carinhosamente, me chamava de
“doidinho”. Minha avó o ralhava por esse tipo de implicância. “Mas como,
mamãe?! Tenho culpa?! Esse menino está condenado a ser doido. Filho de quem
é…”. Isso eu escutei por detrás da porta da sala, num dia em que vovó deu uma
surra nele – mesmo sendo maior, vovó mantinha a autoridade intacta. O valentão,
aos gritos, prometeu me demitir, porque “não ia ficar tomando conta de
trambolho”. Eu mesmo pedi as minhas contas. Disse que precisava estudar, o que
não era mentira. Passei dois anos sendo sustentado pelos meus avós, com a
promessa de passar no vestibular de medicina. Um sonho maluco, que deu certo.
Entrei numa universidade particular, através do Fies. Queria cuidar do meu pai.
Queria que ele tivesse o mínimo de independência e uma vida relativamente
normal, na medida do possível. Foram anos puxados. Quase fui obrigado a trancar
um semestre para colocar a cabeça no lugar, mas justamente meu pai me ajudou a
lidar com as imensas obrigações. Papai falou a palavra-chave: “Você deve esfregar
o diploma na cara do seu tio!”. Mais do
que ajudar o meu pai, eu devia mostrar do que era capaz – ou seja, não estava
condenado pela genética a ser um incapaz. Formei-me em cinco anos, no tempo
correto, e logo entrei para a residência em psiquiatria. Peguei todos os tipos
de casos. Vi que meu pai estava no limiar para a sanidade; havia muita coisa
pior. Mas, uma fatalidade, antes de concluir a bendita residência, meu pai se
foi, leve como um passarinho; teve uma parada cardíaca silenciosa e traiçoeira.
Como dizem, dormiu e não acordou. Agora, recolho os cacos para cuidar dos meus
avós e lhes dar um pouco de vida. A vida que não tiveram. Doaram-se pelo meu
pai. Tudo por ele. Ainda, sim, tudo por ele; para honrá-lo.
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