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sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Por ele

 


É estranho não lembrar de fatos simples do dia a dia. Venho me esquecendo das coisas com certa frequência. Vó me diz que isso tem a ver com o cansaço. “Você não para quieto, menino, é curso, aula, faculdade… Seu corpinho não vai aguentar!”. Não é bem um aviso que soa na minha mente, mas uma determinação: você não pode continuar assim. É uma compulsão, para me tirar dos pensamentos ruins – por um lado, é uma fuga. Tenho medo do que pode ser; quem sabe, um distúrbio precoce. É preciso dizer que meu pai era bipolar e o vi, em vários momentos da vida, ser amarrado e arrancado de nossa convivência por brutamontes – que ele acusava, quando voltava do transe, de tê-lo surrado. Ele envelheceu horrores com as medicações fortes. Era letárgico e pacífico, ao final de seus dias. Tinha tiques que o deixavam paralisado e bisonho para quem o visse. Andava segurando as paredes quando não havia suporte de familiares. Uma noite, acordei atordoado pensando que havia tido um pesadelo, mas era ele no banheiro, caído, todo sujo de cocô; uma criança indefesa, chorando, com vergonha e com medo. Mariazinha, minha mãe, também tinha problemas psiquiátricos; foi internada várias vezes por esquizofrenia. Dessa – que Deus a tenha –, não sei o paradeiro. Pouco ou nada tive contato com ela. Vivi muitos anos na casa de meus avós paternos, porque tinham pena de mim e do meu pai. Ah, meu pai foi advogado atuante, um bom “ganhador de causas”, como era conhecido. Mas de uma hora para outra foi acometido pela doença que o sugou. Meus avós, por medo de dívidas – porque meu pai virava pródigo quando estava em estado de euforia –, resolveram impedi-lo de trabalhar. Então, resolveu escrever e se virar como revisor. Escrevia poemas lindos, que contrastavam com sua condição. Só que o trabalho era pingado e não garantia o sustento. Por isso, tive de batalhar desde cedo. Comecei no comércio do meu tio Luís, que, carinhosamente, me chamava de “doidinho”. Minha avó o ralhava por esse tipo de implicância. “Mas como, mamãe?! Tenho culpa?! Esse menino está condenado a ser doido. Filho de quem é…”. Isso eu escutei por detrás da porta da sala, num dia em que vovó deu uma surra nele – mesmo sendo maior, vovó mantinha a autoridade intacta. O valentão, aos gritos, prometeu me demitir, porque “não ia ficar tomando conta de trambolho”. Eu mesmo pedi as minhas contas. Disse que precisava estudar, o que não era mentira. Passei dois anos sendo sustentado pelos meus avós, com a promessa de passar no vestibular de medicina. Um sonho maluco, que deu certo. Entrei numa universidade particular, através do Fies. Queria cuidar do meu pai. Queria que ele tivesse o mínimo de independência e uma vida relativamente normal, na medida do possível. Foram anos puxados. Quase fui obrigado a trancar um semestre para colocar a cabeça no lugar, mas justamente meu pai me ajudou a lidar com as imensas obrigações. Papai falou a palavra-chave: “Você deve esfregar o diploma na cara do seu tio!”.  Mais do que ajudar o meu pai, eu devia mostrar do que era capaz – ou seja, não estava condenado pela genética a ser um incapaz. Formei-me em cinco anos, no tempo correto, e logo entrei para a residência em psiquiatria. Peguei todos os tipos de casos. Vi que meu pai estava no limiar para a sanidade; havia muita coisa pior. Mas, uma fatalidade, antes de concluir a bendita residência, meu pai se foi, leve como um passarinho; teve uma parada cardíaca silenciosa e traiçoeira. Como dizem, dormiu e não acordou. Agora, recolho os cacos para cuidar dos meus avós e lhes dar um pouco de vida. A vida que não tiveram. Doaram-se pelo meu pai. Tudo por ele. Ainda, sim, tudo por ele; para honrá-lo.


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