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sábado, 13 de janeiro de 2024

encontros e... Encontros

 

encontros e…Encontros

 

O cão era grande e bonito. Olhou para mim e abanou a cauda. Olhei para ele e sem rodeios disse-lhe:

̶  Fica no teu caminho que eu sigo o meu.

Até parece que entendeu aquilo que eu disse, porque não se mexeu quando passei por ele. Ao chegar ao fim da rua e antes de virar a esquina olhei para trás. Fiz o gesto de relance, não fosse o diabo do cão pensar que eu estava a convidá-lo para me acompanhar. Apesar do rápido virar da cabeça deu para ver que ele ainda ali estava parado, talvez a seguir-me com os olhos.

Atento ao que se ia passando à minha volta, rapidamente esqueci-me dele e fui andando ao longo duma rua esburacada e cheia de lama que confluía com uma estreita, comprida viela. Era ali que eu tinha o meu destino. Lá ao fundo pontificava um contentor que recebia os restos de uma casa de pasto situada a poucos metros.

A vida está cada vez difícil, porque agora os clientes levam para casa os restos do almoço, por isso nós, os especialistas na arte da procura, notamos cada vez mais que os restos são cada vez menos. Também as casas de pasto com a crise são menos frequentadas de clientes.

Eu aproveito o anoitecer para fazer o meu abastecimento naquela abastada viela, mal conhecida pelos meus camaradas de rua. Ainda somos poucos os comensais nocturnos daquele contentor.

«É hora de me aproximar do local certo. Se não me apresso, arrisco-me a não ter nada que trincar, o que vai agravar a situação. A boa sorte não bate muitas vezes à mesma porta, uma, duas vezes no máximo e temos de estar lá para a agarrarmos com todas as nossas forças. A má sorte é que aparece mais vezes e nem sequer bate à porta, entra de qualquer maneira e ele que o diga, já a experimentou algumas vezes na sua longa vida»

Antes de o abrir o contentor olhei para todos os lados, não fosse alguém estar ali a querer aproveitar-se dos meus achados, mas não se vi vivalma a não ser uns olhitos, talvez de algum gato ou de algum um cão vadio, a brilharem ao fundo da rua. Esses não me incomodavam, nem tinham a intenção de se aproveitarem daquilo que lhe poderia servir.

Vasculhado o contentor nada mais encontrei do que duas asas, o peito do frango, e algumas batatas cozidas. Guardados os bocados num saco de plástico caminhei ao longo da viela. Fui seguido por aqueles olhos brilhantes que continuavam no mesmo sítio, sem se mexerem. Por precaução reduzi a marcha e tomei as devidas precauções, não fosse sofrer algum ataque por parte do dono daqueles olhos que o fitavam. Afinal esses olhitos já eram meus conhecidos.

̶  És o cão que encontrei hoje à tarde, parece que os nossos caminhos estão a cruzar-se. Já te disse que cada um se faça à sua vida. Nos tempos que correm temos de contar só connosco, uma boca para alimentar já é difícil, duas seria bem pior. Oh! Estás com uma patita presa nesse buraco e não consegues safar-te sozinho. Por isso não te mexeste desse sítio quando me aproximei, não podias. Vou ajudar-te, mas mantenho a minha decisão, cada um vai à sua vida e desde já te digo que não pretendo agradecimentos.

Resgatada a patita do cão, analisei-a e concluiu empiricamente que não havia lesão à vista e, assim, dei por concluída a operação de resgate. Antes de me ir embora escolhi uma das asas e deixei-a ao pé dele. O cão olhou para mim, abanou a cauda. Cada um rumou ao seu destino e na solidão da miséria lá fomos sobrevivendo, uns dias melhores outros piores. Nos momentos em que a solidão apertava mais, vagueávamos sem tempo pela rua que confluía com a viela. Fiéis ao acordo olhávamo-nos carinhosamente e cada um seguia o seu destino. Às vezes quase que nos tocávamos, mas nunca chegámos a vias de facto, bastava o olhar.

Durante muito tempo, os caminhos os nossos caminhos não se cruzaram. Passaram tempos e outros tempos vieram e a crise acentuou-se e com ela a fome a miséria e a doença apareceram com mais força.

No fim de uma tarde fria de inverno envolto num triste nevoeiro vê-se um vulto arrastando pesadamente os pés pela viela malcheirosa. Com muita dificuldade conseguiu chegar junto ao contentor do lixo e esforçadamente abriu a tampa e remexeu o lixo. Desalentado e sem nada que lhe mitigasse a fome afastou-se uns metros, parou, deixou-se cair pesadamente no chão e encostou o leve peso do corpo na húmida parede. Olhou em redor e viu ao longe os já conhecidos olhitos que não o deixavam de fitar. A saudade de um olhar mais de perto foi crescendo dentro de si. Era o que mais desejava naquele momento.

De repente o cão virou-lhe a cauda e saiu correndo como se da peste fugisse.

«Ah! Tu também já foges de mim!»

Fechou os olhos e fez um último esforço para não sonhar. Só queria que a noite viesse. Mas em vez da noite veio mais do que um sonho lamber-lhe carinhosamente a face. Abriu os olhos e viu o cão a olhar para ele, a mexer a cauda.

Era grande e bonito e trazia na boca um bom pedaço de carne assada.

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