encontros
e…Encontros
O
cão era grande e bonito. Olhou para mim e abanou a cauda. Olhei para ele e sem
rodeios disse-lhe:
̶
Fica no teu caminho que eu sigo o meu.
Até
parece que entendeu aquilo que eu disse, porque não se mexeu quando passei por
ele. Ao chegar ao fim da rua e antes de virar a esquina olhei para trás. Fiz o
gesto de relance, não fosse o diabo do cão pensar que eu estava a convidá-lo
para me acompanhar. Apesar do rápido virar da cabeça deu para ver que ele ainda
ali estava parado, talvez a seguir-me com os olhos.
Atento
ao que se ia passando à minha volta, rapidamente esqueci-me dele e fui andando
ao longo duma rua esburacada e cheia de lama que confluía com uma estreita,
comprida viela. Era ali que eu tinha o meu destino. Lá ao fundo pontificava um
contentor que recebia os restos de uma casa de pasto situada a poucos metros.
A
vida está cada vez difícil, porque agora os clientes levam para casa os restos
do almoço, por isso nós, os especialistas na arte da procura, notamos cada vez
mais que os restos são cada vez menos. Também as casas de pasto com a crise são
menos frequentadas de clientes.
Eu
aproveito o anoitecer para fazer o meu abastecimento naquela abastada viela,
mal conhecida pelos meus camaradas de rua. Ainda somos poucos os comensais
nocturnos daquele contentor.
«É
hora de me aproximar do local certo. Se não me apresso, arrisco-me a não ter
nada que trincar, o que vai agravar a situação. A boa sorte não bate muitas
vezes à mesma porta, uma, duas vezes no máximo e temos de estar lá para a
agarrarmos com todas as nossas forças. A má sorte é que aparece mais vezes e
nem sequer bate à porta, entra de qualquer maneira e ele que o diga, já a
experimentou algumas vezes na sua longa vida»
Antes
de o abrir o contentor olhei para todos os lados, não fosse alguém estar ali a
querer aproveitar-se dos meus achados, mas não se vi vivalma a não ser uns
olhitos, talvez de algum gato ou de algum um cão vadio, a brilharem ao fundo da
rua. Esses não me incomodavam, nem tinham a intenção de se aproveitarem daquilo
que lhe poderia servir.
Vasculhado
o contentor nada mais encontrei do que duas asas, o peito do frango, e algumas batatas
cozidas. Guardados os bocados num saco de plástico caminhei ao longo da viela. Fui
seguido por aqueles olhos brilhantes que continuavam no mesmo sítio, sem se
mexerem. Por precaução reduzi a marcha e tomei as devidas precauções, não fosse
sofrer algum ataque por parte do dono daqueles olhos que o fitavam. Afinal
esses olhitos já eram meus conhecidos.
̶
És o cão que encontrei hoje à tarde,
parece que os nossos caminhos estão a cruzar-se. Já te disse que cada um se
faça à sua vida. Nos tempos que correm temos de contar só connosco, uma boca
para alimentar já é difícil, duas seria bem pior. Oh! Estás com uma patita
presa nesse buraco e não consegues safar-te sozinho. Por isso não te mexeste
desse sítio quando me aproximei, não podias. Vou ajudar-te, mas mantenho a
minha decisão, cada um vai à sua vida e desde já te digo que não pretendo
agradecimentos.
Resgatada
a patita do cão, analisei-a e concluiu empiricamente que não havia lesão à
vista e, assim, dei por concluída a operação de resgate. Antes de me ir embora
escolhi uma das asas e deixei-a ao pé dele. O cão olhou para mim, abanou a
cauda. Cada um rumou ao seu destino e na solidão da miséria lá fomos
sobrevivendo, uns dias melhores outros piores. Nos momentos em que a solidão
apertava mais, vagueávamos sem tempo pela rua que confluía com a viela. Fiéis
ao acordo olhávamo-nos carinhosamente e cada um seguia o seu destino. Às vezes
quase que nos tocávamos, mas nunca chegámos a vias de facto, bastava o olhar.
Durante
muito tempo, os caminhos os nossos caminhos não se cruzaram. Passaram tempos e
outros tempos vieram e a crise acentuou-se e com ela a fome a miséria e a
doença apareceram com mais força.
No
fim de uma tarde fria de inverno envolto num triste nevoeiro vê-se um vulto
arrastando pesadamente os pés pela viela malcheirosa. Com muita dificuldade
conseguiu chegar junto ao contentor do lixo e esforçadamente abriu a tampa e
remexeu o lixo. Desalentado e sem nada que lhe mitigasse a fome afastou-se uns
metros, parou, deixou-se cair pesadamente no chão e encostou o leve peso do
corpo na húmida parede. Olhou em redor e viu ao longe os já conhecidos olhitos
que não o deixavam de fitar. A saudade de um olhar mais de perto foi crescendo
dentro de si. Era o que mais desejava naquele momento.
De
repente o cão virou-lhe a cauda e saiu correndo como se da peste fugisse.
«Ah!
Tu também já foges de mim!»
Fechou
os olhos e fez um último esforço para não sonhar. Só queria que a noite viesse.
Mas em vez da noite veio mais do que um sonho lamber-lhe carinhosamente a face.
Abriu os olhos e viu o cão a olhar para ele, a mexer a cauda.
Era
grande e bonito e trazia na boca um bom pedaço de carne assada.
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