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segunda-feira, 22 de agosto de 2022

O Pé-de-Múmia

 


Era a noite de seu aniversário, e mesmo se fosse dia Vagner dela desconfiaria. Não só devido ao nome, Nestora, mas sobretudo pela circunstância de vir a encontrá-la – ela, a fêmea lapidar – na companhia de amigos galhofeiros, e também por ser ele um azarado de renome, cuja vida fora, e era, uma sucessão de erros e desacertos. Somente conhecera de mulheres assim, monumentais, nos filmes, e mesmo as musas da fantasia ela ofuscava. Nem tanto eram as suas proporções, o contraste entre o volumoso busto e a circunferência dos quadris com a cinturinha de anoréxica, ou a pele, lisa e resplandecente, e sim o rosto, delicado nos olhos cor de mel e selvagem nos lábios e nas sobrancelhas.

Com esse nome, é uma transexual. Ou é tudo efeito da maquiagem, da escuridão e dos ângulos. Ou eu estou bêbado, segredou para si e escorou-se no copo de cerveja, Vagner. Malgrado o mundo ao redor rodasse, rodava por tê-lo, enfim, como eixo – ou assim julgava ele –, e entre as demais peculiaridades da ocasião estava a de Nestora haver iniciado a interação.

Festejavam o aniversário de Vagner numa boate, era sexta, e como Caronte, o barqueiro das esferas inferiores, a transitar de um mundo a outro, mas a nenhum pertencendo, foi tocado por dedos que surgiram da massa popular, morta, e apanharam seu pulso. Adorei a tatuagem, ouviu ele, e já então ela acercava-o com olhos e carnes. Da penumbra avultava o contraste entre o desenho, no antebraço de Vagner, das quatro Tartarugas Ninja, além do braço em si, flácido e murcho, com a graciosa mão de Nestora as unhas negras e pontilhadas de estrelas.

Respondeu ele com um Obrigado arrastado e molengo, e temendo o compromisso da conversação, a incumbência de mitigar os silêncios e, em som e presença, sobrepor-se à multidão, já afastava-se quando Nestora tomou a iniciativa das palavras e conquistou-o com sua personalidade. Por uma, duas horas, confabularam num canto, lábios contra orelhas, e de ela ir ao toalete os amigos de Vagner abordaram-no e felicitaram-no.

É golpe de vocês, disse ele, descrente. É golpe!

Regressando ela, conversaram e tocaram-se, abraçaram-se, e malgrado a evidente atração Vagner furtou-se de beijá-la, furtou-se às chances do amor. Permaneceram juntos, contudo, até as altas horas da noite, e antes de ir embora Nestora exigiu um meio de contato.

Pois já de manhã ele recebia, em mensagem de texto, um bom dia. Restaurado e assentado na realidade, diante de si, suspeitou ainda mais do mulherão antológico e de seu interesse – mas reagiu com boa vontade. Durante a semana, conheceram-se melhor, sem disfarces senão os do estilo. Nestora era, além de belíssima, espirituosa e irônica, expansiva. Proprietária de três lojas de roupa, nas horas vagas ou treinava para disputas de crossfit ou para disputas de jogos eletrônicos. Era competitiva ao extremo, e quando Vagner indagou os porquês de sua aproximação, ela respondeu,

O desafio, o maior dos desafios: o amor.

Riram os dois, e encerradas as risadas ela o convidou para um encontro. Ele aceitou, não sem antes hesitar e ouvir dela outras exortações.

Em minha casa, determinou Nestora. Eu preparo o jantar.

Na noite marcada, tremia. Ao vê-la, só faltou chorar e fugir. Nestora, ainda mais bela, vestia calça jeans rasgadas, tênis, e camisa decotada. Já ele estava mal-humorado, taciturno e calado, como se obrigado a estar ali. Ciente de suas preferências, preparou hambúrgueres e batatas-fritas, sorvete de sobremesa. Saciados de uma fome, sentaram no sofá e beberam cerveja. Abrandara-se o mau humor de Vagner, e eles então criticavam a programação da televisão aberta. Passaram, feito duas crianças endiabradas, a se tocar e lutar, a se arranhar, e não foi sem violência que Nestora, como reação a um apertão na bochecha, sentou em seu colo. Beijou-o, um beijo doloroso, ciente das restrições da carne. Algo nessa comunhão de lábios, contudo, despertou os instintos e a força de Vagner – fê-lo, enfim, reivindicar o controle. Tomando-a pela cintura jogou-a de costas no sofá. Entre beijos e afagões despiram-se eles, e com exceção das meias em Nestora, estavam nus.

Apesar de também ser bela de meias, Vagner encarou-a.

Tire-as, ordenou.

É melhor não, disse ela.

Tire-as.

Irresoluta e trêmula, Nestora desnudou o pé direito, tão lindo quanto o corpo inteiro, a parte tão significante quanto o todo.

Antes de desnudar o esquerdo, soluçava.

Você tem certeza?

Sim, afirmou ele.

Derrotada, arrancou a meia, e diante de Vagner expôs-se um pé horrendo e disforme, acavalado, com nervos e ossos excessivos. Além disso, tinha seis dedos, e o sexto era um dedão adicional. Nestora chorava.

Eu sabia, disse Vagner, eu sabia. Havia algo de errado nessa história.

Com Nestora ajoelhada a seus pés, pegou-a pelos cabelos e, sobrepujada a escuridão, fitaram-se.

Agora sim posso amá-la, declarou ele, e beijou-a.


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Erik K. Weber
Gaúcho.






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