Era a
noite de seu aniversário, e mesmo se fosse dia Vagner dela desconfiaria. Não só
devido ao nome, Nestora, mas sobretudo pela circunstância de vir a encontrá-la
– ela, a fêmea lapidar – na companhia de amigos galhofeiros, e também por ser
ele um azarado de renome, cuja vida fora, e era, uma sucessão de erros e desacertos.
Somente conhecera de mulheres assim, monumentais, nos filmes, e mesmo as musas
da fantasia ela ofuscava. Nem tanto eram as suas proporções, o contraste entre
o volumoso busto e a circunferência dos quadris com a cinturinha de anoréxica,
ou a pele, lisa e resplandecente, e sim o rosto, delicado nos olhos cor de mel
e selvagem nos lábios e nas sobrancelhas.
Com esse
nome, é uma transexual. Ou é tudo efeito da maquiagem, da escuridão e dos
ângulos. Ou eu estou bêbado, segredou para si e escorou-se no copo de cerveja,
Vagner. Malgrado o mundo ao redor rodasse, rodava por tê-lo, enfim, como eixo –
ou assim julgava ele –, e entre as demais peculiaridades da ocasião estava a de
Nestora haver iniciado a interação.
Festejavam
o aniversário de Vagner numa boate, era sexta, e como Caronte, o barqueiro das
esferas inferiores, a transitar de um mundo a outro, mas a nenhum pertencendo,
foi tocado por dedos que surgiram da massa popular, morta, e apanharam seu
pulso. Adorei a tatuagem, ouviu ele, e já então ela acercava-o com olhos e
carnes. Da penumbra avultava o contraste entre o desenho, no antebraço de
Vagner, das quatro Tartarugas Ninja, além do braço em si, flácido e murcho, com
a graciosa mão de Nestora as unhas negras e pontilhadas de estrelas.
Respondeu
ele com um Obrigado arrastado e molengo, e temendo o compromisso da
conversação, a incumbência de mitigar os silêncios e, em som e presença,
sobrepor-se à multidão, já afastava-se quando Nestora tomou a iniciativa das
palavras e conquistou-o com sua personalidade. Por uma, duas horas,
confabularam num canto, lábios contra orelhas, e de ela ir ao toalete os amigos
de Vagner abordaram-no e felicitaram-no.
É golpe
de vocês, disse ele, descrente. É golpe!
Regressando
ela, conversaram e tocaram-se, abraçaram-se, e malgrado a evidente atração
Vagner furtou-se de beijá-la, furtou-se às chances do amor. Permaneceram
juntos, contudo, até as altas horas da noite, e antes de ir embora Nestora
exigiu um meio de contato.
Pois já
de manhã ele recebia, em mensagem de texto, um bom dia. Restaurado e assentado
na realidade, diante de si, suspeitou ainda mais do mulherão antológico e de
seu interesse – mas reagiu com boa vontade. Durante a semana, conheceram-se
melhor, sem disfarces senão os do estilo. Nestora era, além de belíssima,
espirituosa e irônica, expansiva. Proprietária de três lojas de roupa, nas
horas vagas ou treinava para disputas de crossfit ou para disputas de jogos
eletrônicos. Era competitiva ao extremo, e quando Vagner indagou os porquês de
sua aproximação, ela respondeu,
O
desafio, o maior dos desafios: o amor.
Riram os
dois, e encerradas as risadas ela o convidou para um encontro. Ele aceitou, não
sem antes hesitar e ouvir dela outras exortações.
Em minha
casa, determinou Nestora. Eu preparo o jantar.
Na noite
marcada, tremia. Ao vê-la, só faltou chorar e fugir. Nestora, ainda mais bela,
vestia calça jeans rasgadas, tênis, e camisa decotada. Já ele estava
mal-humorado, taciturno e calado, como se obrigado a estar ali. Ciente de suas
preferências, preparou hambúrgueres e batatas-fritas, sorvete de sobremesa.
Saciados de uma fome, sentaram no sofá e beberam cerveja. Abrandara-se o mau
humor de Vagner, e eles então criticavam a programação da televisão aberta.
Passaram, feito duas crianças endiabradas, a se tocar e lutar, a se arranhar, e
não foi sem violência que Nestora, como reação a um apertão na bochecha, sentou
em seu colo. Beijou-o, um beijo doloroso, ciente das restrições da carne. Algo
nessa comunhão de lábios, contudo, despertou os instintos e a força de Vagner –
fê-lo, enfim, reivindicar o controle. Tomando-a pela cintura jogou-a de costas
no sofá. Entre beijos e afagões despiram-se eles, e com exceção das meias em
Nestora, estavam nus.
Apesar
de também ser bela de meias, Vagner encarou-a.
Tire-as,
ordenou.
É melhor
não, disse ela.
Tire-as.
Irresoluta
e trêmula, Nestora desnudou o pé direito, tão lindo quanto o corpo inteiro, a
parte tão significante quanto o todo.
Antes de
desnudar o esquerdo, soluçava.
Você tem
certeza?
Sim,
afirmou ele.
Derrotada,
arrancou a meia, e diante de Vagner expôs-se um pé horrendo e disforme,
acavalado, com nervos e ossos excessivos. Além disso, tinha seis dedos, e o
sexto era um dedão adicional. Nestora chorava.
Eu
sabia, disse Vagner, eu sabia. Havia algo de errado nessa história.
Com
Nestora ajoelhada a seus pés, pegou-a pelos cabelos e, sobrepujada a escuridão,
fitaram-se.
Agora
sim posso amá-la, declarou ele, e beijou-a.
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