Uma
luz tão intensa, que conseguiu cegar por completo o sol, brilhou nos céus
instantes antes de se ouvir deflagrar uma
gigantesca explosão, que devastou em poucos minutos praticamente tudo. Não
restou pedra em cima de pedra, de pé só ficou a destruição.
Um
vento quente e pegajoso que se formou na altura da explosão continuou a lançar
faúlhas ainda incandescentes que alimentaram a voracidade dos incêndios. As
cinzas que caíram amortalharam pessoas, animais e coisas.
O
número de mortos era incontável e viam-se espalhados por todos os lados. Os
feridos agonizavam sob os escombros sem socorros disponíveis para os ajudarem.
Os vivos sãos arrastavam-se durante horas pelas ruas, como se fossem sonâmbulos
em busca do nada.
Não
sabiam o que tinha acontecido, só sabiam que à sua frente tinham o apocalipse.
A.,
caminhou longas horas arrastando os passos errantes por entre os destroços.
Quando sentiu que as forças começavam a fraquejar sentou-se no chão e fechou os
olhos à tragédia. Não queria ver mais nada, somente esquecer aquele inferno de
ferro e fogo. Já era tarde quando conseguiu reconciliar-se com o sono.
Esse
sono que em vez de lhe trazer um pouco de alívio ainda o mortificou mais.
Poucos foram os momentos dormidos em que não foi assaltado por negras e
tenebrosas imagens saídas do fim dos tempos: pessoas a desintegrarem-se,
edifícios a ruir estrondosamente, crateras que se abriam e engoliam pedaços da
cidade, negras aves de rapina que voavam rasante com pedaços de carne nas
garras, animais famintos que estripavam os ventres dos moribundos.
Toda
essa surreal imagética, assim como aparecia assim desaparecia, sucedendo-lhe
alguns momentos de silêncios aterradores, quebrados a espaços por assustadoras
explosões.
O
cheiro a queimado e a morte eram agora ainda mais intensos. A tragédia
revelava-se em toda a sua crueldade. Não sabia que horas eram. O negro nevoeiro
que envolvia toda a cidade não deixava perceber se ainda era de madrugada ou se
o sol nesse dia tinha nascido. Naquela situação, qualquer hora era tão boa como
outra qualquer, porque a medição do tempo iria passar a ser feita não pelo
passar das horas, mas pelo passar dos metros, quanto mais longe daquele inferno
melhor.
Com
os olhos semicerrados ficou a olhar para os movimentos dos que se apressavam a
partir. Faziam tudo calados e em silêncio partiam. Levavam o que as forças lhes
permitiam e lançavam olhares de desconfiança para
todos os lados enquanto caminhavam. Não sabiam para onde iam, não sabiam o que
existia para além, mas iam.
Aqueles
que ficavam, já nem olhavam ao redor, nem perscrutavam o horizonte, esperavam
com a resignação estampada no rosto, com o olhar vago, não esboçando sequer um
gesto que fosse. Mais pareciam vivos mortos, de tudo alheados, e que se
deixavam estar pelos cantos perdidos na solidão dos seus medos.
Alguns
dos que partiram, nem avançaram, nem conseguiram regressar, ficaram pelos
caminhos, mortos ou feridos, porque as emboscadas e os ataques selvagens eram
frequentes. Bandos de malfeitores tinham-se constituído e começaram a construir
poderes organizado no meio daquele caos. A luta pela conquista do poder que
dava acesso à sobrevivência justificava tudo, cada um escrevia a sua própria
lei.
A
desconfiança alastrava e o medo ia começando a assentar arraiais. A todos os
momentos viam-se partir grupos formados e engrossados ao acaso, porque ninguém
se arriscava a aventurar-se sozinho.
Os
fracos, feridos e todos os que não estivessem em condições de aguentar a viagem
eram considerados um peso morto e mais susceptíveis de aguçar uma atracção
apetitosa de salteadores. Facilmente poderiam a vir a ser pasto de bichos
esfomeados. Em vez de serem integrados em qualquer um dos grupos que
continuamente se iam formando eram deixados à sua sorte. Daquele não mundo, já
só esperavam o inferno de uma não vida. Antes a paz duma morte do que uma
sobrevivência indigna.
A.,
decidiu enfim partir, quando o último grupo de sobreviventes se formou. Nada
mais ali o retinha.
Teve
de parar várias vezes, para perscrutar ansiosamente o horizonte e, por isso, os
seus ocasionais companheiros, não esperaram, coisas da sobrevivência, mais uma
boca a comer. Viu-os mais tarde ao longe e no fundo dum vale, relativamente
perto a corta mato e sem qualquer desvio, mas a cerca de algumas horas de
distância se encontrar caminhos inacessíveis. Nunca os conseguiria alcançar, a
não ser que lhes gritasse, mas tinha receio que o grito e o eco que
naturalmente se lhe seguiria alertassem alguém indesejado. Também não tinha
garantias de quem o apunhalou pelas costas uma vez, não o viesse a fazer outra
vez. Deixou-se ficar escondido a vê-los a afastarem-se.
Com
aquele nevoeiro de cinza e com o calor húmido que se fazia sentir o simples
caminhar tornava-se insuportável. Os nauseabundos cheiros trazidos pelos ventos
quentes colavam-se às andrajosas roupas e agarravam-se à nua pele. O cansaço e
a insuportável dor do abandono dilaceravam-lhe as entranhas da alma. Apesar
desse sofrimento estava disposto a ir buscar forças onde fosse possível, para
continuar a caminhar para dentro destes tempos, em prol de outros tempos
futuros. Não queria ser vencido, sem luta, pela barbárie dos não tempos dos
tempos de agora. Continuar o caminho nem que pés se recusassem a andar. Não
queria sequer pensar que nessa estrada, sem fim, o fim já se aproxima.
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