Antonio Luiz M. C. Costa
Só a barba branca era de verdade. A roupa vermelha era um artifício ridículo, a pança não passava de enchimento. Até um dos olhos azuis por trás dos óculos de aros finos e dourados – também falsos – era de vidro. E ainda mais fingidos que tudo isso ficaram os ho-ho-hos, depois de penar com o calor fora do comum do Rio de Janeiro nessa véspera de Natal. Data odiosa, maldita.
Os supostos ajudantes de Papai Noel, dois negros magros e sorumbáticos, sacolejavam no banco às suas costas. Como de costume, não abriam o bico, mas o velho sabia que eles ansiavam ainda mais por chegar em casa. Estavam todos suados, exaustos e de saco cheio. Mesmo depois de distribuir todos os brinquedinhos.
Ao menos, a palhaçada acabara. Enfrentar de novo aquela criançada toda, só no ano que vem.
Sua querida velha sempre o chamava de pessimista, mas ele sabia ser apenas realista. Conhecera bem demais a natureza humana, mais do que muitos outros idosos da mesma geração. Tivera dias de grandeza, caíra na miséria e passara a depender desse humilhante bico de fim de ano para equilibrar as contas e ter um mínimo de conforto. Mas o pior de tudo era ter de fazer isso a serviço do concorrente que o tirara do negócio.
Da primeira vez que o desgraçado mandou o mensageiro lhe oferecer o biscate – idéia do seu novo sócio-executivo, soube depois –, quase foi lá cuspir na compassiva e generosa fachada do manda-chuva, mais fingida que a pose de bom velhinho que queria obrigá-lo a representar. Se fosse chamado de anti-semita, azar. Era velho demais para tentar ser politicamente correto.
A muito custo, a esposa o convencera a aceitar até que as coisas melhorassem. Melhorassem! Acaso ela não entendia que iam de mal a pior e que não viveriam para sempre? E ter de desperdiçar o que lhe restava de vida promovendo o mais desleal de seus inimigos?
Mas agora o vento fresco da noite já o animava e as inevitáveis sacudidas do veículo não o incomodavam, nem lhe interrompiam os devaneios. Quase conseguia se sentir otimista. Boa parte do seu leve sorriso, admitia ele, era feito de germânica Schadenfreude, o sentimento de alegria pela desgraça alheia tão conhecido de seu povo. Seu empregador não ia bem, os problemas continuaram a piorar desde o ano anterior. Nunca o vira tão nervoso e rabugento.
A globalização agora só dava dores de cabeça ao patrão que antes tanto a elogiava. Um concorrente árabe lhe tirava mercados, usando as mesmas táticas brutais e inescrupulosas com as quais roubara os clientes de tantos negócios menores. Até aqueles indianos de fala mansa, que pareciam tão ingênuos e inofensivos, já o comiam pelas beiradas. A família brigava e se dividia, cada um exigindo sua parte para fundar o próprio negócio. Seus podres vinham à tona, os esqueletos despencavam dos armários.
Melhor, o poderoso sócio executivo, sem o qual o maldito déspota jamais teria chegado onde chegou, controlava cada vez mais as operações e mal lhe dava atenção. Negociava abertamente com os concorrentes e até mesmo nas datas comemorativas da fundação da casa esquecia-se de mencionar o nome do patrão e fundador, do qual cada vez menos clientes se lembravam.
Nessa época do ano, ria-se o falso Papai Noel, até o palhaço de vermelho era mais popular. O patrão tivera mais um daqueles hediondos ataques de ira e ciúme e tentara demiti-lo de uma vez por todas. Mas o executivo-chefe arquivou o memorando, chamou o velho caolho em particular, pediu-lhe desculpas pelo mau comportamento do sócio, elogiou seu trabalho e agradeceu antecipadamente os lucros que continuaria a lhe trazer. Até prometeu um aumento.
Continuava a ser um trabalho odioso, mas os momentos divertidos estavam se tornando mais freqüentes. E tinha de dar o braço a torcer à esposa: graças às seus sagazes conselhos de paciência, as coisas começavam a melhorar. Além de lhe deixar acumular uma pequena reserva, o bico lhe dera oportunidade de sair de casa, exercitar suas faculdades e as de seus ajudantes, manter contatos, fazer novos amigos e conquistar um punhado de fãs e clientes ocasionais.
Já pensava em reabrir o negócio. Anteontem à noite, naquele boteco à beira-mar, conversara confidencialmente com antigos rivais e eles se mostraram receptivos à idéia de uma nova sociedade. O safado do grego estava ainda mais falido do que ele, mas também queria voltar à ativa e tinha muita experiência. Sua velha amiga irlandesa também vinha sondando o mercado, tinha um punhado de bons clientes e estava disposta a contribuir. O baiano, único da velha guarda a manter seu ponto, também se interessou por ampliar os horizontes.
Um trovão distante o fez se lembrar da conversa do filho com um cineasta entusiasmado na história da família. Se desse certo, seria uma ótima propaganda. Ao contrário do pretensioso concorrente, o falso Papai Noel sabia não ser imortal. O fim podia não estar distante. Mas agora quase podia jurar que haveria de brilhar de novo antes desse dia chegar, e seu filho também. Todos iam ver!
Ah, sim. Precisava se trocar antes de chegar em casa. No ano passado, se esquecera e o porteiro quase perdera o fôlego de tanto rir. Ficara com vontade de lhe dar uns tabefes, mas acabou por rir com ele. Estava ridículo, teve de admitir. Mas este ano, não. Era hora de recuperar a dignidade.
Sentiu mais um sacolejo forte, ao atravessar outra inesperada corrente de jato. Olhou em volta, calculou que já havia cruzado o Círculo Ártico e procurou um lugar para pousar o trenó. Aquilo ali em baixo eram as geleiras da Groenlândia, a montanha devia o Gunnbjørn. Puxou as rédeas e conduziu o time de oito renas nessa direção, até encontrar um platô adequado.
O Papai Noel de mentirinha apeou-se do falso trenó e esticou as pernas cansadas. Admirou a paisagem noturna, o suave brilho da aurora boreal, o silvo do vento gelado, os poucos flocos de neve que lhe tocavam as bochechas rosadas. Apreciou a sensação familiar. Estava quase em casa, longe do inferno das selvas, savanas e metrópoles tropicais onde tivera de distribuir milhões de malditos presentes. Só faltava uma coisinha.
Disse aos ajudantes para descerem e os dois negros o obedeceram, animados pela primeira vez naquela noite. Começaria por eles. Arregaçou a manga, tocou o bracelete mágico, sussurrou sílabas misteriosas e os dois voltaram a ser corvos e lhe pousaram nos ombros. Logo teriam de retornar à tarefa de conferir se as crianças se comportariam bem ou mal, mas teriam uma merecida semana de férias.
E ele tinha razões para esperar que em poucos anos poderia voltar a lhes confiar missões mais importantes. Os dias de tirania de Javé e Mammon estavam contados. Zeus, Morrigan e Oxalá se uniriam à sua luta.
Mais um gesto mágico. O trenó voador transformou-se em enorme lança de arremesso, poderosa e infalível. Outro. As oito renas se fundiram em um único e espantoso animal, um enorme cavalo de oito patas. Terceiro gesto. A ridícula fantasia vermelha transformou-se em uma armadura imponente e completa e o corpo retornou à sua majestosa estatura verdadeira. O olho de vidro lhe caiu da órbita ampliada, enquanto os corvos erguiam vôo.
O velho recolocou a ameaçadora venda negra, empunhou a lança e montou. Com um relinchar impressionante, o colossal Sleipnir ganhou os céus, seguido pelos fiéis Hugin e Munin. Sua velocidade espantosa sacudiu as geleiras desertas com um estrondo sônico, pouco antes de alcançar Bifröst, o portal entre os dois mundos.
O leal porteiro o reconheceu e fez soar a trombeta Giallarhorn, como nos velhos tempos. O rei agradeceu a Heimdall com um acenar de cabeça, enquanto as valquírias convergiam de todas as direções para formar a guarda de honra e escoltar o soberano ao Valhalla. Frigg, Thor e toda Asgard o esperavam para abrir a festa de Yule, o solstício de inverno. Odin sentiu-se em casa.
Antônio Luiz M.C. Costa é editor e colunista da revista CartaCapital, contista, romancista e referência no Brasil entre autores de Ficção Especulativa. Leia aqui a entrevista que o autor concedeu à SAMIZDAT, em outubro de 2009.
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