José Guilherme Vereza
Julio comprou um binóculo. Só para assistir mais de perto o que o edifício em frente ao seu oferecia de tipos e situações. A estréia do binóculo foi desastrosa. Viu uma senhora mudando a roupa e ao perceber que estava sendo observada, a velha abriu-se num exibicionismo agressivo e constrangedor.
Julio atirou o binóculo pela janela. Jurou a si mesmo extirpar o vício que colocava remorso, vergonha e fraqueza, juntos, embolados na boca do estômago. O ato impulsivo de puro arrependimento fazia parte de um ritual, que tinha início em palpitações, excitações, ansiedade, clímax e desaguava, sempre, em ânsias indigestas. Aos engulhos, livrou-se da imagem da velha.
Mas Julio não se emendava.
Passada a ressaca, resgatou o binóculo entre as folhagens do jardim do prédio, sem um arranhão na lente. Sinal de que a qualquer momento, a função poderia recomeçar. Não com a velha na mira, mas com outras atrações.
Descobriu um paraplégico que gostava de bolinar a enfermeira.
Dessa vez não se tratava de alguém que avançara na idade,
mas de um quase quarentão bonitão, condenado pelo destino a rodar pra lá e pra cá com sua cadeira num cubículo pouco mais digno que uma jaula no zoológico. A enfermeira aparecia toda terça-feira, para ajudar nas tarefas básicas, arrumação, refeições, banho e satisfações íntimas sempre indiscretas. Não cuidavam os amantes de preservar a privacidade e cometiam o sexo possível em grandes performances a poucos metros de lentes curiosas.
Era tudo tão evidente, que Julio percebia o ronronar da mulher sentada de cócoras em cada braço da cadeira, movimentando seu pélvis de cima para baixo bem no rosto do homem. Os braços potentes do paraplégico empurravam o corpo da enfermeira já totalmente nua para si, mãos enterradas nos glúteos, como que quisesse se deixar asfixiar e acabar para sempre aquela busca incessante pelo que não existia mais.
Julio não se contentava em ver o que via. Imaginava.
Classificou o paraplégico como um potencial suicida, que sonhava morrer gloriosamente tentando dar marcha ré à vida, retornando ao lugar de onde nunca deveria ter saído.
Um dia, quem apareceu na porta de Julio?
A enfermeira.
-Com licença, o senhor não é o sujeito que fica de binóculo espiando o que eu faço com meu cliente
Julio se encheu de coragem.
- Sou eu mesmo. Aliás, era eu mesmo. Joguei o binóculo no lixo. Nada acontecia de novo naquelas janelas.
- Pois é. Por causa disso, meu cliente está deprimido. Não se interessa mais por mim...
- Lamento... mas espiar os outros não estava me fazendo bem.
A mulher começou a soluçar.
- Na verdade, não sou enfermeira. Nem ele é meu cliente, nem paraplégico. Somos casados e alugamos de um amigo aquela quitinete, toda terça-feira.
Julio silenciou. Nem uma pálpebra mexeu.
A mulher se desculpou, agradeceu e saiu enxugando as lágrimas.
Terça seguinte, Julio comprou outro binóculo.
E diante das suas lentes, viu um casal exuberante, fazendo o amor dos amores, em cima de uma cadeira de rodas.
Com direito a uma cúmplice piscada de olhos da enfermeira.
Ou melhor, da mulher em êxtase.
domingo, 13 de dezembro de 2009
ÊXTASE
por José Guilherme Vereza
3 Comentários
3 comentários:
Caramba, ZéGui, não é que sábado, numa dessas arrumações de armários de fim de ano, encontrei um binóculo que nem me lembrava possuir.
Desde sábado ando espiando pela janela, em êxtase...com a paisagem. Me senti quase tocando na Ponte Rio-Niterói, tô que nem uma bocó, adorando a aproximação das coisas. E não sinto remorsos, não!
E adorei a piscadela, bem cinematográfica.
Olga! Você é uma personagem!!! Me diga tuuuudo o que seu binóculo só conta pra você!
Só se for personagem de filme Trash, ZéGui. E o meu binóculo, além de comportado, é provinciano, só conta sobre paisagens tijucanas.
Postar um comentário