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quinta-feira, 17 de outubro de 2019

O vira-casaca - um conto de Juliana Berlim




                      O vira-casaca


      Eduardo andava estranho. Até então, seguia a cartilha da tradição familiar: gostava de estudar, mas não o bastante para parecer um otário; derrubava ampolas de cerveja com gosto, já ostentando um pequeno abdômen alcoólico; trocava tudo por mulher, menos futebol, porque a gorducha com a rapaziada era de lei; dirigia em alta velocidade seu carro, já que impressionar a gata com a potência do motor era vantagem; comia carne como um ogro nos churrascos da família, e se peidasse, a culpa era sempre do Caramelo, o vira-lata da casa. Um garoto exemplar, a quem as tias entupiam de presentes no Natal e as avós o ano todo, enchendo o tanque do carro e da moto dada pelo tio Pedro. Ia tudo bem no curso de Administração da universidade particular, até o dia em que o rapaz comunica ter pedido remanejamento de matrícula para a UERJ.
A notícia parou o churrasco da família. Tio Emilio olhou por cima dos óculos:
       – Não é a universidade dos cotistas?
       – É sim, meu tio – respondeu Eduardo.
      – Eles fazem cair o nível do ensino – disse o tio, do alto dos seus quarenta anos de Ensino Médio incompleto.
       – Foi uma sugestão do Júlio, tio Emilio.
      O ódio lambeu o quintal e caiu no colo do Júlio, o menino-prodígio. Ninguém gostava daquele moleque de nariz arrebitado, óculos de aro vermelho e cinco idiomas no currículo. A mãe separada o tinha criado para ser brilhante e o rapaz superara as expectativas: era um gênio. Eleonora não cansava de repetir que o filho faria um ano de intercâmbio na Itália com todas as despesas pagas pela universidade de lá. Universidade pública na Europa ok, não era essa balbúrdia como é no Brasil, em que o pessoal, principalmente o dos cursos de Humanas, só quer saber de fumar maconha, fazer rodas pelados em volta de fogueira e caçar piolho no cu dos outros, como naquela peça dos macaquinhos. Ninguém na família antes de Júlio e agora Eduardo jamais havia pisado em um chão de universidade pública, mas a verdade sobre estes antros do pecado chega onde tem de chegar, seja via Telegramm, seja via WhatsApp. Nem adianta ouvir os professores e estudantes desses lugares, favorecidos pelo esqueminha de regalias de sempre, muito menos a mídia tradicional, puro lixo. Tem é de combater a ideologia de gênero e o consenso na família era que esse moleque Júlio era viado. Quem faz Arquitetura em sã consciência? Pessoas normais fazem Direito. Ele estudava as pirâmides do Egito na UFRJ e tinha uma namorada pintora da Belas-Artes, uma garota sempre coberta de tinta e com uns amigos hippies – maconheiros, é claro. O que Júlio e “sua gatinha” faziam à noite era motivo de piada, entrar na caverninha é que ele não vai, diziam os tios em roda. Mas agora Eduardinho, o quindim da família, tinha seguido os passos do primo de gosto duvidoso e entrado na UERJ – alerta vermelho no peito varonil dos Araújo. Tio Pauleta logo gritou: calma gente, o Dudu não faz curso de boiola. Houve uma gargalhada geral, que se espalhou como um ola de estádio pela casa, e o alívio da tensão fez com que todos voltassem às cervejas e à macarronese.
      Três meses de UERJ e Eduardo apareceu com uma camisa de estampa floral no aniversário do primo Paulinho, filho de Pauleta. A roupa foi um choque, mas o comportamento do rapaz foi aos poucos se acentuando no comunismo. Agora ele defendia cotistas, percebia inconsistências nas verbas públicas destinadas à Educação, marcava museu com Júlio depois do futebol; mas a gota d ́água foi a defesa do uso medicinal da maconha.
       – Você já fumou esta erva do diabo, meu filho? – perguntou o pai, consternado.
       – Meu pai, admito que sim – respondeu firme Eduardo.
       – Filho, você se tornou um eleitor do PSOL! – disse o pai tremendo.
     Seu Armando decidiu comprar uma arma. Ia atirar bem no meio da cara de bicha do Júlio, mas constatou que seu saldo na conta e suas economias não davam para pagar nem o valor pedido pelo bandido local por um .38. Decidiu fazer um empréstimo no banco: na sua casa, o sangue jamais seria vermelho. Ainda na fila de espera de atendimento do banco, a esposa liga: Eduardo tinha terminado com a Simone, uma loura estonteante, para ficar com uma pretinha invocada e despenteada, segundo a mãe. O mundo de Armando caiu: se tivesse de atirar em alguém, teria de ser em si mesmo e no filho. O esquerdismo tinha destruído sua família. Chegou à casa faminto e sem dinheiro para matar, por não poder fazer mais um consignado. Seu garoto, melhor dizendo, ex-garoto, comia um hambúrguer de aspecto ótimo. Eduardo empurra uma embalagem em direção ao pai.
     – Experimenta, é a família da Zuzu (a nova namorada) quem faz. Os hambúrgueres levam nomes de cantores. Estou comendo o Roberto Carlos. O seu é o Oswaldo Montenegro. O pai comeu o lanche com vontade, mas, depois de duas mordidas, o largou em cima da mesa.
      – Eduardo, meu filho, esse hambúrguer é orgânico?
     – Sim, e pequeno, porque se provar muito, enjoa – respondeu o filho, com seu lanche descongelado só em dezembro.


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Rafael F. Carvalho
Autor do livro A Estante Deslocada, é paulistano, nascido em 27 de Fevereiro de 1978. Foi publicado em antologias de novos escritores e em jornais universitários, e é formado em Letras pela Universidade de São Paulo.


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