O vira-casaca
Eduardo
andava estranho. Até então, seguia a cartilha da tradição
familiar: gostava de estudar, mas não o bastante para parecer um
otário; derrubava ampolas de cerveja com gosto, já ostentando um
pequeno abdômen alcoólico; trocava tudo por mulher, menos futebol,
porque a gorducha com a rapaziada era de lei; dirigia em alta
velocidade seu carro, já que impressionar a gata com a potência do
motor era vantagem; comia carne como um ogro nos churrascos da
família, e se peidasse, a culpa era sempre do Caramelo, o vira-lata
da casa. Um garoto exemplar, a quem as tias entupiam de presentes no
Natal e as avós o ano todo, enchendo o tanque do carro e da moto
dada pelo tio Pedro. Ia tudo bem no curso de Administração da
universidade particular, até o dia em que o rapaz comunica ter
pedido remanejamento de matrícula para a UERJ.
A
notícia parou o churrasco da família. Tio Emilio olhou por cima dos
óculos:
–
Não é a universidade dos cotistas?
–
É sim, meu tio – respondeu Eduardo.
–
Eles fazem cair o nível do ensino – disse o tio, do alto dos seus
quarenta anos de Ensino Médio incompleto.
–
Foi uma sugestão do Júlio, tio Emilio.
O
ódio lambeu o quintal e caiu no colo do Júlio, o menino-prodígio.
Ninguém gostava daquele moleque de nariz arrebitado, óculos de aro
vermelho e cinco idiomas no currículo. A mãe separada o tinha
criado para ser brilhante e o rapaz superara as expectativas: era um
gênio. Eleonora não cansava de repetir que o filho faria um ano de
intercâmbio na Itália com todas as despesas pagas pela universidade
de lá. Universidade pública na Europa ok, não era essa balbúrdia
como é no Brasil, em que o pessoal, principalmente o dos cursos de
Humanas, só quer saber de fumar maconha, fazer rodas pelados em
volta de fogueira e caçar piolho no cu dos outros, como naquela peça
dos macaquinhos. Ninguém na família antes de Júlio e agora Eduardo
jamais havia pisado em um
chão de universidade pública, mas a verdade sobre estes antros do
pecado chega onde tem de chegar, seja via Telegramm, seja via
WhatsApp. Nem adianta ouvir os professores e estudantes desses
lugares, favorecidos pelo esqueminha de regalias de sempre, muito
menos a mídia tradicional, puro lixo. Tem é de combater a ideologia
de gênero e o consenso na família era que esse moleque Júlio era
viado. Quem faz Arquitetura em sã consciência? Pessoas normais
fazem Direito. Ele estudava as pirâmides do Egito na UFRJ e tinha
uma namorada pintora da Belas-Artes, uma garota sempre coberta de
tinta e com uns amigos hippies – maconheiros, é claro. O que Júlio
e “sua gatinha” faziam à noite era motivo de piada, entrar na
caverninha é que ele não vai, diziam os tios em roda. Mas agora
Eduardinho, o quindim da família, tinha seguido os passos do primo
de gosto duvidoso e entrado na UERJ – alerta vermelho no peito
varonil dos Araújo. Tio Pauleta logo gritou: calma gente, o Dudu não
faz curso de boiola. Houve uma gargalhada geral, que se espalhou como
um ola de estádio pela casa, e o alívio da tensão fez com que
todos voltassem às cervejas e à macarronese.
Três
meses de UERJ e Eduardo apareceu com uma camisa de estampa floral no
aniversário do primo Paulinho, filho de Pauleta. A roupa foi um
choque, mas o comportamento do rapaz foi aos poucos se acentuando no
comunismo. Agora ele defendia cotistas, percebia inconsistências nas
verbas públicas destinadas à Educação, marcava museu com Júlio
depois do futebol; mas a gota d ́água foi a defesa do uso medicinal
da maconha.
–
Você já fumou esta erva do diabo, meu filho? – perguntou o pai,
consternado.
–
Meu pai, admito que sim – respondeu firme Eduardo.
–
Filho, você se tornou um eleitor do PSOL! – disse o pai tremendo.
Seu
Armando decidiu comprar uma arma. Ia atirar bem no meio da cara de
bicha do Júlio, mas constatou que seu saldo na conta e suas
economias não davam para pagar nem o valor pedido pelo bandido local
por um .38. Decidiu fazer um empréstimo no banco: na sua casa, o
sangue jamais seria vermelho. Ainda na fila de espera de atendimento
do banco, a esposa liga: Eduardo tinha terminado com a Simone, uma
loura estonteante, para ficar com uma pretinha invocada e
despenteada, segundo a mãe. O mundo de Armando caiu: se tivesse de
atirar em alguém, teria de ser em si mesmo e no filho. O esquerdismo
tinha destruído sua família. Chegou à casa faminto e sem dinheiro
para matar, por não poder fazer mais um consignado. Seu garoto,
melhor dizendo, ex-garoto, comia um hambúrguer de aspecto ótimo.
Eduardo empurra uma embalagem em direção ao pai.
–
Experimenta, é a família da Zuzu (a nova namorada) quem faz. Os
hambúrgueres levam nomes de cantores. Estou comendo o Roberto
Carlos. O seu é o Oswaldo Montenegro. O pai comeu o lanche com
vontade, mas, depois de duas mordidas, o largou em cima da mesa.
–
Eduardo, meu filho, esse hambúrguer é orgânico?
–
Sim, e pequeno, porque se provar muito, enjoa – respondeu o filho,
com seu lanche descongelado só em dezembro.
0 comentários:
Postar um comentário