“Sentaram-se no chão ao lado dele por
sete dias e sete noites, sem dizer-lhe palavra, pois viam como era atroz a sua
dor.” (Jó 3: 13; tradução da CNBB.)
Carlos atravessou silencioso o
corredor que conduzia ao seu gabinete: o gabinete do prefeito. De cabeça baixa
e passos lentos, mal via os funcionários pelos quais passava. Porque eles não
passavam. Ao avistá-lo, paravam e o olhavam em silêncio, sem se atreverem a
dizer nada. Parou diante da porta e não entrou, porque naquele momento a
faxineira estava limpando justamente diante da porta que fechava seu gabinete.
De olhos baixos no chão que limpava, só percebeu a presença do governante da
cidade quando o trapo que envolvia a sua vassoura tocou o par de sapatos
importados que estava ali parado sem que seu dono tivesse se animado a pedir
licença. Ergueu os olhos e seu olhar cruzou com os olhos baixos do prefeito. Em
um segundo, a mulher, até então curvada, esticou-se como um soldado em posição
de sentido e quebrou o silêncio do mausoléu em que se tornara a prefeitura
naquela manhã:
– Deus te
abençoe, senhor prefeito.
Os olhos do prefeito rebentaram em lágrimas e ele
abraçou a faxineira, que até então era invisível.
Sem palavras diante da inesperada reação do
governante, os funcionários que viam a inesperada confraternização aplaudiram –
as palmas foram tão prolongadas que deu tempo para a faxineira repetir várias
vezes no ouvido do prefeito “Jesus te ama” e para um estagiário do curso de
Administração Pública tirar uma foto com o celular para, minutos depois,
enviá-la para uma jornalista por quem se apaixonara. – Como sua deusa
agradecer-lhe-ia essa foto inusitada?
II
O prefeito ficou por um tempo imensurável trancado no
gabinete, à espera de que o vice viesse até ele. Não olhava o relógio, olhava
apenas uma imagem de São Francisco de Assis que o sobrinho, seminarista,
deixara como presente em seu gabinete quando lá estivera com o pároco da igreja
matriz, quando ele assinara o decreto tombando uma imagem de São José de
Anchieta, esculpida em pau-brasil no século XIX, doada por um devoto espanhol.
Naquela manhã fria de junho, com o tempo parado, não saberia dizer se o vice
demorou a dirigir-se à sua porta. As batidas na porta não interromperam suas
orações, pois não tinha disposição nem mesmo para isso, pois a dor, ao invés de
espanar a poeira que encobria sua fé, parecia disposta a terminar de
enterrá-la.
– Espero não
tê-lo feito esperar muito. O presidente da Câmara me reteve mais tempo do que
eu desejava. Ele, naturalmente, aprova seu afastamento por um mês, como Vossa
Excelência pediu-lhe ontem por email.
– Você...
– Pois não?
– Me trate por
você. Estamos a sós e você é meu amigo dos tempos de escola. Você me dava cola
nas provas de Matemática. Nada de formalidades aqui.
– Oh, meu
amigo! – fez o vice, abrindo os braços para abraçar o correligionário.
Era o segundo abraço do dia. Mas se Carlos não teve
palavras para responder à faxineira desconhecida, tinha muitas para o seu fiel
vice. Estavam numa folha de papel que lhe entregou quando soltou-se dos seus
braços.
– O que é isso,
Carlos?
– Minha
renúncia. Está assinada com a data de amanhã. Amanhã, neste horário, quando eu
estiver em minha casa de praia, respirando o ar marítimo enquanto escuto minha
família rezar o terço em busca de algum conforto, você lê para os jornalistas.
– Não é para
tanto. Você se afasta um mês, dois, depois volta para reassumir seu cargo.
– Essa dor eu não vou deixar no litoral, Ricardo. Ela
vai me acompanhar enquanto eu viver.
– Eu não faço
ideia da dor que você sente, meu amigo. Nem posso imaginar. Mas essa dor não é
apenas sua. Muitas outras pessoas vivem com essa mesma dor. Perder um filho...
– Ricardo, meu
filho não morreu de câncer nem foi devorado por um tubarão. Ele cometeu
suicídio. O que me resta fazer aqui?
– Pense bem, Carlos. Eu não vou me precipitar e
mostrar essa carta amanhã. Ela vai ficar bem guardada esperando você voltar da
licença e você então verá que no dia de hoje não está pensando direito, não
pode tomar decisões.
– Ricardo,
qualquer pessoa tem o direito de sofrer a dor de perder um filho dessa maneira.
Mas não um prefeito. Um prefeito não tem esse direito. O que as pessoas vão
dizer de mim? “Se ele não soube cuidar do próprio filho, como cuidará da
cidade?”
– Carlos...
– Os jornais
não dizem, a ética dos jornalistas – sim, eles têm ética – os impede de dizê-lo
na imprensa, mas basta ler as redes sociais. O cidadão comum pensa isso...
– Em outras circunstâncias eu lhe diria que o partido
quer você candidatando-se ao Senado, mas isto não é hora de falar de política.
Aliás, eu não deveria falar nada com você, apenas ouvir. E cuidar para que você
não faça bobagens... – disse Ricardo, rasgando a carta da renúncia.
III
Uma semana depois, Carlos enviou carta a todos os
vereadores, declarando sua renúncia, prontamente aceita pela Câmara; três meses
depois a jornalista ganhava um prêmio nacional pelo artigo que escrevera a
partir da foto do estagiário. Ela foi comemorar o prêmio com seu noivo numa
pousada em Ilha Bela e o estagiário, após tentar afogar com vodka a dor do
abandono, colidiu sua moto com uma ambulância que cruzou seu caminho.
Quando foi visitar a sepultura do filho, Carlos
lembrou-se do estagiário e separou do buquê uma flor para a sua lápide, que
ficava mesmo ali ao lado.
(2 de maio de 2018)
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