Ainda a escalada ia a menos de meio e já se sentia
esgotado. O suor escorria-lhe pelo rosto de rugas cavadas e a camisa fresca que
vestira de propósito para a ocasião mais parecia um farrapo agarrado ao corpo.
O coração batia-lhe desordenadamente e sentia tonturas e a vista nublada. A
respiração arfante e difícil ecoava pelas vizinhanças, mais parecendo um
concerto dos bombos lá da aldeia.
Meio atordoado estendeu os braços até encontrar apoio
e devagar e muito cuidadosamente deixou-se escorregar para o chão, onde se
sentou, aliviado. Talvez fosse melhor fazer uma pausa, embora já estivesse
bastante atrasado. Por este andar não seria tão cedo que chegaria ao cume. Mas
seria bem pior se lhe desse um ataque ou algo do género e para ali ficasse abandonado,
sabe-se lá por quanto tempo.
Ao fim de alguns minutos conseguiu regularizar a
respiração e acalmar um pouco o coração. Talvez a mulher tivesse razão e 70 e
muitos anos fossem demasiados para tais aventuras. Mas estava decidido a
terminar a escalada, nem que levasse o resto do dia.
Com algum esforço conseguiu retirar das costas a
pequena mochila onde enfiara alguns artigos que lhe pudessem ser úteis. Abriu-a
e, depois de muito remexer e descartar duas garrafitas vazias, lá conseguiu
encontrar uma cheia. Sofregamente bebeu pelo gargalo, entornando um pouco sobre
a já encharcada camisa na sua ânsia de matar a sede. Só se deu por satisfeito
depois de a esvaziar.
Recostando-se um pouco ficou a gozar a tão merecida
pausa. Com o cansaço veio a sonolência e para ali ficou a cabecear, numa
posição cada vez mais incómoda. Despertou com um sobressalto, sentindo-se
gelado. A camisa secara no corpo dando-lhe uma sensação de frio intenso. Há
quanto tempo estaria ali? Depois de procurar os óculos, que afinal estavam suspensos
do peito mas muito sujos, conseguiu consultar o relógio. Perdera quase três
quartos de hora!
Pôs-se de pé num salto e quase ia caindo ao escorregar
na garrafa que esvaziara. Não deveria ter bebido tanto. De manhã enfiara na
mochila quatro pequenas garrafas de água e três já lá iam. A este ritmo não
teria o suficiente para o resto da escalada. Teria de ser mais comedido durante
o resto do percurso.
Com um gemido de dor tentou voltar a pôr a mochila às
costas. Mas o melhor que conseguiu foi deixá-la pendurada de um dos ombros, a
bater-lhe na anca. Paciência! Era mais incómodo mas não conseguia retorcer-se o
suficiente para corrigir essa posição.
Teria de aguentar assim.
Fazendo um esforço retomou a marcha, mas a passo
moderado. A subida era íngreme e as mudanças de sentido que era forçado a fazer
não ajudavam. Enquanto trepava tentava decidir se as zonas planas eram uma
ajuda, permitindo uma breve pausa, ou uma dificuldade acrescida, obrigando a
novo posicionamento dos músculos das pernas. Nunca resolvera satisfatoriamente
este ponto. Umas vezes inclinava-se para um dos lados, outras vezes para o
outro.
Foi com satisfação que viu passar a marca do meio
caminho. Sempre tivera tendência para o “copo meio cheio”, por isso
concentrou-se na ideia de que metade já estava feita. Uma vozinha lá no fundo
da consciência bem tentou insinuar-lhe que ainda faltava a outra metade mas foi
prontamente abafada.
Durante algum tempo subiu a um bom ritmo, atendendo à
sua idade e falta de preparação física. Foi com desgosto e indignação que notou
a presença de lixo aqui e ali, papéis, latas de refrigerante vazias, pontas de
cigarro e coisas não identificadas mas que deitavam um cheiro intenso e
repugnante. Era uma pena que as pessoas se preocupassem tão pouco com a preservação
do ambiente onde viviam ou por onde passavam. Nada custava levar consigo um
pequeno saco plástico, que bem dobrado cabia em qualquer bolso, onde deitar o
lixo até o poder depositar no recipiente apropriado. Bem gostaria de apanhar
estes vândalos à mão!
A pensar no que lhes diria e faria até se esquecia do
esforço da escalada. Parecia ter encontrado o ritmo certo, embora de vez em
quando os pés escorregassem numa irregularidade ou falha em que não reparara.
Mas tudo estava a ir com suavidade e sem cansaço excessivo. Até parecia que
criara novas forças com a breve soneca da última paragem!
Estava quase a chegar aos três quartos do percurso,
mais coisa menos coisa, quando ficou numa quase total escuridão. O
acontecimento não era totalmente inesperado e até se precavera com uma pequena
lanterna para esta eventualidade. O pior era encontrá-la dentro da confusão da
mochila, usando só o tacto. Da próxima vez tinha de planear melhor as coisas,
colocando os artigos de emergência num local de fácil acesso. Do que precisava
era de uma nova mochila, daquelas de desporto cheias de bolsas e bolsinhas,
onde podia arrumar de tudo. O pior era o custo.
Tinha deixado cair metade dos objectos que
transportava quando a encontrou. O feixe luminoso não era muito forte, mas
sempre dava para ver um pouco melhor. Com muito esforço e gemidos baixou-se
para apanhar o que deixara cair, voltando a enfiar a tralha toda dentro da
mochila de qualquer maneira. Distraído, até apanhou duas latas vazias e
amachucadas que para ali estavam e que definitivamente não lhe pertenciam.
Quando já estava pronto apontou a lanterna para o chão
e continuou a subir, verificando bem onde punha os pés. Uma queda podia ser
fatal, sobretudo por estar sozinho. Mas estava com pressa de sair da zona de
fraca visibilidade pois nunca gostara da escuridão e ainda menos desde que fora
assaltado à noitinha junto à abertura de um beco escuro. Desde então gostava de
muita luz à sua volta, caso contrário sentia-se inquieto e assustado, olhando
constantemente em seu redor.
Quando se viu de novo na claridade deu um suspiro de
alívio e decidiu fazer nova pausa para beber a última garrafa de água. Tinha a
boca seca, não sabia se do esforço se do medo dos últimos minutos. Já faltava
pouco para o topo e quanto menos peso transportasse melhor. Decidiu também
comer um pouco do chocolate que levava, para energia rápida, dissera, por
gulodice pura, insinuara a mulher. Era delicioso, embora estivesse meio
derretido pelo calor e com um aspecto pouco convidativo. A água é que soube a pouco!
Foi de forças retemperadas e ânimo renovado que se
meteu novamente a caminho, disposto a percorrer a última etapa de uma só vez.
Fazia-se tarde e quanto mais depressa chegasse, melhor. Tentou acelerar o ritmo
mas ao ver que recomeçava a arfar abrandou um pouco. Se tivesse de parar com
falta de ar o atraso seria ainda maior.
Passo a passo lá foi trepando, evitando olhar para
cima com medo de se assustar se verificasse quanto lhe faltava ainda. Com os
olhos no chão podia concentrar-se em manter o ritmo, contando os passos de um a
dez e voltando ao princípio. Era um truque que há muito utilizava quando tinha
um longo caminho a percorrer e estava estafado. A contagem tinha um efeito
quase hipnótico, limpando-lhe as ideias do espírito e adormecendo-lhe a mente.
Foi, por isso, uma surpresa descobrir que atingira o
topo. Embora totalmente estoirado não deixou de sentir uma enorme satisfação.
Conseguira! Vencera a escalada que se propusera fazer! Estafado ou não, era um
vencedor!
Deixou-se ficar por ali uns momentos tentando
descansar um pouco. Mas já era tarde e a mulher estava à espera. Chamou, por
isso, o elevador para descer os 20 andares até ao rés-do-chão onde morava.
O Sr. Gomes levava muito a sério a campanha do “Vá
para fora... cá dentro”!
Luísa Lopes
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