Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

A Escalada



Ainda a escalada ia a menos de meio e já se sentia esgotado. O suor escorria-lhe pelo rosto de rugas cavadas e a camisa fresca que vestira de propósito para a ocasião mais parecia um farrapo agarrado ao corpo. O coração batia-lhe desordenadamente e sentia tonturas e a vista nublada. A respiração arfante e difícil ecoava pelas vizinhanças, mais parecendo um concerto dos bombos lá da aldeia.
Meio atordoado estendeu os braços até encontrar apoio e devagar e muito cuidadosamente deixou-se escorregar para o chão, onde se sentou, aliviado. Talvez fosse melhor fazer uma pausa, embora já estivesse bastante atrasado. Por este andar não seria tão cedo que chegaria ao cume. Mas seria bem pior se lhe desse um ataque ou algo do género e para ali ficasse abandonado, sabe-se lá por quanto tempo.
Ao fim de alguns minutos conseguiu regularizar a respiração e acalmar um pouco o coração. Talvez a mulher tivesse razão e 70 e muitos anos fossem demasiados para tais aventuras. Mas estava decidido a terminar a escalada, nem que levasse o resto do dia.
Com algum esforço conseguiu retirar das costas a pequena mochila onde enfiara alguns artigos que lhe pudessem ser úteis. Abriu-a e, depois de muito remexer e descartar duas garrafitas vazias, lá conseguiu encontrar uma cheia. Sofregamente bebeu pelo gargalo, entornando um pouco sobre a já encharcada camisa na sua ânsia de matar a sede. Só se deu por satisfeito depois de a esvaziar.
Recostando-se um pouco ficou a gozar a tão merecida pausa. Com o cansaço veio a sonolência e para ali ficou a cabecear, numa posição cada vez mais incómoda. Despertou com um sobressalto, sentindo-se gelado. A camisa secara no corpo dando-lhe uma sensação de frio intenso. Há quanto tempo estaria ali? Depois de procurar os óculos, que afinal estavam suspensos do peito mas muito sujos, conseguiu consultar o relógio. Perdera quase três quartos de hora!
Pôs-se de pé num salto e quase ia caindo ao escorregar na garrafa que esvaziara. Não deveria ter bebido tanto. De manhã enfiara na mochila quatro pequenas garrafas de água e três já lá iam. A este ritmo não teria o suficiente para o resto da escalada. Teria de ser mais comedido durante o resto do percurso.
Com um gemido de dor tentou voltar a pôr a mochila às costas. Mas o melhor que conseguiu foi deixá-la pendurada de um dos ombros, a bater-lhe na anca. Paciência! Era mais incómodo mas não conseguia retorcer-se o suficiente para corrigir essa posição.  Teria de aguentar assim.
Fazendo um esforço retomou a marcha, mas a passo moderado. A subida era íngreme e as mudanças de sentido que era forçado a fazer não ajudavam. Enquanto trepava tentava decidir se as zonas planas eram uma ajuda, permitindo uma breve pausa, ou uma dificuldade acrescida, obrigando a novo posicionamento dos músculos das pernas. Nunca resolvera satisfatoriamente este ponto. Umas vezes inclinava-se para um dos lados, outras vezes para o outro.
Foi com satisfação que viu passar a marca do meio caminho. Sempre tivera tendência para o “copo meio cheio”, por isso concentrou-se na ideia de que metade já estava feita. Uma vozinha lá no fundo da consciência bem tentou insinuar-lhe que ainda faltava a outra metade mas foi prontamente abafada.
Durante algum tempo subiu a um bom ritmo, atendendo à sua idade e falta de preparação física. Foi com desgosto e indignação que notou a presença de lixo aqui e ali, papéis, latas de refrigerante vazias, pontas de cigarro e coisas não identificadas mas que deitavam um cheiro intenso e repugnante. Era uma pena que as pessoas se preocupassem tão pouco com a preservação do ambiente onde viviam ou por onde passavam. Nada custava levar consigo um pequeno saco plástico, que bem dobrado cabia em qualquer bolso, onde deitar o lixo até o poder depositar no recipiente apropriado. Bem gostaria de apanhar estes vândalos à mão!
A pensar no que lhes diria e faria até se esquecia do esforço da escalada. Parecia ter encontrado o ritmo certo, embora de vez em quando os pés escorregassem numa irregularidade ou falha em que não reparara. Mas tudo estava a ir com suavidade e sem cansaço excessivo. Até parecia que criara novas forças com a breve soneca da última paragem!
Estava quase a chegar aos três quartos do percurso, mais coisa menos coisa, quando ficou numa quase total escuridão. O acontecimento não era totalmente inesperado e até se precavera com uma pequena lanterna para esta eventualidade. O pior era encontrá-la dentro da confusão da mochila, usando só o tacto. Da próxima vez tinha de planear melhor as coisas, colocando os artigos de emergência num local de fácil acesso. Do que precisava era de uma nova mochila, daquelas de desporto cheias de bolsas e bolsinhas, onde podia arrumar de tudo. O pior era o custo.
Tinha deixado cair metade dos objectos que transportava quando a encontrou. O feixe luminoso não era muito forte, mas sempre dava para ver um pouco melhor. Com muito esforço e gemidos baixou-se para apanhar o que deixara cair, voltando a enfiar a tralha toda dentro da mochila de qualquer maneira. Distraído, até apanhou duas latas vazias e amachucadas que para ali estavam e que definitivamente não lhe pertenciam.
Quando já estava pronto apontou a lanterna para o chão e continuou a subir, verificando bem onde punha os pés. Uma queda podia ser fatal, sobretudo por estar sozinho. Mas estava com pressa de sair da zona de fraca visibilidade pois nunca gostara da escuridão e ainda menos desde que fora assaltado à noitinha junto à abertura de um beco escuro. Desde então gostava de muita luz à sua volta, caso contrário sentia-se inquieto e assustado, olhando constantemente em seu redor.
Quando se viu de novo na claridade deu um suspiro de alívio e decidiu fazer nova pausa para beber a última garrafa de água. Tinha a boca seca, não sabia se do esforço se do medo dos últimos minutos. Já faltava pouco para o topo e quanto menos peso transportasse melhor. Decidiu também comer um pouco do chocolate que levava, para energia rápida, dissera, por gulodice pura, insinuara a mulher. Era delicioso, embora estivesse meio derretido pelo calor e com um aspecto pouco convidativo. A água é que soube a pouco!
Foi de forças retemperadas e ânimo renovado que se meteu novamente a caminho, disposto a percorrer a última etapa de uma só vez. Fazia-se tarde e quanto mais depressa chegasse, melhor. Tentou acelerar o ritmo mas ao ver que recomeçava a arfar abrandou um pouco. Se tivesse de parar com falta de ar o atraso seria ainda maior.
Passo a passo lá foi trepando, evitando olhar para cima com medo de se assustar se verificasse quanto lhe faltava ainda. Com os olhos no chão podia concentrar-se em manter o ritmo, contando os passos de um a dez e voltando ao princípio. Era um truque que há muito utilizava quando tinha um longo caminho a percorrer e estava estafado. A contagem tinha um efeito quase hipnótico, limpando-lhe as ideias do espírito e adormecendo-lhe a mente.
Foi, por isso, uma surpresa descobrir que atingira o topo. Embora totalmente estoirado não deixou de sentir uma enorme satisfação. Conseguira! Vencera a escalada que se propusera fazer! Estafado ou não, era um vencedor!
Deixou-se ficar por ali uns momentos tentando descansar um pouco. Mas já era tarde e a mulher estava à espera. Chamou, por isso, o elevador para descer os 20 andares até ao rés-do-chão onde morava.
O Sr. Gomes levava muito a sério a campanha do “Vá para fora... cá dentro”!

Luísa Lopes

Share




0 comentários:

Postar um comentário