Em
todos os tempos, ostentar ouro concedia estatuto, demonstrava
sofisticação. O ouro de uma mulher do interior há 80, 70, 60 anos
valorizava-lhe a beleza, conferia-lhe estatuto social, dava-lhe
segurança, como a outra de qualquer época, mas também concedia a
quase sempre ignorada liberdade económica da própria. O ouro de uma
mulher, sobretudo aquele que ela trouxe de dote, era dela, era um bem
a que podia recorrer, em último caso, para um desígnio pessoal. Um
cordão podia ajudar um filho, às escondidas do marido; uns brincos
de que já não gostasse podiam comprar uma peça de vestuário para
levar a um casamento.
O
ouro acompanhava-a, compondo uma imagem de si. Tendo-o por
testemunha, vinham os filhos, vinha a labuta, passavam os bons e os
maus momentos. O cabelo branqueava, vinham os netos, chegavam as
doenças. Por fim, já nada interessava, nem o ouro. Só a viagem sem
retorno ganhava o centro da angústia conformada.
Passam
dias, passam meses, os filhos fazem as partilhas. Tentam equilibrar
os valores, mesmo nas pequenas coisas. Dividem-se as roupas
aproveitáveis, as loiças, os bibelôs. Muita coisa não tem
préstimo, muita coisa se guarda por valor sentimental. A vida vai-se
recompondo, sem a ausente. Ainda vem muitas vezes à ideia, enquanto
viva; lembram-se os tempos penosos do hospital; quem foi prestável e
atento, a tia mais nova que foi lá todos os dias e até ajudava a
dar-lhe o jantar. Um deles põe a hipótese de presenteá-la com algo
que pertenceu à morta, algo de algum valor, mas que seja sobretudo
evocativo. Aquela pulseira dela, que lhe era característica, que
aparece nas fotografias de solteira? Sim, sem dúvida; parece bem,
parece mais que justo; resolvem dar-lha.
Inesperadamente,
a tia não quer a pulseira, faz muita resistência a recebê-la.
Começa a parecer exagerada tanta cortesia, a parecer estranho não
querer ficar com uma lembrança da irmã. Finalmente, explica-se,
conta uma história; a pulseira tem uma história secreta.
— Não
te lembras que eu era muito enfermiça desde pequena? Qualquer
corrente de ar me deitava à cama. Desde a minha terceira classe até
ser já quase adulta, eu era muito fraca dos brônquios. Quase que
não podia sair de casa. Então a tua mãe, a ver-me assim, e a ver a
tua avó a ficar cada vez mais velha — algum dia a não poder
dar-me proteção —, acho que fez uma promessa a Nossa Senhora:
que, se eu ficasse boa, lhe dava uma pulseira de ouro, esta mesma.
O
sobrinho surpreende-se, não sabe desta história. Parece-lhe que tem
um resquício de memória, uma miragem incerta, mas foi há muito
tempo: a maior parte das recordações desvaneceu-se. Quer saber
mais, os “quandos”, os “comos” e os porquês. A tia não se
retrai:
— Não
sei que idade é que eu tinha quando ela fez a promessa, mas o que é
certo é que aí pelos dezanove anos passei a andar sempre boa, tanto
que fui fazer o segundo ano, nas freiras, e depois o Liceu, quase
sempre dois anos num. Então a tua mãe, vendo que eu estava boa de
vez, dispôs-se a pagar a promessa. E deve ter falado disso numa
matança do porco. Então a tia Ana disse que o ouro é do melhor que
uma mulher tem e que não deve desfazer-se dele. Que, se calhar, a
tua mãe podia pagar a promessa em dinheiro. «Vais ao ourives,
perguntas-lhe quanto é que vale a pulseira — podes mesmo
explicar-lhe o caso — e dás esse valor à Nossa Senhora.» Ora a
tua mãe ficou a pensar naquilo, mas tinha medo que a promessa não
ficasse paga. Então foi-se confessar e perguntou ao padre se podia
fazer assim, como a tia Ana tinha dito. E o padre disse que sim, que
o que contava era o valor da promessa e a vontade de a pagar. E foi
isso que a tua mãe fez. Portanto, estás a ver, eu não posso ficar
com esta pulseira, não quero.
— Mas
porquê, tia? A promessa foi paga; é como se tivesse sido dada a
própria pulseira. Outra como esta.
— Mas
eu sei que esta é que foi prometida. É como se eu estivesse a
aceitar o pagamento devido à Nossa Senhora.
O
sobrinho calcula que ela terá medo de voltar a ter os achaques da
juventude, por via da pulseira recebida: ela tinha sido beneficiária
uma vez; ser beneficiária duas vezes deve parecer-lhe um abuso,
quase uma blasfémia ou um pecado.
— Tia,
não é como se estivesse a usar o que lhe não pertence; seria antes
honrar a memória da sua irmã — argumenta.
Ela
acaba por aceitá-la, mas passados uns dois anos volta a tentar
devolvê-la. Com tanta veemência que o sobrinho a recebe de volta.
Que
fará ele com aquela pulseira, aquele objeto mediador do amor
fraternal de sua mãe pela irmã dela? Não precisa do dinheiro,
felizmente, mas, mesmo que precisasse… Pergunta-se qual o
significado profundo da pulseira de ouro. Lembra-se, então, da ideia
tradicional: o ouro de uma mulher é a sua liberdade económica
pessoal. Pensa: “a pulseira é da mãe, sempre foi; ela que decida
qual o caso ou o momento adequado para ser usada. E por quem”.
Manda
escavar um estreito sulco na parte posterior da moldura com o
retrato da mãe, que tem na sala, e esconde lá a pulseira. Um dia,
ele ou alguém decidirá retirá-la. Para o que decidir. Ou que
pensar que decidiu.
Joaquim
Bispo
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Este texto foi um dos selecionados no concurso literário da Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e de Assistência Social (Bunkyo) de 2018 e integrará, se vier a ser editada, a coletânea resultante do concurso.
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Imagem:
Carlos Reis,
O batizado,
anterior a 1941.
Museu
Nacional de Belas Artes (MNBA), Rio de Janeiro, Brasil.
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3 comentários:
Iniciei a leitura deste belo texto e não consegui parar fosse porque motivo fosse.
Parabéns ao Autor pelos picos de interesse constantes e um final não previsível.
Parabéns Joaquim Bispo.
Obrigado, Carlos Alberto!
Abraço!
Quem sabe da poda é o Bispo , Joaquim ou não.
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