Margarida
nasceu quase uma semana antes da data prevista, caso quase inédito numa
sociedade onde a medicina se tornara uma ciência tão exata como a matemática.
Um prenúncio certeiro para a personalidade que em breve viria a mostrar.
Mal
começou a falar, encurtou prontamente o nome para Marg, passando mais tarde ao ainda
mais eficaz Meg. Ao contrário das outras crianças do seu infantário, fazia logo
um berreiro se não lhe davam imediatamente o que queria, fosse comida, uma ida
ao quarto de banho ou a resposta a uma pergunta. Nunca ouvia uma história sem
interromper constantemente quem a contava para saber como acabava. Já mais
crescidinha, livros, filmes, lia ou via o início e saltava logo para o fim.
Enfim,
o lema da sua vida era definitivamente saltar as partes “aborrecidas” e ir logo
para o mais excitante.
Quando
nos primeiros anos de escolaridade descobriu a existência dos saltos no tempo,
ficou absolutamente extática. Isso apesar da ênfase dada pelos professores à
enorme desvantagem que esse sistema acarretava em termos de perda de vida
realmente vivida, uma vez que os anos que se pulavam para o futuro ou os que se
repetiam no passado contavam como anos de vida biológica.
Mas
Meg via apenas a tremenda vantagem de poder saltar as partes más ou
simplesmente chatas da existência. Infelizmente, teria de viver os seus
primeiros 18 anos de vida de modo totalmente linear, saltar no tempo só estava
acessível a adultos.
Mesmo
assim podia considerar-se uma sortuda, essa idade tinha baixado continuamente
desde o limiar inicial de 50 anos, tendo sido reduzida de 25 para 18 mesmo
antes de ela ter nascido. Passou esse para si longuíssimo período num eterno
sobressalto, sempre a verificar se não a teriam reduzido de novo.
Mal
fez 17 anos inscreveu-se logo na formação temporal, coisa que muitos adiavam ou
nem sequer chegavam a fazer por acharem que essa técnica era algo que
interessava apenas a certos estudiosos e cientistas. Apesar de achar a maior
parte das aulas uma seca total — que lhe interessava saber a ciência por detrás
dessa tecnologia ou como esta fora finalmente implementada! — Meg foi das
alunas mais cumpridoras, não faltando uma única vez.
Não
que prestasse grande atenção ao que era ensinado, exceto quando se tratava de
detalhes práticos da sua utilização. E foi das poucas a concluírem o curso, a
maioria desistia mal descobria que não podiam realmente viajar ao passado nem
ao futuro distante, os saltos que se podiam dar estavam estritamente limitados
aos anos reais de vida de cada pessoa. Nada de irem espreitar tecnologias de duzentos
anos depois para voltar atrás e ganhar um dinheirão com o que tinham
descoberto. Ou poderem conhecer os seus heróis de há uns séculos ou investigarem
mistérios antigos por desvendar. Quem quereria repetir a sua vida ou pular
anos, apressando a morte? Bom, Meg, é claro!
Chegou
finalmente o tão ansiado dia e Meg recebeu o implante que lhe permitiria ter
vislumbres do seu futuro e acesso à tecnologia de recuar ou avançar no tempo.
Para a família e amigos era óbvio que só o futuro lhe interessaria, mesmo assim
tinham esperança que a perda de tempo de vida real servisse de travão a saltos
excessivos.
Esperança
vã.
Umas
meras semanas depois de receber o implante, Meg decidiu que a universidade era
uma seca e, sabendo, graças ao seu implante, que teria êxito, pelo menos no seu
primeiro ano, e deduzindo daí que seria brilhante no resto do curso, decidiu
passar logo ao “depois”. Teve de receber o obrigatório aconselhamento
psicológico relativo ao primeiro salto, fartou-se de ouvir histórias de terror
que se tinham passado com o “amigo do amigo do conhecido” de familiares e
amigos, mas nada disso a demoveu: saltou de imediato 5 anos, os 4 do curso mais
um de folga para ter tempo de se instalar a sério no primeiro emprego.
E
tal como previra, tinha-se formado com boas notas e conseguira, ainda na
universidade, o tipo de emprego de sonho que todos os colegas pretendiam.
Satisfeita, instalou-se na sua vida de adulta, trabalhando muito, é certo, nos
6 meses de trabalho obrigatório, mas divertindo-se ainda mais aos fins de
semana e no resto do ano.
Mas
em breve começou a sentir tédio no emprego. Sabia que para chegar ao topo teria
de ir passando por diversos escalões, cada um envolvendo tarefas e
aprendizagens específicas, e francamente, inteligente como era achava tudo
muito repetitivo e com raros períodos de novidade e excitação.
Começou
pois a fazer pequenos saltos aqui e ali, primeiro só os dias em que sabia que
nada de interessante se iria passar, depois semanas seguidas e até meses. Sem
bem saber como, viveu 10 anos em apenas 10 meses.
A
sua enorme frequência de saltos para o futuro chamou a atenção das autoridades,
que a forçaram a receber aconselhamento psicológico específico para viciados nessa
tecnologia e inúmeros avisos sobre a insensatez do que fazia. Oferecem-lhe até
um “relógio da vida” que lhe permitiria ver o tempo real que vivera em relação
aos anos de vida que averbara nesse período.
E
durante uns tempos pareceu resultar. Como a esmagadora maioria dos seus
concidadãos, Meg foi aguentando a lentidão do avançar do tempo, os imensos
vales de tédio que separavam alguns picos excitantes, limitando-se a usar até
ao limite a capacidade de antever o futuro de modo a tomar o mais possível boas
decisões. É claro que nem sempre resultava, às vezes o que parecia uma boa
opção era-o apenas durante um tempinho, mostrando depois ter sido desastrosa. Chegou
até a perder uma boa parte da fortuna que amealhara à custa do seu bom salário
e muitos bónus recebidos quando uma tecnologia em que apostara fortemente
provou, afinal, ter efeitos secundários desastrosos.
Parecia
que a sua vida entrara finalmente nos eixos quando o amor chegou sob a forma de
um colega de trabalho. Apaixonadíssima e sabendo que nada iria acontecer
durante o próximo ano, decidiu fazer novo salto no tempo. Optou por um de 3
anos, raciocinando que se corresse bem estariam então juntos, mas que se
corresse mal já teria tido tempo de o esquecer.
Após
o salto viu-se casada e feliz, num belo e luxuoso apartamento e à espera do
primeiro filho. Apesar do tempo perdido considerou que valera bem a pena ter
evitado as dúvidas e anseios inevitáveis num namoro, passando diretamente para
o fim, para o “viveram felizes para sempre”.
O
filho nasceu, a tempo e horas, ao contrário da mãe, e pouco a pouco Meg voltou
aos seus velhos hábitos. Mudar fraldas? Que nojo! Um saltinho, problema
resolvido. Criança doente? Para quê passar por noites sem dormir quando sabia
que iria correr bem? E dos pequenos incómodos com o filho em breve passou ao
resto da sua vida: jantares com amigos chatos, pequenas doenças dela ou da
família, trabalhos com pouco interesse, enfim tudo o que não a entusiasmasse
recebia o mesmo tratamento.
Já
nem hesitava, ao primeiro sinal de tédio ou de problemas agia logo. Quanto ao
relógio que lhe tinham dado, nem sequer sabia onde estava, supunha que o guardara
algures e que um dia apareceria. Que importância tinha? O que contava era que a
vida assim era bem mais divertida e com a esperança de vida sempre a aumentar
tinha ainda muitos anos pela frente, poderia abrandar quando já fosse velha e
bem velha.
Chegou
finalmente o dia em que o vislumbre do futuro lhe mostrou a morte dos pais com
semanas de diferença e, como se isso não bastasse, um acidente que deixaria o
marido a precisar de grandes cuidados durante bem mais do que um ano. Era
demais para o seu temperamento, tornava-se imperativo evitar passar por tudo
isso.
Para
jogar pelo seguro, decidiu dar o seu maior salto desde o namoro: 5 anos.
Mas
com grande espanto seu viu que tinha avançado uns meros 15 meses. Pior ainda,
quando tentou ver o que viria a seguir, descobriu que nada conseguia
vislumbrar. Ou seja, morreria muito em breve e nem sequer sabia quando nem
como.
Angustiada,
passou os seus últimos dias arrependidíssima de não ter aproveitado melhor a
vida, apreciando o chato juntamente com o excitante. Morreu como muitos outros
aos 106 anos, ligeiramente acima da esperança média de vida da época, mas com
apenas 31 de vida vivida!
Luísa Lopes
Imagem de Okan Akdeniz
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