Ah,
se eu pudesse voltar atrás. Dizem que não se pode chorar pelo leite derramado.
Mas o leite, a nossa seiva, entornou pelo fogo quente, abrasador, entre mim e
ela. A verdade é que inventei esse diário, com cara de confessionário, para
delatar os meus tormentos atuais, já que meus amigos não suportam mais me
ouvir. No dia seis de fevereiro, Jussara aprontou a boa: comprou um apetrecho
absurdo, incomum, e o apelidou de “o meu bichinho”. Ela falou, com a autoridade
de uma pervertida, que o bibelô seria “para conter ou aplacar a sua carência”.
Aí eu perdi o tino. “Como assim, para ‘a sua carência’?!”. Ela levava-o para
passear pela casa, feito um lindo mascote. Não foram poucas as vezes que o vi
no móvel da sala, no armário da cozinha – e, o pior, na mesa de jantar. Como
poderia uma senhora casada desfilar com um objeto horroroso, em flagrante crime
contra a moral e os bons costumes?! Bem, Jussara Rebouças, a digníssima, não
estava nem aí para as minhas impressões. Extrapolava os limites de minha
bondade; abusava, essa é a constatação. De fato, eu teria motivos para
questionar e mesmo brigar pelo respeito e a honra do nosso lar. Senti-me
completamente afrontado, como sendo um santo de gesso, imobilizado, sem vida. O
objeto roliço, envergado e comprido, ficava nas vistas de quem tivesse a
ousadia de enfrentar a balbúrdia – ou sodomia – que era o nosso quarto; este,
nos últimos tempos, servia somente às demandas de Jussara – eu, por leal à
minha consciência, dormia na sala, quase sempre. Ela sequer tinha apreço à decrépita
de sua mãe, a senhora Augustina, que, quando viu aquele troço, perguntou, a
coitada, se era um desses enfeites modernos, e a filha, com a maior cara de
pau, confirmou que sim. Não para por aí: a nossa diarista, uma mulher de princípios,
idosa e crente, era obrigada a topar, também, com aquela indecência. O que eu
fazia, para amenizar o choque, era jogar alguma roupa ou um artefato maior,
para que o cobrisse. Mas não havia muita escapatória; dona Leonina catava tudo
que estava fora de lugar e colocava onde lhe conviesse – ainda bem que não
enfiou o maldito objeto num canto inapropriado. Vergonha mesmo passei quando
minha irmã, a Laura, veio nos visitar – numa das duas ou três que o faz por
ano. Eu estava atulhado de serviço e me concentrei o dia todo para dar cabo do
trabalho. Não discernia coisa alguma, de tão cansado. Aliás, achava a visita de
minha irmã algo despropositado e fora de hora; mas, infelizmente, não tive como
mudar o fado. Às 16h30min, como combinado, o interfone tocou. O porteiro, seu
Desasis, pediu autorização para que deixasse a minha irmã subir – por um
segundo pensei se seria conveniente. Laura apareceu toda espalhafatosa, nos
mesmíssimos modos de sempre. Trazia uma musse de limão e um bolo Luís Felipe –
os doces de que mais gosto. Ela sabe me agradar. Para a cunhada, arreganhou um
sorriso antes de entregar-lhe uma “joia”; “uma lembrancinha de Portugal”. Ah,
como a Jussara ficou feliz. Não sabia onde colocar a cunhadinha. Logo foi
experimentar os brincos e a gargantilha, e brotou na sala, demandando a minha
aprovação: “Estou linda, amor?!”. Respondi logicamente que sim, com um certo
enfado por ter de participar e presenciar aquela situação toda. Enquanto elas
conversavam, eu não conseguia pensar em outra coisa que não fosse me despachar
do entulho que atravancava o meu dia – como disse, terrível e custoso. Num
momento de distração, Laura se levantou e disse que não precisávamos nos
preocupar, que era de casa e que iria se servir. Logicamente concordei. Mas,
quando se encaminhava para a cozinha, avistei o objeto do tinhoso em cima da
pia. Corri feito um guepardo, ou mais rápido, e bati no troço para que caísse
na lateral, entre o fogão e a parede. Não deu muito certo, porque ficou
entalado, percebível para olhos curiosos – o caso de minha irmã. Ela disse:
“Acho que você derrubou alguma coisa, Lúcio, deixe eu pegar”. “Não, não. É
somente uma porcaria que irá para o lixo. Não precisa se preocupar”. “Ah, não,
faço questão!”. Sim, ela me afastou com bastante força, meteu a mão no buraco
do tatu, sentiu e viu o que não devia. Foi o maior alvoroço; Laura é mais
puritana que eu. Ela gritou, apavorada: “O que é isso, Lúcio!? Que pouca
vergonha! Eu pensei que andava em casa de gente direta. Assim não dá. Eu me
recuso a ficar aqui, nem mais um segundo! Não adianta se explicar!”. Pronto, o
estrago estava feito: a bendita espalharia – como de fato sucedeu – para os
confins de nossa família moralista, a mais nobre estirpe alencarina. Foi um
deus nos acuda. Não sabia onde enfiar a minha cara. E, para completar, a
senhora Jussara ria alto e, pelo visto, se deliciava com a situação. Eu tenho
para mim que toda essa confusão foi proposital, criada para contrariar e
agredir a moral do meu clã. Jussara já havia me confessado que não estava nem
aí para o que pensariam; que faria o que bem entendesse, porque teria passado
da idade de “dúvidas e frescuras”. Quando a poeira baixou, falei, vomitando
toda a ira guardada, que Jussara era canalha, cretina e imbecil; que merecia
ser execrada, e que, por mim, deveria se ferrar. Magoada, Jussara pegou a sua
malinha, enfiou o maldito objeto e mais uns outros, que nem ao menos sabia de
suas existências, e partiu rumo ao infinito incógnito. Hoje vejo que talvez
tenha exagerado na repreensão. Ela só queria ser feliz com o seu “bichinho”. Claro,
eu não nutria a mínima afeição ao tal utensílio, mas seria capaz de aturá-lo
para ter de volta o meu amor. Quem sabe, ela nem precise mais de mim. Pode ser
que eu tenha perdido para a minha inabilidade e para a dormência dos instintos.
Fracassar para um troço vagabundo de plástico é a minha maior dor. Antes
tivesse feito uma dessas cirurgias moderninhas, já que está na moda, e colocado
uma prótese no lugar, se era isso que a satisfazia. Ah, excelente ideia, farei
esse sacrifício para a glória do meu casamento, como um presente e um pedido de
desculpas. Ela vai adorar.
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