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quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Bichinho

 


Ah, se eu pudesse voltar atrás. Dizem que não se pode chorar pelo leite derramado. Mas o leite, a nossa seiva, entornou pelo fogo quente, abrasador, entre mim e ela. A verdade é que inventei esse diário, com cara de confessionário, para delatar os meus tormentos atuais, já que meus amigos não suportam mais me ouvir. No dia seis de fevereiro, Jussara aprontou a boa: comprou um apetrecho absurdo, incomum, e o apelidou de “o meu bichinho”. Ela falou, com a autoridade de uma pervertida, que o bibelô seria “para conter ou aplacar a sua carência”. Aí eu perdi o tino. “Como assim, para ‘a sua carência’?!”. Ela levava-o para passear pela casa, feito um lindo mascote. Não foram poucas as vezes que o vi no móvel da sala, no armário da cozinha – e, o pior, na mesa de jantar. Como poderia uma senhora casada desfilar com um objeto horroroso, em flagrante crime contra a moral e os bons costumes?! Bem, Jussara Rebouças, a digníssima, não estava nem aí para as minhas impressões. Extrapolava os limites de minha bondade; abusava, essa é a constatação. De fato, eu teria motivos para questionar e mesmo brigar pelo respeito e a honra do nosso lar. Senti-me completamente afrontado, como sendo um santo de gesso, imobilizado, sem vida. O objeto roliço, envergado e comprido, ficava nas vistas de quem tivesse a ousadia de enfrentar a balbúrdia – ou sodomia – que era o nosso quarto; este, nos últimos tempos, servia somente às demandas de Jussara – eu, por leal à minha consciência, dormia na sala, quase sempre. Ela sequer tinha apreço à decrépita de sua mãe, a senhora Augustina, que, quando viu aquele troço, perguntou, a coitada, se era um desses enfeites modernos, e a filha, com a maior cara de pau, confirmou que sim. Não para por aí: a nossa diarista, uma mulher de princípios, idosa e crente, era obrigada a topar, também, com aquela indecência. O que eu fazia, para amenizar o choque, era jogar alguma roupa ou um artefato maior, para que o cobrisse. Mas não havia muita escapatória; dona Leonina catava tudo que estava fora de lugar e colocava onde lhe conviesse – ainda bem que não enfiou o maldito objeto num canto inapropriado. Vergonha mesmo passei quando minha irmã, a Laura, veio nos visitar – numa das duas ou três que o faz por ano. Eu estava atulhado de serviço e me concentrei o dia todo para dar cabo do trabalho. Não discernia coisa alguma, de tão cansado. Aliás, achava a visita de minha irmã algo despropositado e fora de hora; mas, infelizmente, não tive como mudar o fado. Às 16h30min, como combinado, o interfone tocou. O porteiro, seu Desasis, pediu autorização para que deixasse a minha irmã subir – por um segundo pensei se seria conveniente. Laura apareceu toda espalhafatosa, nos mesmíssimos modos de sempre. Trazia uma musse de limão e um bolo Luís Felipe – os doces de que mais gosto. Ela sabe me agradar. Para a cunhada, arreganhou um sorriso antes de entregar-lhe uma “joia”; “uma lembrancinha de Portugal”. Ah, como a Jussara ficou feliz. Não sabia onde colocar a cunhadinha. Logo foi experimentar os brincos e a gargantilha, e brotou na sala, demandando a minha aprovação: “Estou linda, amor?!”. Respondi logicamente que sim, com um certo enfado por ter de participar e presenciar aquela situação toda. Enquanto elas conversavam, eu não conseguia pensar em outra coisa que não fosse me despachar do entulho que atravancava o meu dia – como disse, terrível e custoso. Num momento de distração, Laura se levantou e disse que não precisávamos nos preocupar, que era de casa e que iria se servir. Logicamente concordei. Mas, quando se encaminhava para a cozinha, avistei o objeto do tinhoso em cima da pia. Corri feito um guepardo, ou mais rápido, e bati no troço para que caísse na lateral, entre o fogão e a parede. Não deu muito certo, porque ficou entalado, percebível para olhos curiosos – o caso de minha irmã. Ela disse: “Acho que você derrubou alguma coisa, Lúcio, deixe eu pegar”. “Não, não. É somente uma porcaria que irá para o lixo. Não precisa se preocupar”. “Ah, não, faço questão!”. Sim, ela me afastou com bastante força, meteu a mão no buraco do tatu, sentiu e viu o que não devia. Foi o maior alvoroço; Laura é mais puritana que eu. Ela gritou, apavorada: “O que é isso, Lúcio!? Que pouca vergonha! Eu pensei que andava em casa de gente direta. Assim não dá. Eu me recuso a ficar aqui, nem mais um segundo! Não adianta se explicar!”. Pronto, o estrago estava feito: a bendita espalharia – como de fato sucedeu – para os confins de nossa família moralista, a mais nobre estirpe alencarina. Foi um deus nos acuda. Não sabia onde enfiar a minha cara. E, para completar, a senhora Jussara ria alto e, pelo visto, se deliciava com a situação. Eu tenho para mim que toda essa confusão foi proposital, criada para contrariar e agredir a moral do meu clã. Jussara já havia me confessado que não estava nem aí para o que pensariam; que faria o que bem entendesse, porque teria passado da idade de “dúvidas e frescuras”. Quando a poeira baixou, falei, vomitando toda a ira guardada, que Jussara era canalha, cretina e imbecil; que merecia ser execrada, e que, por mim, deveria se ferrar. Magoada, Jussara pegou a sua malinha, enfiou o maldito objeto e mais uns outros, que nem ao menos sabia de suas existências, e partiu rumo ao infinito incógnito. Hoje vejo que talvez tenha exagerado na repreensão. Ela só queria ser feliz com o seu “bichinho”. Claro, eu não nutria a mínima afeição ao tal utensílio, mas seria capaz de aturá-lo para ter de volta o meu amor. Quem sabe, ela nem precise mais de mim. Pode ser que eu tenha perdido para a minha inabilidade e para a dormência dos instintos. Fracassar para um troço vagabundo de plástico é a minha maior dor. Antes tivesse feito uma dessas cirurgias moderninhas, já que está na moda, e colocado uma prótese no lugar, se era isso que a satisfazia. Ah, excelente ideia, farei esse sacrifício para a glória do meu casamento, como um presente e um pedido de desculpas. Ela vai adorar.

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