Léo Borges
Eu não podia deixar de mostrar meu espanto com o que vinha acontecendo. Afinal, uma coisa é a vida e outra é a ficção das letras, dimensões que não se misturam, ou que não deveriam. Olhava para a tela do computador e pensava em como dar um fim naquele conto, o último do meu livro erótico, com aquela situação desconfortável martelando minha mente. Conhecia a Paula e sabia que ela não era disso, não era dessas. Eu compreendia suas angústias e destemperos, mas estava certa de que alguns sentimentos devem ser reprimidos para o bem da manutenção de algo maior (no caso dela, o matrimônio).
– Eu sei, Jacqueline. Você tem razão. Meu casamento não foi de brincadeira, e você, como minha melhor amiga, sabe disso.
– Pois então, Paula. Se te dou conselhos é porque gosto de você. Mesmo que seu relacionamento não estivesse indo bem, eu não aceitaria isso. Não é coisa de mulher direita, de mulher casada.
Paula consentia com minhas ponderações, mas o limiar do certo e do errado que regia sua vida, sempre fazia transparecer a insegurança. E problemas sentimentais, quando brotam, não são solucionados com frugais exemplos de bom comportamento, de dizer que quem contrai laços matrimoniais não deve trair. Trata-se de caráter e ética cristã, coisas que não admitem muitas interpretações.
– Ele me chamou pra sair de novo, Jacqueline. O problema não foi o convite, porque do jeito como estou contando parece que foi com poucas palavras. Mas é como ele faz, como ele me envolve. Tenho estado muito sozinha...
Minha amiga não completara dois anos de casada, mas de fato estivera poucos meses com o marido sob o mesmo teto. O trabalho dele não permitia que ficasse sem viajar por mais de três semanas. E ela tentava manter a discrição, driblando happy hours e convites para festas. Com algum esforço, estava conseguindo. As tentações, Paula deixava por minha conta, que, agindo como uma psicóloga fervorosa, escritora que entendia as armadilhas da sedução, seguia demovendo os pensamentos volúveis que surgiam.
– Você recusou, não é?
Um vácuo revelador bastou para perceber que minha missão começava a falhar.
– Não, amiga... saímos, mas não fomos longe. Fomos a um barzinho aqui perto de casa.
– E aí ele te levou em casa depois e ficou nisso, certo?
– Mais ou menos isso... quando me trouxe em casa, aconteceu. Eu juro que não queria, que virei o rosto, mas aconteceu: nos beijamos...
* * *
Sei que o que fazia era errado. Que alguém, em algum período da História, estabeleceu que aquilo era algo que afrontava os mais elementares conceitos de boa conduta. Traição, sim, vil e suja. Mas, eu não estava disposta a servir como bode expiatório dos males da Humanidade. Comportamento inadequado, grande balela! Ser humano é egoísta desde sempre, e, pra mim, durante aqueles minutos mais do que nunca.
Jairo se esmerava em me satisfazer e só isso bastava para que meu suposto arrependimento se transformasse em depravação, desejo por mais pecado, por mais libertinagem. O gozo fingia que vinha, mas era suspenso. E eu estava disposta a ficar ali até meu marido voltar de mais uma de suas intermináveis viagens e, por isso, a festa não poderia ser interrompida assim, de novo.
Em nossa primeira vez, Jairo não suportou a pressão e se esvaiu em minha boca. Fiquei puta! Não pelo fato em si, é claro, mas porque não soube esperar. Havia uma surpresa pra ele naquele dia, no dia em que terminaria meu livro de contos. Por trás, de quatro. E no fim ele ainda decidiria o que queria de mim afinal. Queria tudo? Só uma parte? E se perdeu no prefácio oral. Agora era diferente, e ele tinha ciência. E mais que isso, ele tinha tempo.
Com ele eu me transformava mesmo. Não havia frescura. E esse sentimento rugia tão forte dentro de mim que era difícil encontrar limites. Era o nosso terceiro encontro e, certamente, vinha sendo o mais pleno, sem pudores, sem receios, sem culpa. Sedenta, pedia rouca que fizesse o que desejava, o que sempre quis, o que queríamos. Como era bom aquilo, aquele gosto de ser puta, uma vadia qualquer.
Jairo entendia e preparava um grand finale ainda mais emocionante. Com meu marido aquilo era raro, coisa de mulher certinha, de comportamento adequado ao ambiente familiar. Diferente do que estava acontecendo agora, o que eu queria mesmo ser devorada pelo esposo da Paula. A Paula do meu conto, da minha imaginação, que agora se transformava em vítima, como se ingênua fosse. “Oi Jacqueline, o Jairo viajou, preciso da sua ajuda”. Sempre desconfio dessas meiguices nauseantes.
* * *
A tarde caía acinzentada, fria e chuvosa, pedindo um fondue com um bom vinho. Uma transa gostosa e a noite estaria selada com chave-de-ouro. Tudo perfeito exceto pelo drama de Paula que não me largava. Cuidar da vida sexual alheia me estressava, porque, ainda que eu fosse a grande amiga, em última análise, o problema era apenas dela. E, se não fosse por isso, como explicar as fantasias despudoradas que vinham intoxicando meu subconsciente? Sonhos torturantes que se infiltravam realidade adentro, pois até mesmo quando eu estava na intimidade com meu marido, o esposo de Paula surgia em insights totalmente despropositados. Aparecia e se situava, jogando conosco o jogo da sedução, como se, com isto, pudéssemos livrá-lo de sua derrota conjugal. “Olha, sua mulher é uma puta, mas eu não”. Dentro daquela psicose diabólica eu confundia os rostos, os corpos, e me via submetida a transas incomuns, estranhas, humilhantes – algumas tão sinistras, que poucas prostitutas topariam – enquanto, na verdade, estava apenas tentado fazer amor com o homem da minha vida.
– Oi, Jacqueline, tudo bem?
– Oi, Paula, tudo.
– Como está o trabalho com o seu livro de contos eróticos?
– Indo bem. Estou fechando o último conto e aí vou enviá-lo para revisão. Acho que antes do fim do ano ele estará publicado. Por sinal, esse último está muito quente e psicótico.
– Qual o título?
– "Comportamento inadequado". Título que também dá nome ao livro. Nele o pecado não deveria existir, mas como se faz presente, tudo acaba adquirindo um contorno impróprio. Trata-se de um denso conto sensual, mais picante que os demais. Acho que o nome está muito pertinente.
– Essa atitude é tudo o que eu não queria ter.
– Como assim, Paula?
– Não sei bem como definir, Jackie, mas acho que não ando bem... emocionalmente, eu quero dizer. Tenho tido um comportamento parecido com esse do livro. Casada com uma pessoa e desejando outra, a pessoa errada. Ou sou eu a errada, sei lá. Você sabe do que estou falando.
As conversas com a Paula, quando convergiam para esse pântano lascivo, ficavam perigosas.
– O que foi agora, Paula?
Eu estava absorvendo os problemas da amiga. Para livrá-la deles eu os estava quase vivendo.
– Saí com ele novamente. E dessa vez rolou mais que beijos.
Ou então, eu estaria com inveja. Sim, esse era o motivo real que ignorava para não assumir minha intolerância. A puta da Paula fodia descaradamente com um amigo enquanto o marido viajava a trabalho e eu, naquela de ditar moral e regras de comportamento, ficava tentando domar minha vontade latente de estar fazendo o mesmo.
– Você está brincando, Paula.
– Não, Jacqueline, nós transamos e o pior é que gostei. Gostei demais.
* * *
Xingamentos calculados serviam para estimular as sensações e os espasmos orgásticos, de tão intensos, me engasgavam. Dois, três, diversos. Não me prendia em contagem, só queria sexo, furioso ou não, mas que fosse de todas as formas. Sons selvagens entravam por meus ouvidos como uma sinfonia doce que, aliada aos voluptuosos movimentos, formavam a pólvora do gozo. “Vadia! Você fode melhor que a Paula!”. “Mete!”. Nossos gritos se completavam quase como estrofes satânicas, versos malditos, harmônicos entre si, mas que incineravam os bons costumes. A hipocrisia humana ia revelando sua face mais pervertida naqueles instantes intermináveis, doces para nós, amargos para quem amávamos.
Ficamos deitados ainda algum tempo refletindo nas nossas atitudes adolescentes, tão gostosas quanto inconseqüentes. Era isso que queríamos? Não, não era. Mas, infelizmente, bom ou não, eu estava satisfeita. Jairo ainda se superava e matinha sua interpretação cínica, jogo sórdido que ia além dos lençóis. Fingia interesse em meus assuntos particulares para tentar me convencer de que o que mantínhamos era mais que sexo. Um grande cafajeste, sem dúvida.
– Como vai o livro que você está escrevendo?
Bem lembrado. Seria bom reinventar um nome para a minha protagonista.
* * *
– Gostou demais?! Que isso, Pâmela?
Silêncio.
– Gostei, vou dizer que não? Minto pra todo mundo, menos pra você. Sei que você não vai me chamar de puta, que vai entender meu problema.
– Foi rápido, só para matar a vontade, né? – desejava imensamente que menos coisas houvessem ocorrido, ou que pelo menos ela não se aprofundasse nos detalhes. Minha raiva, pura inveja disfarçada, começava a vazar através do meu tom áspero. Que merda é a vida! Uma putinha que não conhece nada de nada e já se entrega aos prazeres do pecado, e eu escrevendo contos eróticos para entreter burguesinhas mal amadas.
– Quando ele me chupou, senti o que nunca sentira antes. Foi mágico, arrepiante! Meu marido nunca fez algo assim. Ajoelhei e retribuí, como uma donzela que perde os pudores.
“Donzela que perde os pudores”. Essas são mais vagabundas que as putas de berço. Tudo era decepção. Quando a mulher se predispõe a isso, é o fim. Como ela iria olhar e beijar novamente seu marido? Com aquele gosto de outro na boca...
– Isso não combina contigo, Pâmela! Comportamento inadequado é só o título de um livro que ainda nem lançado foi! Coisa feia. Você é casada! Pense nisso, no que os outros vão falar!
– Você é uma amiga muito pura, Jacqueline. Vou parar de contar as merdas que tenho feito. Acho que não dá para falar sobre isso com ninguém, nem contigo. Não resisti aos meus instintos. Dei pra ele sim e agora vou ter de viver com essa minha decisão.
Estava incrédula. “Dei pra ele sim”. Aquelas palavras feriam meus ouvidos. Sua atitude havia quebrado a barreira da normalidade e Pâmela agora estava mais convicta do que nunca sobre o rumo de sua vida. E a verdade é que eu estava em ruínas, não por falhar como a idiota protetora matrimonial, mas por não me permitir ousar como ela ousava, viver como ela vivia. “Comportamento inadequado, sem juízo e sem arrependimento. Não adianta lição de moral, Jacqueline, porque é a devassidão que vai fazer seu livro vender como nunca.” Não havia mais argumentos. Eu não tinha mais o que fazer a não ser aceitar o delírio daqueles dois mundos distintos, o meu e o dela, que agora se fundiam. Olhei para a tela do computador e vi o cursor piscando na última linha, pedindo definição.
– Tchau, Jackie. O Jairo acabou de chegar. Vou procurar alguma coragem para encará-lo.
* * *
Ficou bom. Só não podia me esquecer de modificar este último nome também.