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domingo, 25 de abril de 2010

Sobreviventes e viajantes

Corro ansioso em sua direção.


Com péssima visibilidade, aciono com dificuldade o dispositivo de vi­são noturna do meu surrado capacete. Vejo os contornos acidentados: vales de rios e canais secos além de montes de ruínas urbanas a serem ainda transpostos para chegar ao misterioso objeto. Pelo sensor infravermelho, vejo que não sou o único a correr naquela direção. Mas não muitos, somos poucos os que sobrevivem na região. Com meu binóculo sensor, vejo dis­tante muitos destroços ardentes abaixo do bojo ileso. O ar cheira a lixo, aço e concreto queimados.

Ofegante de tanto correr, vejo a parte da esfera que toca o solo ainda muito distante, mas acima de mim a sua curva metálica se perde num hori­zonte vertical. Se eu fosse um primitivo, acharia que a própria Lua havia caído na Terra.

Espaçadas centenas de metros um do outro, meus amigos param ante a esfera a distâncias similares um do outro, formando um grande círculo e observam.

Saem de dentro da esfera, como se as suas paredes não fossem sólidas, vários humanoides planando sobre discos metálicos. Um deles voa em minha direção. Fico estático, entre o medo e a curiosidade.

Tem a aparência humana, roupas brancas coladas ao atlético corpo, mas pelo rosto vejo que possui a pele acinzentada. É um pouco maior que eu. Tenho a impressão de já tê-lo visto alguma vez. Talvez num sonho. Ele para a três metros de mim, mostra a palma da mão e me fala numa língua que des­conheço, mas que de alguma forma a ideia me chega à mente:

– Olá, Humano. Sou Atenísia. Estejamos em paz.

– Olá! – Respondo, trêmulo e ofegante. – Paz também. Chamo-me John Calderas. Mas quem são vocês e o que fazem aqui na Terra?

John, somos cientistas. Temos observado como seus planetas estão sen-sen­do devastados e apenas uma minoria de humanos vivem num meio adequado à evolução. A vossa autoextinção será inevitável. Ajude-nos a ajudá-los.

– Por que vocês se interessam por nós?

– Conheça-nos e você entenderá. Sei que você lembrará.

Fico estático, olhando nos cinzentos olhos daquele ser.

– Venha conosco. Não tenha medo. O medo é o filho do desconhecido. Conheça-nos.



Sobreviver abandonado na velha Terra após seu completo exaurimento tem sido muito árduo. – Medito. – Mas entre o medo e uma possibilidade melhor... Esta alternativa se soma à minha curiosidade. Minha intuição é im­pelida por cintilos de memória e eu, finalmente, aceito.

Com um aperto de mãos ela me leva até o disco prateado. Mergulhamos velozes na parede da imensa Lua metálica.

Atenísia pousa no centro de uma vasta sala iluminada. No vazio daquele lugar, sou deixado sozinho. Confiro a qualidade do ar e retiro o capacete. Meu corpo começa a flutuar e gira até parar na horizontal. Deitado no ar, minhas pálpebras pesam, meu corpo vibra como nunca e eu sinto crescer e entrar numa escuridão total. Quando abro os olhos, flutuo sem conseguir ver meu próprio corpo. Observo, logo abaixo de mim, no topo de um edifício, um hu­manoide com olhar vagando na escuridão do céu. Suas feições são familiares. O nome Smelson vem à minha mente. Posso ouvir seus pensamentos...
 
Trecho do Romance: "Retorno ao Big Bang Microcósmico"
http://bigbangmicrocosmico.blogspot.com/





sábado, 24 de abril de 2010

Sempre há uma verdade.... (Parte 4)

(Maristela Scheuer Deves)

Com o passar dos dias, minha mãe ficava mais e mais preocupada. E eu também, principalmente depois que comecei a acordar de madrugada e me encontrar, para minha surpresa, parada aos pés da cama de meus pais, contemplando-os sob a luz do luar, a boca salivando.

Horrorizada, eu me obrigava a voltar para o meu quarto, trancar a porta e meter-me outra vez na cama. Somente para acordar dali a uma hora, na mesma situação.

Sem dormir e sem comer direito, fui emagrecendo e empalidecendo a olhos vistos, até ficar branca como o papel, com olheiras pretas sob os olhos. Não tinha fome, mas ardia de sede. Água, refrigerantes e até mesmo bebidas alcoólicas, no entanto, não me satisfaziam. Aos poucos, fui percebendo o que eu queria: sangue.

O meu desespero chegou a tal ponto que implorei a minha mãe que me trancasse no quarto e escondesse a chave. Ela, é claro, não quis concordar, mas eu disse que sumiria de casa se assim não fizesse. Por fim, ela topou, mas nos horários das refeições, abria rapidamente a porta e ali deixava uma bandeja cheia dos meus antigos pratos preferidos.

Para não magoá-la, eu aceitava, mas não conseguia suportar o cheiro da comida. A minha salvação naqueles dias foi um cachorro magro que passava sob minha janela: às escondidas, eu lhe dava as refeições e devolvia os pratos vazios à minha mãe. Mas o melhor mesmo foi que o cachorro foi engordando e se tornando meu amigo, até que uma noite eu, não aguentando mais de sede, atraí o pobre coitado até o meu quarto e, com vontade, cravei os dentes em seu pescoço...

(continua no próximo mês)





sexta-feira, 23 de abril de 2010

Lua nova - por Giselle Sato

Assisti a película três vezes, gostei demais dos efeitos, da direção e da fotografia. A continuação da Saga Twilight , Lua Nova, tem apelos fortíssimos, novas tramas, muita ação e um núcleo que certamente agradará aos amigos dos seres da noite.

Desta vez, temos clãs de lobos e de vampiros. Contrariando a ideia que todos são iguais aos Cullen, Bella conhecerá vampiros assassinos e desgarrados, que caçam por prazer e vivem sem qualquer preocupação em se misturar aos humanos.

E, é claro, os Volturi, vampiros de longa linhagem, que compõe uma espécie de conselho dos vampiros.
Eles vivem na Itália, possuem habilidade paranormal e terão importante participação no desfecho desta etapa. Ao longo da Saga, voltarão a aparecer para mostrar o quanto são poderosos e temidos.


Não há como discordar que a leitura, em primeira pessoa, sugere uma cumplicidade capaz de provocar no leitor,as mesmas emoções da personagem. Afinal, é pura fantasia, os amantes do gênero literalmente viajam na magia e não estão preocupados se é apelo ou não. É bom, diverte e prende a atenção, e no momento da leitura ou do filme,é o que basta.

Li todos os volumes, cada vez que iniciava um, achava que era melhor que o anterior e não conseguia parar até o final.
A impressão que tenho é que a Stephenie Meyer, autora, começou timidamente em Crepúsculo, depois foi ganhando segurança em Lua Nova. No entanto, o sofrimento de Bella , nesta continuação, ficou pesado demais, arrastou-se infinitamente e quase terminou em tragédia. A personagem em questão tem apenas dezessete anos. Considerei a mensagem negativa e obsessiva para o público alvo.

Nossa querida Bella Swan, tem a fragilidade e determinação dos apaixonados. Ela é cega em seu amor, quase entra em transe cada vez que encontra Edward Cullen, agora namorado oficial. Neste encantamento, Bella está sempre elogiando e comparando a perfeição do vampiro e sua condição desprezível de simples mortal. Bella se menospreza ao ponto de questionar, o interesse de um ser tão incrível como Edward, sempre descrito com adjetivos e exclamações exageradas. Bella é a imagem da insegurança típica de toda adolescente.

Algumas pessoas enxergam,neste comportamento, a completa submissão da personagem, uma atitude fraca e extremamente machista. Prefiro acreditar que é neste embate: Bella e sua baixo auto-estima versus Edward que a valoriza por tudo que Bella considera comum, um dos pontos mais fortes de toda a obra.

Edward venera as sensações físicas e emocionais de Bella.Para ele, transformar a menina em um vampiro é uma atitude egoísta. Ela o ama tanto que está disposta a abrir mão de sua vida, ele teme perder o controle e beber o que mais preza. Um conflito clichê, mas que empolga, principalmente quando mexe com extremos. Tudo neles é intenso, um amor impossível, entre seres incompatíveis, dá margem a atitudes incomuns.

Entra em cena um terceiro personagem, que não é totalmente humano, mas que está mais próximo, pois não é um monstro o tempo inteiro. O mitológico lobisomem que, nesta história, não segue as regras conhecidas. Aliás, todo o universo sobrenatural sofreu alterações, e não causou danos maiores nas crenças dos puristas.

Até agora, nossa família vampira ‘’vegetariana’’ e os índios lobos foram ingeridos, sem maiores alardes. Para quem não assistiu Crepúsculo, vale ressaltar que Edward e os seus bebem sangue de animais e jamais matam humanos.
E os lobos, não transformam-se a cada lua cheia, eles nascem da necessidade de proteger a reserva indígena, fazem parte dos ritos e crenças dentro de uma reserva de índios que conhecem o segredo dos vampiros. Nem morrem com balas de prata, eles sabem controlar suas transformações e formam um bando coeso.

Interessante. Muito. Neste filme, e também no livro, em maiores detalhes, sofremos com Bella, abandonada por Edward, chegando ao fundo do poço, imersa em dor, solidão e saudades.
Depois, conhecemos Jacob Black, um super charmoso índio que transforma-se em lobo, e é apaixonado por Bella, fazendo tudo para conquistar e ajudar a moça. A família Cullen, em especial Alice, tem papel importante, com suas visões e temperamento impetuoso.

A fotografia do filme é linda, em tons escuros, favorecendo o clima nublado de Forks, a cidade onde vivem os personagens, e a maior parte da trama acontece. Aos poucos percebemos a sutil claridade entrando, à medida que a vida da mocinha melhora e ela se fortalece. A produção é cuidadosa e ganha força da metade do filme em diante,terminando de forma surpreendente.

Sempre digo que vale a pena assistir adaptações, ler o livro sempre, antes ou depois, não altera o resultado. Ver na tela, os personagens ganhando vida e a historia ser contada, atingindo milhões de pessoas, deve ser fantástico para o autor.

A intensidade da relação dos personagens principais é testada: amor, decisões e conseqüências são apresentadas em crescente. A decisão de embarcar nesta aventura é pessoal, mas como sempre, tem um apelo irresistível.





quinta-feira, 22 de abril de 2010

Alma de Urânio


- Formiga venha aqui, me ajude a subir com a rede na caixa.

  O dia durava mais naqueles tempos, eram boas horas carregando as embarcações. Ultimamente, tratavam de fazer tudo o quanto antes, para não haver atraso no dia da chegada da pedra na aldeia.

  Formiga era parrudo, com mãos grandes e pés tortos. Com uma pá, passava de trapiche em trapiche oferecendo-se para trabalhar.

- Menino, essa areia: pra cima! Olhe aquele balde de peixe, quando terminar com toda essa areia, ele será seu.

  Ao entardecer, bambo de cansaço, leva a pá e o balde com peixes para um trapiche que fica no outro lado da vila.

- Está com sede? Bebe da botija, e corre pra lá. Cuida quando... quando chegar a pedra.

  Pensa três vezes nos peixes, na água, no fogo.

  Imagina ele, em um outro futuro, onde estará do alto dos trapiches, com muitos presentes para todos, com sua música em três cordas, depois de assar o melhor dos pescados para seu avô e avó, então, visualiza a hora em que carrega a pedra com cinco dos seus primos, e todos choram em sua honra.

  Consegue colocar metade do que deve fazer nesse trapiche bem na hora da passagem da pedra pela entrada sul da vila. Se sente abandonado quando nota que não fará o resto há tempo.

- Filho, irei pedir ao espírito da pedra uma maneira de conseguir respeito entre os homens...

  Foi o que sua mãe lhe disse quando antes de desaparecer no momento em que foi eleita para carregar a pedra para a mata.

  Já passou como um raio a carroça dos peixes, sinal de que só ele está ali naquele trapiche. Todos aproveitando a celebração, menos Formiga.

- Vem menino!
Uma senhora agita um pano esfarrapado no ar e grita para Formiga.

  Ele sai aos solavancos, nem se importando com os pedregulhos que cortam seus pés ao longo do caminho, ansioso e desesperado para ver a pedra, que tanto engrandecia suas expectativas. No meio do caminho, seus devaneios corriam ainda mais rápido que ele na sua cabeça, "ainda vou ser alguém de minha gente", pensou consigo. E se “estabacou” no chão, sem ver uma pedra um pouco maior a sua frente.

  Ergue a cabeça, rasteja um pouco, pode ver então “uns alguéns” no meio de umas árvores por ali perto.

  Eles usam coisas nas mãos e olhos e ficam olhando a mulher que recém lhe chamara.

 Formiga se levanta essa gente de fora com esses objetos estranhos estão a sua frente mas não o enxergam.

  Estava a poucos metros da clareira onde acontecia naquele momento a comemoração à pedra. Ia indo em direção a ela, com a mente tão absorta que mal pode notar as pessoas a sua frente. Essas, quando o viram andando, assustaram-se e correram de maneira silenciosa e fantástica.

Chegando à clareira pôde ver que já foram eleitos os carregadores da pedra. Perdeu a parte das oblações aos ancestrais, a parte dos pedidos de proteção e principalmente a dos desejos.

- Está feito.

  Os de fora, escondidos de Formiga, deixam escapar o comentário.

  Formiga pensa, fica matutando o “está feito”. Com toda a manha de seus ágeis passos se aproxima curioso do local onde essa gente estranha se esconde.

  Os estranhos somem. Somem, como os de sua gente a cada nova estação, quando no rito à pedra brilhante.


  Os povos do Níger, sobretudo o povo Tuareg, encontram-se em um estado de crise alimentar. Em conflitos políticos e econômicos, onde a exploração do urânio por parte das multinacionais é o centro dos conflitos que colocam a soberania alimentar da população em segundo plano.

  O povo Tuareg tem suas terras invadidas pela exploração do urânio, no ano de 2008 em armas apresenta suas reivindicações.

  Em fevereiro de 2010, uma junta militar provisória efetua um golpe de Estado, prometendo a libertação progressiva do Níger.

  Povos que precisam comer, assim como nós não comemos pedras brilhantes radioativas. Comer o que só poderá vir da solidariedade e reforma agrária.





quarta-feira, 21 de abril de 2010

manifesto

Marcia Szajnbok


avanti populi!

ressuscitemos a subversão!

chega de estar acomodado, reconfortado e redondo

de tanta correção política!

façamos algo!

revolucionemos!

ou, se tanto não for possível, ao menos tentemos surpreender...

não será com bandeiras vermelhas,

pois Che desbota em camisetas, Marx está morto e também o chairman Mao...

não temos mais como sair à rua loucos e soltos,

envolvendo em fumaça canábica murchas flowers in our hair...

um tiro matou a possibilidade de fazer amor livre nas praças...

foi-se o tempo dos gurus

dêem vivas aos guidelines:

como tratar o diabetes

como enfrentar a depressão

como ficar magro ganhando músculos em dez lições

como criar schnautzer de pelo amarelo

como... como...

basta!

fechemos a boca e os olhos!

recusemos!

gritemos contra!

sejamos o avesso, o anti, o não!

não nos alinhemos!

e nunca, nunca nos alienemos...

ah...

mundo cansativo, este...

tanto por fazer, tanto por criar...

era preciso um tempo vazio

um tempo oco, um tempo de nada

era preciso um protesto mudo

era bom que ficássemos todos quietos

apenas sentados diante do mar num final de tarde

e assim, calmos e plácidos, nos deixássemos

nus

observar pelas águas





terça-feira, 20 de abril de 2010

Comportamento inadequado

Léo Borges


Eu não podia deixar de mostrar meu espanto com o que vinha acontecendo. Afinal, uma coisa é a vida e outra é a ficção das letras, dimensões que não se misturam, ou que não deveriam. Olhava para a tela do computador e pensava em como dar um fim naquele conto, o último do meu livro erótico, com aquela situação desconfortável martelando minha mente. Conhecia a Paula e sabia que ela não era disso, não era dessas. Eu compreendia suas angústias e destemperos, mas estava certa de que alguns sentimentos devem ser reprimidos para o bem da manutenção de algo maior (no caso dela, o matrimônio).


– Eu sei, Jacqueline. Você tem razão. Meu casamento não foi de brincadeira, e você, como minha melhor amiga, sabe disso.


– Pois então, Paula. Se te dou conselhos é porque gosto de você. Mesmo que seu relacionamento não estivesse indo bem, eu não aceitaria isso. Não é coisa de mulher direita, de mulher casada.


Paula consentia com minhas ponderações, mas o limiar do certo e do errado que regia sua vida, sempre fazia transparecer a insegurança. E problemas sentimentais, quando brotam, não são solucionados com frugais exemplos de bom comportamento, de dizer que quem contrai laços matrimoniais não deve trair. Trata-se de caráter e ética cristã, coisas que não admitem muitas interpretações.


– Ele me chamou pra sair de novo, Jacqueline. O problema não foi o convite, porque do jeito como estou contando parece que foi com poucas palavras. Mas é como ele faz, como ele me envolve. Tenho estado muito sozinha...


Minha amiga não completara dois anos de casada, mas de fato estivera poucos meses com o marido sob o mesmo teto. O trabalho dele não permitia que ficasse sem viajar por mais de três semanas. E ela tentava manter a discrição, driblando happy hours e convites para festas. Com algum esforço, estava conseguindo. As tentações, Paula deixava por minha conta, que, agindo como uma psicóloga fervorosa, escritora que entendia as armadilhas da sedução, seguia demovendo os pensamentos volúveis que surgiam.


– Você recusou, não é?


Um vácuo revelador bastou para perceber que minha missão começava a falhar.


– Não, amiga... saímos, mas não fomos longe. Fomos a um barzinho aqui perto de casa.


– E aí ele te levou em casa depois e ficou nisso, certo?


– Mais ou menos isso... quando me trouxe em casa, aconteceu. Eu juro que não queria, que virei o rosto, mas aconteceu: nos beijamos...



* * *



Sei que o que fazia era errado. Que alguém, em algum período da História, estabeleceu que aquilo era algo que afrontava os mais elementares conceitos de boa conduta. Traição, sim, vil e suja. Mas, eu não estava disposta a servir como bode expiatório dos males da Humanidade. Comportamento inadequado, grande balela! Ser humano é egoísta desde sempre, e, pra mim, durante aqueles minutos mais do que nunca.


Jairo se esmerava em me satisfazer e só isso bastava para que meu suposto arrependimento se transformasse em depravação, desejo por mais pecado, por mais libertinagem. O gozo fingia que vinha, mas era suspenso. E eu estava disposta a ficar ali até meu marido voltar de mais uma de suas intermináveis viagens e, por isso, a festa não poderia ser interrompida assim, de novo.


Em nossa primeira vez, Jairo não suportou a pressão e se esvaiu em minha boca. Fiquei puta! Não pelo fato em si, é claro, mas porque não soube esperar. Havia uma surpresa pra ele naquele dia, no dia em que terminaria meu livro de contos. Por trás, de quatro. E no fim ele ainda decidiria o que queria de mim afinal. Queria tudo? Só uma parte? E se perdeu no prefácio oral. Agora era diferente, e ele tinha ciência. E mais que isso, ele tinha tempo.


Com ele eu me transformava mesmo. Não havia frescura. E esse sentimento rugia tão forte dentro de mim que era difícil encontrar limites. Era o nosso terceiro encontro e, certamente, vinha sendo o mais pleno, sem pudores, sem receios, sem culpa. Sedenta, pedia rouca que fizesse o que desejava, o que sempre quis, o que queríamos. Como era bom aquilo, aquele gosto de ser puta, uma vadia qualquer.


Jairo entendia e preparava um grand finale ainda mais emocionante. Com meu marido aquilo era raro, coisa de mulher certinha, de comportamento adequado ao ambiente familiar. Diferente do que estava acontecendo agora, o que eu queria mesmo ser devorada pelo esposo da Paula. A Paula do meu conto, da minha imaginação, que agora se transformava em vítima, como se ingênua fosse. “Oi Jacqueline, o Jairo viajou, preciso da sua ajuda”. Sempre desconfio dessas meiguices nauseantes.



* * *


A tarde caía acinzentada, fria e chuvosa, pedindo um fondue com um bom vinho. Uma transa gostosa e a noite estaria selada com chave-de-ouro. Tudo perfeito exceto pelo drama de Paula que não me largava. Cuidar da vida sexual alheia me estressava, porque, ainda que eu fosse a grande amiga, em última análise, o problema era apenas dela. E, se não fosse por isso, como explicar as fantasias despudoradas que vinham intoxicando meu subconsciente? Sonhos torturantes que se infiltravam realidade adentro, pois até mesmo quando eu estava na intimidade com meu marido, o esposo de Paula surgia em insights totalmente despropositados. Aparecia e se situava, jogando conosco o jogo da sedução, como se, com isto, pudéssemos livrá-lo de sua derrota conjugal. “Olha, sua mulher é uma puta, mas eu não”. Dentro daquela psicose diabólica eu confundia os rostos, os corpos, e me via submetida a transas incomuns, estranhas, humilhantes – algumas tão sinistras, que poucas prostitutas topariam – enquanto, na verdade, estava apenas tentado fazer amor com o homem da minha vida.


– Oi, Jacqueline, tudo bem?


– Oi, Paula, tudo.


– Como está o trabalho com o seu livro de contos eróticos?


– Indo bem. Estou fechando o último conto e aí vou enviá-lo para revisão. Acho que antes do fim do ano ele estará publicado. Por sinal, esse último está muito quente e psicótico.


– Qual o título?


– "Comportamento inadequado". Título que também dá nome ao livro. Nele o pecado não deveria existir, mas como se faz presente, tudo acaba adquirindo um contorno impróprio. Trata-se de um denso conto sensual, mais picante que os demais. Acho que o nome está muito pertinente.


– Essa atitude é tudo o que eu não queria ter.


– Como assim, Paula?


– Não sei bem como definir, Jackie, mas acho que não ando bem... emocionalmente, eu quero dizer. Tenho tido um comportamento parecido com esse do livro. Casada com uma pessoa e desejando outra, a pessoa errada. Ou sou eu a errada, sei lá. Você sabe do que estou falando.


As conversas com a Paula, quando convergiam para esse pântano lascivo, ficavam perigosas.


– O que foi agora, Paula?


Eu estava absorvendo os problemas da amiga. Para livrá-la deles eu os estava quase vivendo.


– Saí com ele novamente. E dessa vez rolou mais que beijos.


Ou então, eu estaria com inveja. Sim, esse era o motivo real que ignorava para não assumir minha intolerância. A puta da Paula fodia descaradamente com um amigo enquanto o marido viajava a trabalho e eu, naquela de ditar moral e regras de comportamento, ficava tentando domar minha vontade latente de estar fazendo o mesmo.


– Você está brincando, Paula.


– Não, Jacqueline, nós transamos e o pior é que gostei. Gostei demais.



* * *



Xingamentos calculados serviam para estimular as sensações e os espasmos orgásticos, de tão intensos, me engasgavam. Dois, três, diversos. Não me prendia em contagem, só queria sexo, furioso ou não, mas que fosse de todas as formas. Sons selvagens entravam por meus ouvidos como uma sinfonia doce que, aliada aos voluptuosos movimentos, formavam a pólvora do gozo. “Vadia! Você fode melhor que a Paula!”. “Mete!”. Nossos gritos se completavam quase como estrofes satânicas, versos malditos, harmônicos entre si, mas que incineravam os bons costumes. A hipocrisia humana ia revelando sua face mais pervertida naqueles instantes intermináveis, doces para nós, amargos para quem amávamos.


Ficamos deitados ainda algum tempo refletindo nas nossas atitudes adolescentes, tão gostosas quanto inconseqüentes. Era isso que queríamos? Não, não era. Mas, infelizmente, bom ou não, eu estava satisfeita. Jairo ainda se superava e matinha sua interpretação cínica, jogo sórdido que ia além dos lençóis. Fingia interesse em meus assuntos particulares para tentar me convencer de que o que mantínhamos era mais que sexo. Um grande cafajeste, sem dúvida.


– Como vai o livro que você está escrevendo?


Bem lembrado. Seria bom reinventar um nome para a minha protagonista.



* * *



– Gostou demais?! Que isso, Pâmela?


Silêncio.


– Gostei, vou dizer que não? Minto pra todo mundo, menos pra você. Sei que você não vai me chamar de puta, que vai entender meu problema.


– Foi rápido, só para matar a vontade, né? – desejava imensamente que menos coisas houvessem ocorrido, ou que pelo menos ela não se aprofundasse nos detalhes. Minha raiva, pura inveja disfarçada, começava a vazar através do meu tom áspero. Que merda é a vida! Uma putinha que não conhece nada de nada e já se entrega aos prazeres do pecado, e eu escrevendo contos eróticos para entreter burguesinhas mal amadas.


– Quando ele me chupou, senti o que nunca sentira antes. Foi mágico, arrepiante! Meu marido nunca fez algo assim. Ajoelhei e retribuí, como uma donzela que perde os pudores.


“Donzela que perde os pudores”. Essas são mais vagabundas que as putas de berço. Tudo era decepção. Quando a mulher se predispõe a isso, é o fim. Como ela iria olhar e beijar novamente seu marido? Com aquele gosto de outro na boca...


– Isso não combina contigo, Pâmela! Comportamento inadequado é só o título de um livro que ainda nem lançado foi! Coisa feia. Você é casada! Pense nisso, no que os outros vão falar!


– Você é uma amiga muito pura, Jacqueline. Vou parar de contar as merdas que tenho feito. Acho que não dá para falar sobre isso com ninguém, nem contigo. Não resisti aos meus instintos. Dei pra ele sim e agora vou ter de viver com essa minha decisão.


Estava incrédula. “Dei pra ele sim”. Aquelas palavras feriam meus ouvidos. Sua atitude havia quebrado a barreira da normalidade e Pâmela agora estava mais convicta do que nunca sobre o rumo de sua vida. E a verdade é que eu estava em ruínas, não por falhar como a idiota protetora matrimonial, mas por não me permitir ousar como ela ousava, viver como ela vivia. “Comportamento inadequado, sem juízo e sem arrependimento. Não adianta lição de moral, Jacqueline, porque é a devassidão que vai fazer seu livro vender como nunca.” Não havia mais argumentos. Eu não tinha mais o que fazer a não ser aceitar o delírio daqueles dois mundos distintos, o meu e o dela, que agora se fundiam. Olhei para a tela do computador e vi o cursor piscando na última linha, pedindo definição.


– Tchau, Jackie. O Jairo acabou de chegar. Vou procurar alguma coragem para encará-lo.



* * *



Ficou bom. Só não podia me esquecer de modificar este último nome também.





segunda-feira, 19 de abril de 2010

Beckett e a desconstrução do humano

O século XX representou a quebra de todos os paradigmas, todos os ídolos, todas as tradições.
Apesar de este processo de transformações estar presente de maneira bastante nítida durante toda a História da Humanidade, em nenhum outro momento a ruptura se tornou tão evidente e teve por objetivo a própria ruptura.
Marx, Nietzsche e Darwin foram os primeiros a vislumbrarem este novo mundo, ainda no século anterior. Semearam as bases para a modernidade e instauraram, ou detectaram, a ânsia por mudanças.
Logo no início do século XX, o cenário social, intelectual e cultural estava atribulado. Freud apresentava uma nova visão sobre as patologias mentais e, por extensão, sobre o próprio ser humano; na Rússia, Lênin conduzia a maior e mais decisiva revolução política da Europa; enquanto em Paris, pintores, escritores, músicos e escultores abriam as portas para a modernidade, abandonando a linguagem academicista e estabelecendo novas formas de expressão — Stravinsky, Picasso, Proust, Joyce, Rodin, Kandinsky, Miró, entre outros, estiveram na vanguarda destes novos tempos.

O mentor e o discípulo
“Ulisses”, considerado como um dos mais importantes romances do século XX, foi publicado em 1922. Até então, James Joyce era conhecido apenas em pequenos círculos literários, mas a publicação deste romance propagaria seu nome pela Europa e o incluiria na galeria dos grandes escritores do mundo.
Graças a “Ulisses”, James Joyce chegou a ser cogitado para o Prêmio Nobel de Literatura, o que, contudo, jamais ocorreria. Nesta obra, Joyce inaugurava, quase simultaneamente a alguns poucos autores, uma nova técnica de escrita — o fluxo de consciência. Do mundo exterior, o foco da escrita passou ao complexo e fugaz mundo interior.
Alguns anos depois, James Joyce e Samuel Beckett se conheceram. Ambos eram irlandeses, ambos eram auto-exilados, ambos estavam imbuídos da missão literária de desvendar as profundezas humanas.
Joyce buscava a plenitude, recriar e englobar o mundo inteiro em sua escrita. “Ulisses” é um desfile pelo universo da Literatura, onde várias formas, vários estilos, vários pontos de vista, vários personagens são apresentados. Era um prenúncio para o maior experimento literário de Joyce, “Finnegans Wake”, uma obra sem começo nem fim, que reunia algumas dezenas de idiomas para construir uma nova linguagem, híbrida e polissêmica. Beckett foi um dos colaboradores de Joyce durante a pesquisa para “Finnegans Wake” e, diante do processo criativo e da genialidade de Joyce, Beckett percebeu que esta era uma trilha que ele jamais poderia trilhar.
Se Joyce ansiava pela totalidade, Beckett teria de se contentar com o nada.

A Trilogia

Beckett inicia uma trilogia romanesca em 1951. O primeiro dos livros é “Molloy”, a história de um jovem homônimo que vaga pelas ruas de uma cidade, primeiro com sua bicicleta, depois se arrastando. Na segunda parte, o detetive Moran e seu filho são incumbidos de encontrar Molloy e, de uma maneira um tanto mais coerentes, os eventos ocorridos a Molloy se repetem com Moran. Críticos sugerem que o protagonista da obra é um esquizofrênico, Moran e Molloy seriam personalidades de uma única pessoa.
Desta trilogia, este é o único romance que ainda traz resíduos de enredo e coerência. Beckett já demonstra o antagonismo temático a Joyce, apesar de apresentar-se sob a mesma vestimenta técnica, o fluxo de consciência e o mergulho na essência do ser humano. No entanto, para Beckett, a essência é o vazio, o nada, o ser rastejante e sem sentido que somos, o extremo oposto do homem total e universal de Joyce.
No segundo romance, “Malone Morre”, Beckett narra os últimos dias de Malone em seu leito de morte. O romance se limita a descrever as impressões e algumas rememorações fragmentárias do narrador-protagonista. Alguns temas de “Molloy” ressurgem, como o ser rastejante, a falta de memória, as recordações equivocadas ou incompletas, a falta de vínculos entre as pessoas, o nada, nossa impotência diante da vida, nossa servitude.
No entanto, apenas em “O Inominável” que Beckett parece concretizar toda sua cosmovisão da escrita, um romance sem protagonista, sem enredo, sem coerência, um nada verbal que se prolonga por centenas de páginas. Um verdadeiro monumento ao esvaziamento do sentido, a obra-prima da desconstrução do humano e da identidade.
Toda a trilogia foi escrita diretamente em francês, ao invés da língua nativa de Beckett, o inglês. O autor justifica esta escolha afirmando que em francês era mais fácil para ele escrever sem estilo. Novamente, o fantasma do mentor Joyce pairava sobre Beckett, onde aquele era pleno e perfeito, este tinha de ser falho e incompleto, sem estilo, menor.

Esperando Godot

Apesar do prosador estupendo, foi no teatro que a carreira de Samuel Beckett se consolidou. Aliás, foi logo com uma de suas primeiras peças, “Esperando Godot”, que ele se consagraria no cenário dramatúrgico.
Uma crítica de teatro afirmou que Beckett “havia obtido uma impossibilidade teórica — uma peça na qual nada ocorre, e que mesmo assim mantém a plateia grudada no assento. Mais do que isto, sendo o segundo ato uma sutil repetição do primeiro, ele escreveu uma peça na qual nada ocorre duas vezes”, pois todo o enredo se resume a dois personagens, Vladimir e Estragon, aguardando Godot, que não aparece.
Afirmar que nada acontece é exagerado, pois certos eventos transcorrem durante esta espera, no entanto, tanto no primeiro ato quanto no segundo ato, que é uma espécie de paródia do primeiro, o que insufla os protagonistas é a angústia do evento que há de se suceder, mas que não se realiza.
As interpretações do sentido da peça são múltiplas, alguns sugerem que Godot é um símbolo de Deus (God), mas Beckett logo rejeitou esta hipótese — “se eu quisesse ter dito Deus, teria dito Deus e não Godot”.
No fundo, “Esperando Godot” é apenas uma reasserção da descoberta feita por Beckett na trilogia romanesca: não somos nada a não ser a eterna projeção sem sentido de nós mesmos para o fim. Dia após dia, os personagens de Beckett, incrivelmente semelhantes à maioria de nós, movem-se (ou se arrastam) para o fim, sem lógica, sem razão, sem compreensão, aprisionados à inexorável marcha do tempo.

Conclusão
Beckett foi um herdeiro literário direto de Joyce. Estilisticamente, fracassou onde Joyce prevaleceu, porém, Beckett venceu onde Joyce foi derrotado. Em 1961, Beckett dividiu o Prix Formentor com Jorge Luis Borges, premiação que projetou internacionalmente a carreira de ambos. Em 1969, Beckett se tornou o terceiro irlandês a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, depois de Yeats e Bernard Shaw.
Todavia, assim como Joyce, Beckett terminou por se tornar um daqueles autores idolatrados, admirados, temidos, imitados, mas pouco lidos.
Numa carta, Frank, irmão de Samuel Beckett, indagou-lhe: “Por que não consegues escrever do jeito que as pessoas gostariam?”.
Talvez uma resposta que Beckett poderia ter dado é que desvendar o ser humano não é a tarefa das mais agradáveis de se ver, tampouco pode ser expressa de maneira simplória.
O anti-homem da escrita de Beckett não poderia estar mais próximo de nós, pois está em nosso interior.





Orgulho e Preconceito contra Zumbis

Publicado originalmente no FC e Afins

Um dos maiores chavões que eu conheço – olha que são muitos – é o velho ‘a escola mata o gosto pela leitura ao obrigar os alunos a ler os clássicos’. Apesar de acreditar que muito disso se deve mais a obrigatoriedade do que aos clássicos em si, não podemos desconsiderar que em tempos de ‘Resident Evil’ e ‘God of War’, ‘O morro dos ventos uivantes’ e ‘A Odisseia’ saem perdendo no quesito atratividade.

Afinal, entre ler sobre monstros e matá-los para se tornar um deus qualquer pessoa com menos de 30 anos vai escolher o caminho mais divertido e sangrento. Oras, por vezes até eu mesma escolho. Então, fica difícil alguém conseguir manter a atenção nos intermináveis saraus e reuniões sociais de ‘A moreninha’ e ‘Senhora’ em tempos de ‘The Sims’, twitter e MSN.

E até onde posso perceber, o problema é universal. Ou melhor dizendo, mundial. As crianças vulcanas devem adorar ler os ensinamentos de Surak.

Mas aqui na 3ª pedra a partir do Sol, o negócio é bem mais complicado.

Até que um dia, lá fora – claro, o editor Jason Rekulak da Quirk Classics achou o ‘ovo de Colombo’ dessa história. Foi inspirado pelo exemplo de um livro de auto-ajuda para pessoas… ah, fofas em excesso assim como eu, que misturava os ensinamentos do Sun Tzu em ‘A arte da guerra’ com os conselhos que todo o fofinho já escutou de seu endócrino ou nutricionista que mudou os rumos da sua casa editorial.

Resolveu pegar clássicos da literatura que já tivessem caído em domínio publico e fazer uma mistura com elementos dos livros que a rapaziada curte: vampiros, fantasmas, lobisomens, andróides, zumbis, monstros marinhos, ninjas… Contatou o escritor pouco conhecido Seth Grahame-Smith, dizendo que tinha uma ideia, um título e só. O autor disse depois que este título ‘era a coisa mais genial que já tinha ouvido’: ‘Pride and Prejudice and Zombies‘.

Cá entre nós, se não é a coisa mais genial que EU já ouvi, está no top 100 com certeza.

O livro obviamente incomodou muitos acadêmicos. Mas como todos nós sabemos, o público em geral não dá muita bola para ranzinzices mofadas e adorou a ideia, fazendo do mashup do livro de Jane Austen um dos grande sucessos editoriais do ano passado. A Intrinseca, mostrando mais uma vez que é antenada com o que cheira a sucesso (é a editora das séries ‘Crepúsculo’ e ‘Percy Jackson’ no Brasil), lançou a versão brasileira do livro no começo de 2010.

Manteve-se fiel ao espírito da edição original: a capa é a mesma, o título é a tradução literal, as ilustrações – uma boa emulação dos originais da época de Austen – também estão lá. Inclusive a ‘ficha de leitura’, que tira um grande sarro das perguntas dos livros paradidáticos, aparece no final.

A trama principal é a que foi escrita por Jane Austen em 1813, uma crônica ácida e divertida dos costumes do inicio do século XIX vistos por uma mulher. As irmãs Bennet estão na idade de casar e essa se torna a principal preocupação de sua mãe, uma senhora praticamente insuportável. A vida das cinco moças gira em torno dessa obsessão por casamento, inclusive Elizabeth, a segunda mais velha e a mais ousada, que é a protagonista da história.

Eu disse que a vida delas gira em torno de casamentos? Bem, isso na versão original.

No livro da Quirk Classics, tem um probleminha distraindo as mentes das jovens desse objetivo. Uma estranha praga assola a Inglaterra, fazendo com que os mortos levantem dos túmulos atrás de carne humana. Como nos bons filmes e livros do gênero, uma mordida e o pobre infeliz também irá contrair a moléstia. E é por isso que o pai, o Sr. Bennet, tem outros pensamentos em relação ao futuro de suas filhas. As irmãs são treinadas exaustivamente em artes marciais para poderem se defender e ajudar na defesa de seu país contra as hordas de mortos-vivos.

Aí está a receita. O livro mantém o humor ácido e inteligente de Austen, inclusive com os diálogos marcantes entre Elizabeth Bennet e o arrogante Mr. Darcy, Lady Catherine continua sendo preconceituosa, a pobre Charlotte ainda tem o seu destino trágico… porém tudo fica mais divertido com zumbis. A cena do jantar, logo no começo do livro, perde seu ar de sarau e transforma-se em uma batalha campal em um dos muitos momentos divertidos da história.

O autor não perde muito tempo explicando o que aconteceu ou como os zumbis apareceram. Mal e mal nos deixa saber que estão procurando uma cura. Nos 15% do livro que lhe couberam – já que manteve 85% do texto original – ele se preocupa muito mais em inserir cenas de ação, como a disputa de Elizabeth com os ninjas de Lady Catherine, ela mesma uma eximia lutadora que teve tempos de glória no combate aos atingidos pela praga.

Porém, isso não faz muita diferença. O toque de mestre ali foi saber onde inserir na narrativa os momentos de quebra – como leitora dos dois livros, com e sem zumbis, deu para perceber que ele escolheu bem. Sempre que a trama de Jane Austen podia afastar jovens leitores, há zumbis, ninjas e lutas para trazê-los de volta.

Claro que aqueles que levam a literatura a sério demais bradam que é um sacrilégio, uma afronta, um desrespeito, antiético e até criminoso que o autor ganhe dinheiro dessa forma. Nunca vi, no entanto, esses mesmo críticos refletiram que as editoras ganham muito dinheiro reeditando clássicos em domínio público para servirem como paradidáticos. Qualquer pessoa que entenda o mínimo de legislação autoral sabe que a partir do momento em que a obra cai em domínio público, ela é de livre utilização, por qualquer pessoa, incluindo autores. E só seria antiético se o nome de Jane Austen fosse deixado de lado – o que não acontece, muito pelo contrário.

E é curioso que digam que é um desrespeito e uma afronta. Jane Austen enfrentou esse mesmo tipo de comentário por ser uma mulher que se atrevia a fazer literatura. Poucas na época ousavam, muito menos o sucesso e o reconhecimento da inglesa.

Pode ser que artisticamente, ‘Orgulho e Preconceito e Zumbis’ não revolucione a literatura. Porém, já trouxe uma pequena revolução no mercado. A Quirck Classics já lançou ‘Sense and sensibility and sea monsters’ e agendou o lançamento de ‘Android Karenina’ para outubro deste ano. Grahame-Smith é o autor de ‘Abraham Lincoln: vampire slayer’. Outros autores e editores começam a apostar no filão: Amanda Grange lançou ‘Mr. Darcy, Vampyre’ pela SourceBooks.

E claro que isso não ia parar nos livros. ‘Pride and prejudice and Zombies‘ vai virar filme e graphic novel. Uma produtora cinematográfica inglesa já anunciou que pretende filmar uma invasão alienígena à cidade fictícia de Meryton, onde se passa o livro de Jane Austen, intitulada ‘Pride and Predator’. Um jogo para Ipod e Iphone será lançado em breve.

E mesmo no Brasil, essa mania pode pegar. O assunto já apareceu na Veja e na Época, foi capa do suplemento Megazine de 20/04/2010, com brasileiros dando exemplos de obras nacionais ‘remixadas’, a Intrinseca já anunciou o lançamento de ‘Razão e Sensibilidade e Monstros Marinhos’ e ‘Abraham Lincoln: matador de vampiros’ para 2010…

E a Desiderata anuciou que no final desse ano irá lançar “Memórias Pós-túmulo de Brás Cubas’ no final do ano. O autor ainda não foi anunciado. Mas já prevejo que ele irá apanhar bastante. Da crítica. O público, porém, tem muita chance de gostar do que vai ler!





domingo, 18 de abril de 2010

Quando a natureza precisa intervir, quem são os culpados? Giselle Sato

Tanta dor, a tristeza se funde ao cinza que cobre a cidade, antes azul, amarela, verde em aquarela. Hoje não estamos sorrindo como antes, em cada coração, perdas e solidariedade.

O Rio de Janeiro, boêmio e despreocupado, descarta a imagem preguiçosa, arregaça as mangas e segue adiante: Cobra respostas, busca a verdade sem medo, aponta o dedo e acusa. Sabe que a ameaça paira do nosso lado, o cenário é quase idêntico, basta olhar nossos morros. Há perigo nas encostas, existem pessoas morando nas casinhas penduradas, são vidas sem opção.

Como todo carioca, sinto Niterói como a irmã que a gente implica, mas ama tanto, tanto, que sofremos juntos, queremos proteger e não existimos sem ela. Rio, Niterói e outras cidades da família Brasil, tiveram as feridas expostas.

O lixo foi revirado e as imagens, que o mundo assistiu, foram no mínimo vergonhosa. Ao admitir, nem digo permitir, a construção de moradias em cima de um lixão, quem escondeu as doenças causadas pelo churume, escorrendo pelas calçadas? E foram apresentados tantos estudos, o perigo foi apontado, e nada foi feito.
Porque obras foram realizadas, ruas abertas, estimulando novos moradores? São tantas perguntas no vazio.

As águas, o vento, a natureza enfim, mostrou ao homem, os danos que ele mesmo causou. É hora de atitudes, de estender a mão e tratar com respeito quem não tem mais onde morar.

Não serão paliativos que mudarão a vida desta gente. Precisamos de compromisso, é um direito mínimo ter moradia, alimento, educação e saúde.
Mas nem todos conseguem, não há emprego, oportunidade, o caminho de cada um é muito diferente. Meu manifesto é a palavra, as únicas armas que possuo estão aqui, e é através da mensagem que deposito a esperança.

Eu quero um mundo melhor e mais justo e creio que o ser humano é capaz. Se perder a fé nestes valores, não haverá o menor sentido em existir e vou sucumbir no desespero.

Mas sou antes de tudo, brasileira, e mesmo à deriva, o porto que busco existe. Eu sei, faço desta certeza o alicerce e é lá que espero aportar, neste imenso navio-nação. Um dia.





Quando o mundo cai

Eu achei que todos os meus desabafos sobre a tragédia que se abateu sobre Niterói tinham sido suficientes. Achei que meus gritos no twitter e a postagem no meu blog já tivessem sido o suficiente. Lá eu esbravejei contra o Poder Público, principalmente contra a Prefeitura de Niterói, na figura do atual Prefeito, Jorge Roberto Silveira, e do seu grupo político, que se reveza no poder há duas décadas. Gritei que os rostos que passaram no Jornal Nacional, essas caras chorosas que perderam tudo não são pobres coitados. São pessoas. Pessoas que sonham, que batalham, que tentam ter vidas dignas e dar um futuro aos seus filhos. Gente que tem suas pequenas ambições, fazer uma festa de 15 anos para a filha, comprar um carrinho melhor, conseguir viajar pra Cabo Frio nas férias, colocar os filhos na faculdade, mesmo na particular. Mesmo que custe muito.

Chorei em público porque os conheço. Convivi com eles boa parte da minha vida. Já as atendi na padaria, já trabalhei com elas atrás de um balcão. Fui a festas, a churrascos, vi as fotos, ajudei em matéria de escola dos filhos, emprestei livros – dei alguns também. Muitos desses que eu conheci, durante 18 anos, vivem nas comunidades atingidas: Morro 340, Morro do Castro, Morro do Estado, Beltrão, Cafubá, Cantagalo, Maceio, Cubango… e mesmo no morro do Bumba. Eu morei durante o meu primeiro ano de casada na Travessa Beltrão, onde oito pessoas morreram soterradas.
E me revoltei porque apontaram a culpa como sendo das vítimas, como não bastassem terem perdido tudo. Perderam a casa, a familia, documentos, a sua própria história e a sua memória, enterradas em montanhas de lixo e lama. Só que essas pessoas não são lixo. E não são burras. Elas não moram em encostas e lugares de risco por gosto e escolha. Eles não colocam a sua vida e a dos filhos em risco por opção. É ao contrário. Eles fazem isso por falta dela.

Não foi o bastante. Ainda dói. A ferida na cidade ainda está aberta, ainda sangra.
Ainda tem corpos embaixo do lixo. Ainda tem pessoas sem casa.

E ainda tempos que escutar os poderosos se eximindo de culpa, exigindo apoio nesse momento tão difícil, como se não fossem eles os responsáveis. Dizendo que obras de contenção não foram feitas por serem caras. Muito mais barato seria remover as pessoas que ali residem. Só que estas estão sendo retiradas em sacos plásticos que fazem às vezes de mortalhas. Ao invés de um conjunto habitacional, o novo endereço que a prefeitura está concedendo a eles é o cemitério do Maruí.

O dinheiro é pouco? Então, como Niterói tem vários projetos com a assinatura (cara) de Oscar Niemeyer? Um museu de arte contemporânea – que pouco contribui para a sociedade – que custou 1 bilhão de doláres? Longe de mim, enquanto escritora e funcionária do Ministério da Cultura, desmerecer qualquer coisa na área, mas fica aqui a pergunta: quantas vidas valem um museu?

Ou então, de que adianta expor nossa memória e nossa arte se matamos – ou deixamos morrer - quem mais teria necessidade de conhecê-la para ter orgulho de si e entender de onde veio?





sábado, 17 de abril de 2010

Molloy

Samuel Beckett
trad.: Henry Alfred Bugalho

Minha mãe nunca se recusou a me ver, isto é, ela nunca se recusou a me receber, pois fazia muito tempo que ela não enxergava coisa alguma. Vou tentar e falar calmamente. Nós éramos tão velhos, ela e eu, ela havia me tido tão jovem, que éramos como um casal de velhos companheiros, assexuados, sem parentesco, com as mesmas memórias, os mesmos rancores, as mesmas expectativas. Ela nunca me chamava de filho, felizmente, eu não suportaria isto, mas de Dan, não sei porque, meu nome não é Dan. Dan era o nome de meu pai talvez, sim, talvez ela me tivesse por meu pai. Eu a tinha por minha mãe e ela me tinha por meu pai. Dan, você se lembra do dia em que eu salvei a andorinha. Dan, você se lembra do dia em que você enterrou o anel. Eu lembrava, eu lembrava, quer dizer, eu sabia mais ou menos do que ela estava falando, e se eu nem sempre houvesse tomado parte pessoalmente nas cenas por ela evocadas, era o mesmo como se houvesse. Eu a chamava de Mag, quando eu tinha de chamá-la de alguma coisa. E eu a chamava de Mag porque, para mim, sem eu saber porque, a letra g abolia a sílaba Ma, e era como se cuspisse nela, melhor do que qualquer outra letra teria feito. E, ao mesmo tempo, eu satisfazia uma profunda e indubitável necessidade não reconhecida, a necessidade de ter uma Ma, isto é, uma mãe, e de proclamar isto, audivelmente. Pois antes de você dizer mag, você diz ma, inevitavelmente. E pa, na minha parte do mundo, quer dizer pai. Além disto, para mim a questão não se levanta, no momento em que estou escarafunchando agora, quero dizer a questão se chamá-la de Ma, Mag ou de Condessa Caca, ela ser por incontáveis anos surda como uma porta. Acho que ela era um tanto incontinente, tanto de fezes quanto mijo, mas uma espécie de pudor faz com que evitemos o assunto ao nos encontrarmos, e eu nunca pude me certificar disto. Em qualquer caso, não devia ser grande quantidade, alguns esparsos cocos de cabrito molhados a cada dois ou três dias. O quarto cheirava amônia, mas não apenas amônia, mas amônia, amônia. Ela sabia que era eu, pelo cheiro. Sua contraída velha cara peluda se iluminava, ela estava feliz em me cheirar. Ela balbuciava com batidelas de dentadura e, na maioria das vezes, não captava o que ela estava dizendo. Qualquer outro além de mim se perderia nestas balbuciantes batidelas, as quais apenas cessavam durante seus breves instantes de inconsciência. No meu caso, eu não havia vindo para ouvi-la. Eu me comunicava com ela batendo-lhe em seu crânio. Uma batida significava sim, duas não, três eu não sei, quatro dinheiro, cinco tchau. Foi difícil socar este código pra dentro da arruinada e frenética compreensão dela, mas eu consegui, no fim. Que ela confundisse sim, não, eu não sei e tchau, dava na mesma para mim, eu mesmo me confundia. Mas que ela associasse as quatro batidas com alguma outra coisa além de dinheiro era algo a ser evitado a todo o custo. Assim, durante o período de treinamento, ao mesmo tempo em que eu administrava as quatro batidas no crânio dela, eu enfiava uma cédula em seu nariz ou boca. Quanta ingenuidade minha! Pois ela aparentava ter perdido, se não absolutamente toda noção de mensuração, pelo menos a faculdade de contar além de dois. Era demais para ela, sim, a distância era grande demais, de um até quatro. Ao chegar à quarta batida, ela imaginava que era apenas a segunda, tendo sido as duas primeiras apagadas da memória dela tão completamente como se nunca as houvesse sentido, apesar de eu não saber exatamente como algo nunca sentido pode ser apagado da memória, mesmo assim esta é uma ocorrência comum. Ela deve ter pensado que eu dizia não para ela o tempo todo, enquanto que nada estaria mais longe do meu propósito. Iluminado por estas considerações, procurei e, finalmente, encontrei um meio mais eficiente para pôr a ideia de dinheiro em sua cabeça. Isto consistia em substituir a quatro batidas com o nó do dedo indicador por uma, ou mais (de acordo com minhas necessidades) cacetadas com o punho, no crânio dela. Isto ela entendeu. De qualquer modo, eu não vinha pelo dinheiro. Eu pegava o dinheiro dela, mas eu não vinha por causa disto. Minha mãe. Eu não guardo tanto rancor dela.

Excerto de "Molloy", Grove Weinfeld, 1958.

***
Sobre o autor
Samuel Beckett nasceu numa família burguesa  e protestante, e em 1923 ingressa no Trinity College de Dublin, para se formar em Literatura Moderna, especializando-se em francês e italiano. Em 1928, meses após sua mudança para Paris, conhece James Joyce, apresentado por um amigo em comum. Torna-se grande admirador do escritor, e sua obra posterior é fortemente influenciada por ele.

Após lecionar durante o ano de 1930 na Irlanda, Beckett volta no ano seguinte para Paris, fixando residência na cidade, e escreve sua primeira novela, “Dream of Fair to Middling Women” (publicada após a morte do autor, em 1993) Em 1933, Beckett retorna novamente a Dublin, pois, devido ao falecimento de seu pai, encarrega-se de cuidar de sua mãe. Retorna a Paris em 1938, quando é marcado por dois acontecimentos de grande importância: fica gravemente ferido ao ser agredido por um estranho, que lhe desferiu uma facada no peito, e conhece Suzanne Deschevaux-Dusmenoil, com quem viveria o resto da vida e se casaria em 1961.

Depois da eclosão da Segunda Grande Guerra, vincula-se à resistência francesa, na ocasião da invasão de Paris pelo exército nazista, em 1941, juntamente com sua esposa. Afasta-se da resistência em 1942, quando ambos foram obrigados a fugir da França. Morre em 1989, cinco meses depois de sua esposa, de enfisema pulmonar, contra o qual já lutava havia três anos. Foi enterrado no cemitério de Montparnasse.

A produção beckettiana foi um dos principais ícones do Teatro do Absurdo que faz uma intensa crítica à modernidade. Recebeu o Nobel de Literatura de 1969.

Fonte: Wikipédia





sexta-feira, 16 de abril de 2010

Entrevista com o poeta José Inácio Vieira de Melo

José Inácio, foto por Ricardo Prado


José Inácio Vieira de Melo (1968), alagoano radicado na Bahia, é poeta e jornalista. Publicou os livros Códigos do silêncio (Salvador: Letras da Bahia, 2000), Decifração de abismos (Salvador: Aboio Livre Edições, 2002), A terceira romaria (Salvador: Aboio Livre Edições, 2005) – Prêmio Capital Nacional de Literatura 2005, de Aracaju, Sergipe, A infância do Centauro (São Paulo: Escrituras Editora, 2007) e Roseiral (São Paulo: Escrituras Editora, 2010). Organizou Concerto lírico a quinze vozes – Uma coletânea de novos poetas da Bahia (Salvador: Aboio Livre Edições, 2004) e a agenda Retratos Poéticos do Brasil 2010 (São Paulo: Escrituras Editora, 2009).

Publicou também o livrete Luzeiro (Salvador: Aboio Livre Edições, 2003) e o CD de poemas A casa dos meus quarenta anos (Salvador: Aboio Livre Edições, 2008). Participa das antologias Pórtico Antologia Poética I (Salvador: Pórtico Edições, 2003), Sete Cantares de Amigos (Salvador: Edições Arpoador, 2003), Voix croisées: Brésil-France (Marselha: Autre Sud, 2006) e Roteiro da poesia brasileira – Anos 2000 (São Paulo: Global, 2009).
Coordenador e curador de vários eventos literários, como o Porto da Poesia, na VII Bienal do Livro da Bahia (2005) e a Praça de Cordel e Poesia, na 9ª Bienal do Livro da Bahia (2009), assim como os projetos A Voz do Poeta (2001) e Poesia na Boca da Noite (2004 a 2007), ambos em Salvador, e Travessia das Palavras (2009), em Jequié. É curador do projeto Uma Prosa Sobre Versos, em Maracás, desde 2008.Foi co-editor da revista de arte, crítica e literatura Iararana, de 2004 a 2008. É colunista do site Cronópios e edita o blog Cavaleiro de Fogo (www.jivmcavaleirodefogo.blogspot.com). Venceu o Prêmio Nacional Iararana de Poesia 2001/2002 e o Concurso de Fotografia e Poesia Vila d’Água 2009.
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SAMIZDAT – Você transita entre a literatura e o jornalismo. Estes dois mundos se comunicam em sua obra, ou são exercícios paralelos, talvez até antagônicos?


JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO – Não diria que sejam antagônicos. Mas o fato de ser jornalista não define nada em minha criação poética. Por outro lado, auxilia bastante na divulgação.


SAMIZDAT – Do Nordeste brasileiro já surgiram grandes nome da literatura nacional, como Jorge Amado, José Lins do Rego, João Ubaldo Ribeiro, Cecília Meireles, Raquel de Queiroz, entre incontáveis outros. No entanto, esta região tem historicamente alguns dos piores índices de analfabetismo do país, sendo que, hoje em dia, concentra 50% dos iletrados brasileiros. Como você entende esta contradição? "Em terra de cego, quem tem um olho é rei", ou a qualidade literária nordestina funda-se numa rica tradição popular oral?


JIVM – Engraçado, dos escritores que você citou apenas um é poeta. A Cecília Meireles. Que não é nordestina. Ela é carioca. E a minha preferida na língua portuguesa. O fato é que a maioria dos grandes romancistas e poetas do século XX era formada por nordestinos. Recentemente, Ivan Junqueira, poeta, enssta e tradutor, falou em uma entrevista para Carlos Ribeiro, no jornal A Tarde, que a melhor poesia do Brasil, na contemporaneidade, é feita no Nordeste. E é verdade. Basta se debruçar sobre a obra dos cearenses Francisco Carvalho, Gerardo Mello Mourão e José Alcides Pinto, ou dos maranhenses Nauro Machado, José Chagas e Ferreira Gullar, ou ainda dos pernambucanos Alberto da Cunha Melo e Marcus Accioly, e mais o sergipano Santo Souza, e, claro, os baianos Maria da Conceição Paranhos, Antonio Brasileiro, Florisvaldo Mattos, Myriam Fraga, Roberval Pereyr, Luis Antonio Cajazeira Ramos, Adelmo Oliveira e Ruy Espinheira Filho. Sem falar na nova safra de poetas que está se consolidando. A poesia produzida no Nordeste é, sem sombra de dúvida, de um vigor extraordinário. Talvez se deva a essa tradição oral da qual você fala. Talvez seja porque toda essa aridez, todo esse desespero seja a massa mais propícia para amalgamar os versos. Talvez seja por a poesia ter começado no Nordeste, especificamente na Bahia, com Gregório de Mattos.


SAMIZDAT – Escarlate: cor que por muito tempo representou a nobreza, sobretudo na Idade Média, figura sempre nos teus escritos. Qual a relação entre a cor e o teu fazer poético?


JIVM – A cor vermelha exerce uma grande influência em minha pessoa. O meu nome “Inácio” significa “Fogo”. Sou ariano com ascendente em áries. Minha cor é o vermelho. Minha pedra é o rubi. E a palavra escarlate bate sempre em minhas pálpebras. É uma palavra acordada. Quente. E eu não gosto de dormir. Vai ver que é por isso que ela aparece tanto nos meus versos.


SAMIZDAT – Gostaríamos que falasse um pouco sobre seu processo de composição. Como você combina a inspiração e os insights com a racionalização do poema? Como o íntimo interage com

o ambiente e a sociedade em sua obra?


JIVM – Eu não tenho processo de criação. Escrevo pouco. Em torno de 25 poemas por ano. Às vezes, estou deitado numa rede, lendo, aí um passarinho canta no pé de juá, que fica ao lado, e desperta um verso em mim. Outras vezes estou dirigindo, ouvindo rock, quase sempre o Led Zeppelin, e aí sou tocado pela musa, e surgem versos. Até contando gado, passando na cancela, já fui acometido pela poesia. Então, não tem um processo. Eu não escolho hora pra fazer poesia. A poesia é quem determina o instante. E pra ela, essa amante exigente, não tem hora certa. Tem que ser no momento que ela determinar. Não entendo muito de sociedade. Não sou muito sociável.


SAMIZDAT – Seu novo livro, Roseiral, evoca muitas imagens, que se apresentam em mais de um poema, como pedras e pétalas. Há também representações da infância, do humano, do feminino e do erótico. Por que o privilégio das roseiras? Fale um pouco sobre o novo trabalho.


JIVM – Não foi assim: “O meu próximo livro vai se chamar Roseiral”. Nada disso. Numa madrugada, lá na Pedra Só, acordei com um monte de imagens destrambelhadas que falavam de rosas, de mulheres, de sangue, de pétalas e de pedras. Então, logo de cara fiz uns seis poemas, a maioria saiu em versos decassilábicos. Meses depois surgiram uns poemas falando mais das pedras, do planeta, das eras. Depois dei um mergulho na infância. Um mergulho doloroso, mas que, por outro lado, trouxe o aflorar do erotismo no adolescente de cabelos encaracolados. O Roseiral começa no terreiro de pedras, que leva ao jardim, labirinto escarlate por onde se faz a travessia para alcançar a calçada da juventude e, finalmente, chega à casa da maturidade. “A casa dos meus quarenta anos” é o alicerce disso tudo.


SAMIZDATRoseiral é um livro forte. Nele figuram termos que não estão no cânone poético. Por que essa opção?


JIVM – Como já falei, não é uma questão de escolha, de opção. Os poemas surgiram da maneira que estão no livro. Eu poderia ter optado em não ser franco com a minha obra e mudar determinadas palavras que possam vir a desagradar alguns ouvidos mais melindrosos. O que acontece é que não faço poesia para agradar fulano ou beltrano. Faço poesia por uma necessidade. Se fosse uma coisa que eu pudesse controlar, juro que deixava de lado e nunca mais escreveria um verso. Mas se fizer isso, eu morro.


SAMIZDAT – Além das palavras corajosas e robustas, figura no poema de abertura “Transmutação” a ideia de Deus repreendido pelos humanos. Ainda que o autor não seja submetido compulsoriamente ao seu contexto social, como você analisa essa postura distinta de um poeta cuja terra caracteriza-se, entre outras coisas, pela religiosidade?


JIVM – Não se trata de uma repreensão. Trata-se, na verdade, de um questionamento relacionado ao que é divino. Por outro lado, é uma denúncia do que é feito em torno da idéia de Deus – seja qual for a nomenclatura (Alá, Deus, Brama...). Assim como é uma abertura para uma série de denúncias que aparecerão em outros poemas, como, por exemplo, a do patriarcalismo arcaico, que desembocou no coronelismo que até hoje ainda vigora em certas paragens do Brasil, sobretudo do Nordeste. Jogar pedras para despertar a aurora das ideias. Eu sou uma pessoa de fé. Mas a minha fé aumenta através do conhecimento.


SAMIZDAT – Como você analisa o engajamento social do poeta: possível, indispensável ou facultativo?


JIVM – Não existe assunto poético e assunto não poético. Na poesia até o impossível é possível. E nada é obrigatório. Agora, eu, particularmente, não acredito em poeta que não vive a poesia nem muito menos em poeta que não lê poesia. A leitura é indispensável.



A Samizdat agradece a participação do poeta José Inácio, que faz aniversário hoje, dia 16, com o lançamento do seu novo livro Roseiral na Academia de Letras da Bahia, às 17 horas.




Coordenação de entrevista:
Caio Rudá de Oliveira

Perguntas:
Caio Rudá de Oliveira
Georgio Rios
Joaquim Bispo
Henry Alfred Bugalho
Wellington