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domingo, 3 de novembro de 2024

À MERCÊ DAS ÁGUAS


 

O que restou de mim

(a essa altura da vida)

é apenas uma obsessão por

estar em silêncio. Não que

eu busque nele algum sossego,

pois não há nenhuma paz

no meu silêncio de lenha velha.

 

É apenas esse desejo de deixar

a vida correr estando eu fora

dela, como um agregado que perde

a proteção e ao perdê-la sente

que não precisava mesmo disso.

 

Quero que tudo o mais ande

(pois que tudo deve andar

pela lógica mesma da vida).

Mas eu, como um algo à parte

que sou, quero parar por tédio,

essa palavra que define tudo.

 

Quero ficar apenas observando

a chuva e as reações que ela provoca

nas pessoas. E depois sair para

desvendar sua verdade líquida onde

estou a derreter-me como um pequeno

bloco de gelo que desgela, secamente.






sábado, 19 de outubro de 2024

Encontro

 



Encontrei-me com Felipe no último sábado. Faz tempo que não nos víamos. Ele, cedo, passou num concurso e foi morar em outro Estado – se não me engano, no Paraná. Daí em diante, foi minha oportunidade de morar no exterior, por pelo menos quatro anos. Na última vez em que nos encontramos ele estava na pracinha, perto da minha casa, fazendo exercício. Isso foi, talvez, em 2018. O encontro no sábado foi inusitado e cheio de emoção. Ele estava mais magro do que o normal. Ele sempre foi magro, mas dessa vez estava mais, com o rosto chupado, um pouco de olheiras e vários cabelos brancos, inclusive na barba. Decerto eu não o reconheceria se ele não tivesse vindo falar comigo. No ato, ele esboçou uma reação de grande alegria, e eu lhe correspondi. Crescemos juntos, no mesmo prédio, onde tínhamos uma banda que tocava rock pesado e depois migrou para o rock pop. Ele era o tecladista e eu, o baterista. Mas nossa missão de amizade vai além daquele tempo, das nossas atividades juvenis. Creio que encontramos pessoas ao longo da vida para um propósito, o de ser feliz, e essas que nos fazem bem devem ficar. Felipe é alguém que quero levar para o resto da vida. Um cara do bem, amigo e brincalhão. Mas me preocupou bastante o seu estado de saúde. Não consegui decifrar o que lhe passava. Logo que comecei a conversar perguntei como estava, e ele me respondeu que “bem”, meio vacilante. Não seria a hora de me revelar o seu estado? Não estaria eu autorizado a entrar na sua intimidade, que só caberia à família? A sua esposa estava ao lado e era só sorrisos. Ela sabia que o encontro nos faria bem, então deixou que fluísse o que tinha de ser, os nossos papos, as nossas brincadeiras infantis. Ele não parava de me chamar pelo meu apelido de adolescência – o qual não vou revelar aqui, para manter a minha integridade –, para nos tornarmos mais próximos, mais amigos. O tempo não fez com que perdêssemos o lanço da fraternidade, da boa amizade, verdadeira. Mas eu estava ligeiramente tenso, aflito com a sua saúde. Ele parecia fraco, abatido. Teria tido um dia horrível? Estaria exausto do trabalho? Parecia estar de férias com a esposa. Quando me deu a mão, para nos cumprimentarmos, senti pouca firmeza, uma certa displicência, que não combinava com o seu olhar, radiante. O olhar era a nossa fonte primal de energia. Eu sentia que as minhas forças se conectavam às dele pelo nosso contato visual. Era aí que morava o exato amor. Sim, o amor de irmão, o amor puro, que transborda a alegria de estar vivo, ali. No entanto, eu também estou doente, com depressão. Tentei, ao máximo, camuflar o meu estado de lassidão, eu precisava mostrar-lhe que o encontro era, sim, importantíssimo para mim, e que eu precisava vê-lo. Despedimo-nos com um afetuoso abraço. Ele disse, por fim, que estava morando em definitivo em Fortaleza, e eu abri um sorriso de gratidão; era tudo o que precisava ouvir. Precisamos estar juntos, foi esse o nosso trato tácito no aperto de mão. Nossas almas, assim creio, permanecerão em paz.

 

 

  


 






quinta-feira, 17 de outubro de 2024

A chave que abre o passado

 



                    



                        Não vou devolver a chave da casa de minha avó. Essa antiga chave, que está junto da minha, (mesmo eu não o tendo vivido, nem me familiarizado com os parentes já desaparecidos), abre o meu passado...









quinta-feira, 3 de outubro de 2024

A LUMINOSIDADE ATRAVÉS DA JANELA


Faz alguns anos

que eu estou

do lado de fora

observando o

movimento.

 

Do ponto de

onde eu estou

vejo a luminosidade

de uma janela

no 2º pavimento.

 

Todos os dias

de um ponto neutro

de observação

eu vejo o que seria

a rotina da família.

 

Percebo os vultos

que se locomovem

dentro da casa

numa harmonia

pressentida.


Tarde da noite

alguém chega

até a janela

e fecha as cortinas

de persianas.

 

Minutos depois

a lâmpada foi

apagada dentro

do casulo de seda

visto pelo lado de fora.

 

Faz alguns anos

que eu estou

observando

a luminosidade

do ângulo externo.

 

E quando eu subo

as escadas encontro

a porta fechada.

 






terça-feira, 17 de setembro de 2024

Há continentes, países, cidades em seus poucos cômodos

 






         Mosquitos voam velozmente, em volta de mim. Trocaria de lugar com eles sem receio. Voaria por todos os cantos, cruzando oceanos de tapetes e cordilheiras de móveis como se estivesse em uma longa travessia, em direção à estante, à mesa, à escrivaninha, ao sofá. Iria ao quarto, à cozinha e ao banheiro em longos voos. Há continentes, países, cidades em seus poucos cômodos, em sua pequena metragem.
























terça-feira, 3 de setembro de 2024

A ILHA


 

A ilha com seu silêncio

me comunica a morte

dos seres espectrais

que nela vivem ou já viveram.

 

A ilha cercada por mangues

é um poço de lama e óleo.

 

Os pescadores da ilha

me comunicam o fim

dos pescadores da ilha.

 

Os pescadores da ilha

me apresentam a pesca de um dia,

nada.

 

A ilha com sua morte

me comunica o silêncio

dos seres superiores

que a mataram e matam.

 

A ilha abandonada pelos banhistas

é um deserto de espuma e água.

 

Os frequentadores da ilha

me comunicam o desastre

das praias da ilha.

 

Os frequentadores da ilha

me apresentam o bronzeado de um dia,

petróleo.

 

A ilha com sua sorte

me comunica o crime

dos seres continentais

que seguem impunes.

 

Os pescadores da ilha

me comunicam o fim dos peixes

e voltam tarde para casa.

 






sábado, 17 de agosto de 2024

Quimono cor de sal

 






sexta-feira, 9 de agosto de 2024

O cofrezinho


 

Ao sair do emprego, Elsa olhou para o relógio, mais por um descargo de consciência, sabia bem que a finalização daquele relatório demorara bem mais do que previra e estava, agora, em plena hora de ponta, algo que evitava sempre que possível, tirando o máximo proveito do horário flexível que a empresa oferecia a quem o quisesse.

Ainda pensou ir à mesma apanhar o comboio, cheiíssimo àquela hora, mas a ideia de uma boa meia hora de pé, entalada entre pessoas de todos os tamanhos e feitios, demoveu-a. Decidiu, pois, fazer uma visitinha ao seu antiquário favorito, duas portas adiante. Bom, não era mais uma loja de coisas em segunda mão, totalmente atafulhada, mas onde com algum tempo e paciência era possível encontrar coisas bem interessantes.

Era cliente habitual desde que a descobrira, tendo adquirido inúmeros objetos para o seu apartamento, até mesmo alguns móveis, sem falar em presentes diferentes para familiares e amigos. E nem de propósito, a mãe fazia anos daí a cerca de duas semanas e ainda não encontrara nada que lhe enchesse as medidas. Ou seja, só vantagens, procurar um presente e evitar as confusões da hora de ponta. O único inconveniente é que sabia bem, por experiências passadas, que corria o risco de perder a noção das horas e chegar tardíssimo a casa. Mas, como vivia sozinha, também não era grande problema.

Entrou, pois, e, contra o costume, descobriu logo um bonito alfinete de ouro e esmalte, muito ao gosto da mãe. Ou seja, primeira tarefa cumprida, faltava apenas esperar o alívio dos transportes daí a um bom pedaço. Mas não era um grande problema, não faltavam coisas a reclamarem a sua atenção.

Duas horas depois, sim, como temera perdera a noção do tempo, preparava-se para pagar o presente da mãe e iniciar o regresso a casa quando algo pareceu puxá-la para um dos cantos da loja. Era um cofrezinho de madeira, cheio de poeira e sem nada que justificasse a sua compra numa fase em que já só adquiria peças mais ou menos excecionais para o seu já demasiado cheio apartamento.

Virou-lhe as costas para se dirigir à caixa, mas não conseguiu afastar-se mais do que uns passos. E sem bem saber como nem porquê, acabou por sair com ele debaixo do braço, atabalhoadamente embrulhado num pedaço de papel pardo. Felizmente o comboio ia quase vazio, é que apesar de pequeno o cofrezinho não era exatamente leve, devia ser feito de algum tipo de madeira pesada.

Com a hora tardia da chegada a casa, só no dia seguinte, um sábado, lhe pôde dedicar alguma atenção. A primeira coisa a fazer era uma limpeza a fundo, sem produtos agressivos, claro, mas com muito esforço de braços para lhe retirar o muito pó e gordura entranhados em todas as suas superfícies, até no fundo.

Concluída esta morosa operação, viu-se perante uma caixa retangular, com uns 30 cm de comprimento e uns 10 de largura, de tampa abaulada, feito de uma madeira que não sabia identificar, mas que tinha uns bonitos laivos quase arruivados.

Detalhe curioso, tampa e lados apresentavam gravuras pouco fundas, em que  não tinha reparado por estarem totalmente cobertas de sujidade. Não eram nada de especial, uns meros círculos e espirais, mas entrelaçados de um modo estranho e que prendia o olhar.

Não se via nem fecho nem fechadura, a tampa assentava, muito simplesmente, sobre os lados. E no interior viam-se restos de um tecido muito coçado, muito possivelmente um veludo vermelho escuro, com que estaria forrado nos seus tempos áureos. Arrancou-o, claro, com alguma dificuldade porque estava bem colado em certas zonas, planeando voltar a forrá-lo quando encontrasse um tecido a seu gosto.

Agora que o via bem limpo, Elsa conclui que tinha sido, afinal, uma boa compra, nada de especial, é certo, mas o preço também não o fora. Seria ótimo para guardar as bijuterias e joias pouco valiosas que usava mais frequentemente, ficando muito bem num canto do tampo da sua cómoda, onde o pôs de imediato, mas sem o encher, não lhe agradava a ideia de o fazer antes de o forrar.

Sim, fora uma belíssima compra. Só que...

Os sonhos começaram nessa mesma noite, fazendo-a acordar de manhã ainda mais cansada do que quando se deitara. E eram sempre os mesmos, tendo, como figura de destaque, o recém-adquirido cofrezinho de madeira. Como lhe era habitual, pouco recordava sobre o que sonhara, mas, à força de repetições, acabou por fazer uma ideia.

Só que era tudo muito confuso, misturando cenas obviamente de fantasia, como animais falantes, com outras mais reais que pareciam girar em torno de uma mulher idosa, um tanto rechonchuda, com cabelos quase brancos sempre presos num carrapito complicado formado por um emaranhado de trancinhas e uma voz melodiosa mas que às vezes se elevava em tom de zanga.

Como é usual, a repetição causa habituação e ao fim de umas semanas Elsa já conseguia ter uma boa noite de sono, apesar de os sonhos continuarem. Ainda tinha pensado livrar-se do cofrezinho, a origem, pelo menos aparente, de todos estes problemas, mas não conseguira. Forrara-o, sim, com um pedaço de brocado que encontrara numa gaveta e era agora o seu guarda-joias do dia-a-dia.

Desistira, também, de tentar entender aqueles sonhos tão bizarros, uma vez que não pareciam encaixar em nenhum paradigma, freudiano, jungiano ou outro. Resignara-se à ideia de que nem tudo tem explicação, que há realmente muita coisa desconhecida neste nosso mundo que queremos tão lógico.

Mas, uns meses depois, a mãe fez-lhe uma das suas raras visitas – Elsa ia, quase sempre, a casa dos pais, por uma questão de hábito e também de comodidade, adorava o seu apartamento mas não era exatamente espaçoso. Como sempre acontecia nestas ocasiões, houve direito a uma visita guiada às “novidades”, ou seja, as velharias, como a mãe lhes chamava, adquiridas desde a última vez.

Desta vez havia pouca coisa, só dois ou três objetos, entre eles o cofrezinho de madeira que tantos problemas lhe tinha causado. Inicialmente, a mãe nada disse, limitando-se a concordar que tinha o tamanho certo para o uso a que o destinara. Mas quando iam a sair do quarto, voltou para trás e pegou-lhe, observando-o muito bem de todos os lados.

E, com grande espanto de Elsa, saiu-se a dizer:

- Sabes, é curioso, mas é igualzinho a um cofrezinho que a tua avó tinha no quarto dela e que tu adoravas.

Foi como um raio a iluminar-lhe a mente, recordou-se, subitamente, das longas tardes, após a escola, passadas no quarto / sala da avó, em casa do pais, onde fazia os trabalhos de casa e onde ouvia histórias de todos os tipos, de contos de fadas a casos reais, ou dados como tal, da vida da avó, a tal senhora rechonchuda, de carrapito e voz melodiosa que era a figura central dos seus sonhos.

Infelizmente, tinha morrido quando Elsa tinha 10 anos, já lá ia, pois, algum tempo, não admira não ter reconhecido o cofrezinho que sempre a tinha fascinado em miúda, quando passara horas a tentar traçar todos os seus entrelaçados desenhos enquanto ouvia as histórias da avó.

Luísa Lopes





sábado, 3 de agosto de 2024

A ARANHA E O SONHO


 

Havia uma aranha lá fora

que tecia sua rede

a despeito da chuva

e do desânimo dos homens.

 

Era uma aranha

que tecia a sua rede fora do mundo,

e eu miseravelmente preso a ele

perdia-me em conjeturas sobre o amor

e sobre um livro que acabara de ler.






segunda-feira, 22 de julho de 2024

Cuidado Com O Que Se Deseja

 


Redondinha, falavam de Kauana, redonda em seus traços. Assim falavam dela na infância e na adolescência, e falavam de como apesar de pouco se alimentar Kauana não emagrecia, e as mais ferinas ou bondosas críticas atribuíam a obesidade à sua aversão às atividades físicas – com o senão das práticas na escola, onde corria com a deselegância dos roedores ou dos suínos e culpava o fracasso do exercitar à congênita e malfadada conformação óssea.

Quero ser bonita, escreveu ela com esmalte vermelho em uma das folhas da agenda anos mais tarde, Quero ser bonita e gostosa, escreveu, e não obstante a resolução revelasse desânimo, ou mera e casual distração, forças e circunstâncias vinculadas à lua, à noite e às constelações, também à caligrafia, convergiram e atuaram em favor de Kauana – e porventura sua débil intenção representasse a substância essencial na mágica e involuntária cerimônia.

Pois na manhã seguinte convertera-se.

Entendeu-se bela e atraente diante do espelho, e no almoço restringiu-se aos alimentos de menor alegria e caloria e à tarde matriculou-se em um centro de treinamento. MONSTER FITNESS intitulava-se o local, e dentro de suas ressudadas muralhas gladiadores e gladiadoras exercitavam-se ao som de melodias ensurdecedoras, ou erguiam barras e anilhas, ou bigornas e âncoras de navio, ou transitavam de estação de tortura à estação de tortura e ostentavam músculos cuja surreal definição em muito excedia a de suas ideias e propósitos. Era sexta-feira, e no fim de semana Kauana lamuriar-se-ia, com brandura e serenidade, de dores e rigores, câimbras mil, mas não consumiria as horas em desalento ou, sequer, devoraria doces e salgados, e ao chamuscar-se no sol ao meio-dia de domingo contemplou-se como sombra e nas curvas da silhueta anteviu um futuro no qual ela vangloriar-se-ia do abdômen e seus sulcos, ou dos vastos e retos gomos da perna, um futuro no qual Kauana exibiria o torso de ogros e gorilas – tempo este consumado em cinco anos de labor muscular com a devoção dos crentes e beatos.

Escultural, falavam de sua figura, escultural e monumental, e falavam da metamorfose como acidente ou milagre, ignorantes de suplícios e desditosas diligências, de suores amarelos e incessantes e de fermentadas ventosidades. Originara-se da fome, diria ela ao arrancar calos das palmas das mãos. Vício, ou fome, transmutado em ambição e desejo. Esbelta e curvilínea Kauana desfilou os anos até, aos trinta, cansar-se de tudo, de todo exercitar e de todo abnegar, e com assombro acusou ela a monotonia dos exercícios aeróbicos ou o condicionamento de sua figura às expectativas da natureza. Malgrado reincidisse no ócio e na gula, conservou-se bela como se a aparência penosamente conquistada representasse um direito adquirido e incontestável, como se os excessivos benefícios do esforço e da dedicação, ou o esforço e a dedicação em si, granjeassem a ela um privilégio de eterno, e oculto, usufruto.

E assim Kauana cultuou e devorou a vida.

Um segundo milagre, falaram acerca da beleza que resistia às circunstâncias, um segundo milagre ou acidente, e a própria Kauana julgava-se sortuda e afortunada, e outros anos desfilou com alegria e elegância até a fatídica noite quando, prestes a dormir, casada e mãe, enfurecer-se ao contemplar o seu reflexo na penteadeira: irretocável e sublime, dissera o marido ao percebê-la altiva diante do espelho, e como se ele a provocasse Kauana arremessou no assoalho os esmaltes de cores estrangeiras e as escovas de cabo perolado, arrebentou os frascos de perfume e derramou a viscosa exuberância dos cremes – e enfim deflagrou-se não o constrangimento dos anos, ou tampouco o rigor característico aos espíritos críticos, mas a obrigação ao belo, obrigação cujo silencioso oprimir lhe amargava o cotidiano desde as primeiras séries na academia, desde o seu inicial desejo de perfeição. Considerou-se ela, a partir do surto, amaldiçoada e proscrita, afinal a beleza autoimposta, quando em detrimento de virtudes superiores, exige e exige muito, e tal corolário só os belos e belas entendem, não competindo à linguagem esclarecer, ou se aproximar, de certos fenômenos.

Os meses seguintes Kauana visitou renomados especialistas e psiquiatras e chafurdou em remédios, e não obstante evitasse pentear os cabelos para ostentar a mítica feiura dos loucos manteve-se linda, irretocável e sublime, e no ano posterior ao surto reviu a alegria e compostura de seus melhores dias. Porém era a felicidade fingimento, pois Kauana ansiava, a despeito do marido e dos filhos, apressar o fim, e à possibilidade ela viciou-se e somente abandonou a ideia de suicídio após cogitar a hipótese de enfear-se e horrendar-se, agradando-lhe sobretudo o desafio de, a exemplo do passado, superar uma limitação estética.

Sabia Kauana, entretanto, de seu fado e sina, de como forças ininteligíveis atuavam a favor de sua beleza e formosura, e por semanas dedicou-se ela a analisar conjecturas para enfim concluir que ou espargia ácido sobre o rosto ou ao rosto ateava fogo.

Escolheu a segunda opção.

Com o enfado característico aos condenados, esperou estar a sós em casa e então despejou álcool sobre o rosto. Nas trevas do banheiro, entre a ocasional iluminação dos automóveis na rua, acendeu um fósforo.

Morreu.

Na cerimônia fúnebre o marido contrariou o conselho de familiares e amigos íntimos e arrancou a cobertura do ataúde. Velou-a de caixão aberto. Terá ela a sua desforra, disse ele, e entre crisântemos brancos a face de Kauana assomava feito embarcação decrépita e carcomida, dir-se-ia um incendiado barco fantasma navegando em mares de espuma. Conquanto o horror da cena e a implausibilidade da situação, como se hipnotizados os presentes contemplavam o cadáver e analisavam seus traços humanos apesar da pele contorcida e purulenta. Entre as bochechas, distinguia-se a intocável perfeição dos dentes.

Meu deus, admirou-se um dos presentes. Ela continua linda.






sexta-feira, 19 de julho de 2024

Abandono

 


Com a chave da porta externa, adentrei a casa. Já havia limpado boa parte das paredes, mas ainda permaneciam mofadas. Nenhuma luz na sala e nos outros cômodos, esse era o motivo. “Titia, deixe as janelas abertas para arejar, pelo amor de Deus!”, eu a suplicava. Uma vaga esperança me levava a encontrar tia Jacira viva. Comprometi-me a visitá-la uma vez por semana, num dos dias em que fico na cidade – nos outros, viajo a trabalho para o interior. Não tenho condições de pagar uma pessoa para cuidar dela, meus parcos rendimentos só servem para cobrir os gastos de casa, que são muitos, visto que minha mulher não trabalha e tenho dois filhos pequenos. Jacira é minha tia afim, foi casada com tio Gilberto, irmão de mamãe. Quando ele morreu, ela se afundou num estado grave de depressão, ou algo do tipo. Com o peso da idade, é ainda mais difícil demovê-la dessa situação. Pelo que percebi, ela não pode contar com mais ninguém no mundo. Os sobrinhos não a procuram. Na última vez em que falei com Alberto, um de seus sobrinhos, ele me disse que tia Jacira merecia estar onde está, porque não teria sido uma pessoa boa; fez caso da casa que os irmãos receberam de herança, fato ocorrido há muitíssimos anos. Ou seja, como ela, os familiares tinham o gene aguçado do rancor. Meus tios não tiveram filhos – também não fizeram muito esforço para isso –, e não sei qual foi a razão, se esterilidade ou desinteresse. Fato é que estou só nessa peleja. Janaina, minha esposa, até tenta ajudar no que pode, mas não temos com quem deixar os nossos filhos, que demandam muito dela. Como sempre, com medo, entro na casinha. Ela é infestada de gatos, que, pelo menos, não deixam roedores passar, para comer os restos de comida que ficam espalhados pelo chão. No fatídico dia, bati na porta do quarto, e, demorando, tive de abri-la. Tia Jacira estava emborcada na cama, como se num sono profundo. Peguei-a nos braços e levei-a para o hospital mais próximo. Percebi que ainda estava viva, embora frágil como um passarinho. O médico que a atendeu sugeriu que chamaria a polícia por maus tratos. Ela tinha manchas roxas pelo corpo. Tive de me explicar, não fiz nada daquilo. “Doutor, sou o único ente que cuida dela. Foi abandonada pela família… Faço o que posso. Pelo menos uma vez por semana vou visitá-la, e hoje, infelizmente, a encontrei assim”. Lembrei-me que seu quarto estava revirado. Deve ter sofrido uma tentativa de assalto, e, como os assaltantes não encontraram nada, deram uma surra na velhinha. Tia Jacira passou uma semana na UTI. Recuperou-se bem, apesar das dores pelo corpo. Não havia ossos quebrados, só luxações. Quando recebeu alta, levei-a para casa. Mas não tenho condições de cuidar dela. Falei com a minha esposa, e vamos deixá-la numa casa de repouso para idosos. Na casa dela darei uma limpeza, para pôr para alugar. A renda da aposentaria e do aluguel cobrirão as suas despesas. E assim a vida seguirá o seu curso, como tem de ser, da forma que pensamos ser melhor para ela.






quarta-feira, 17 de julho de 2024

"eu não sou boa em trabalhos manuais" - poema de Ana Souza








eu não sou boa em trabalhos manuais

sempre preciso operar na margem do erro


quando bordo a linha sempre foge

do ponto


quando recorto para criar cenários

rasgo as bordas e abandono a simetria


quando cozinho coloco

o pano pronto pra limpar meu rastro


quando escovo os dentes

jogo branco em tudo que me veste


quando me alimento

todas as migalhas caem em mim


quando eu pinto

a tinta escorrega


minhas mãos só se garantem

em fazê-la tremer.









Do livro "Aprender a boiar num tsunami", Editora Patuá.






terça-feira, 9 de julho de 2024

E viveram felizes...

 


“E viveram felizes para sempre” era o final inevitável das histórias que a minha mãe me lia quando eu ainda era demasiado pequena para poder ser eu a lê-las sozinha. Mas mesmo com essa idade, ficava-me uma sensação de inacabado ao ouvi-la e não, não era exatamente por querer que o ritual da leitura antes de dormir se prolongasse, podia sempre pedinchar mais uma história, quase sempre com êxito.

Não era pois isso o que me levava, inevitavelmente, a querer perguntar, “E depois?” Só deixei de o fazer porque isso irritava de tal modo a minha mãe que qualquer esperança de adiar o momento de ficar sozinha no escuro, a tentar dormir, ficava irremediavelmente perdida.

Na altura nunca percebi porquê e continuo a não entender, sempre me pareceu uma pergunta perfeitamente lógica. A Cinderela casa com o seu Príncipe e acaba tudo aí? Não acontece mais nada? Todos os eventos das suas vidas – e eram sempre muitos e bastante envolventes – tiveram lugar antes do “felizes para sempre”?

Acabei, pois, por associar o viver feliz com o fim de qualquer história.

Bom, pelo menos na infância. Já mais crescidinha, com acesso a outro tipo de livros e filmes, descobri uma outra opção, a morte. Sim, os personagens ou morriam ou “viviam felizes” e nada mais se ouvia falar deles. Ou seja, de certo modo, também morriam, pelo menos para quem os acompanhara até aí.

Muito francamente, preferia a primeira, pelo menos era um fim como deve ser, não me ficava aquela sensação de incompleto da segunda variante. E para grande choque e espanto da família, entrei numa de só ler e ver coisas trágicas. Tentaram desviar-me para outro tipo de obras em que o que acontece a seguir fica no ar, mas isso ainda era pior do que o “felizes”, achava que era batota por parte do autor.

A ideia de felizes igual a morte entranhou-se-me de tal modo na alma que jurei por tudo o que me era mais sagrado que nunca me aconteceria, iria, sim, viver em pleno até ao último segundo, custasse o que custasse, fugindo a sete pés dessa tal felicidade que punha fim a tudo. Não que quisesse ser infeliz, entenda-se, acho que ninguém quer isso, pelo menos conscientemente. Queria, claro, ter momentos felizes, mas em áreas restritas da minha vida, quase como uma luz que brilha cercada de neblina e escuridão.

Mais uma vez, pareceu-me perfeitamente lógico. O problema é que caí na asneira de expor esta minha teoria numa pequena reunião de família. Pois, tinha obrigação de saber o que iria acontecer com este nosso clã – sim, não é bem uma família, há clubes com muito menos membros do que os inúmeros primos, tios e quejandos que se mantêm regularmente em contacto.

E, claro, em menos de nada todos tinham ouvido uma versão, mais ou menos fiável, das minhas ideias. Mas alguém me entendeu? É claro que não! Choveram propostas de livros de autoajuda, terapias, tudo e mais alguma coisa que me pudesse ajudar, na opinião de quem o propunha, a sair do fosso em que obviamente me encontrava.

A situação complicou-se ainda mais quando uma prima, não sei em que grau, são tantas que é difícil fixar tudo isso, formada em psicologia decidiu analisar a fundo a minha vida, transmitindo, claro, de imediato as suas conclusões a quem as quisesse ouvir. Foi o fim do mundo!

Confesso que vistos de fora, entre relações quebradas e trocas de emprego, os vários eventos da minha ainda curta vida mais pareciam o percurso de alguém a caminho da autodestruição. E. claro, foi essa a conclusão a que todos chegaram. Ainda se tivessem guardado as suas opiniões para si... Mas não, tornou-se quase o “passatempo nacional” tentar levar-me a mudar o rumo da minha vida.

E quando não o conseguiam, bom, entravam logo no insultozinho, bom, às vezes não tão “inho” como isso. Chamaram-me rainha do drama, sabotadora da vida, cata-vento que tem uma coisa logo quer outra, e isto apenas para citar os mais “suaves”, digamos. Só que nada disto é verdade, quero o que sempre quis desde bem pequena, ou seja, quero um depois que dure até à morte, não quero ter a minha vida abafada pelo algodão xaroposo e asfixiante da felicidade total.

De certo modo até tinham razão ao chamarem-me “sabotadora da vida”. É que quando as coisas começavam a andar bem demais, quer num namoro quer num emprego, e me era difícil distinguir um dia do outro porque tudo decorria sobre rodas, bom, mal dava por ela criava, de imediato, um empecilho que descarrilasse tudo, levando-me a ter, de novo, uma vida cheia de eventos.

No fundo, a minha vida era uma paráfrase da célebre frase, “falem mal, mas falem de mim”, mas na versão, “quero é viver, venham os problemas”. Repito, nada de grave, só aquelas pequeninas coisas que, na minha opinião, dão sal à vida.

Mesmo assim, para bem da harmonia familiar e para evitar os inúmeros telefonemas e mails que recebia sobre o assunto, e que não podia ignorar, a menos que quisesse ter o clã todo à perna,  decidi tentar. E tentei, só eu sei como tentei acreditar que eles é que tinham razão, que eu era apenas uma idiota com ideias estrambólicas e que a felicidade, a tal do “felizes para sempre” é extremamente desejável e enriquecedora, ou seja, algo a que devemos aspirar.

Moderei, pois, a minha fúria de mudança e mantive o mesmo emprego algum tempo, apesar de ser totalmente satisfatório e me deixar dormente de satisfação, leia-se, de felicidade. Mas a relação que então encetei com o Pedro ajudou bastante, com os seus contínuos altos e baixos que, juro, não era por minha culpa, bom, pelo menos não totalmente.

É que tínhamos feitios suficientemente diferentes para haver choques, mas parecidos o bastante para mantermos a relação. Pedro parecia adorar uma boa discussão “para desanuviar o ar”, como dizia, e eu não me deixava ficar, ia logo à luta, o que parecia resultar bastante bem para ambos. Bom, pelo menos a nossa vida a dois não era monótona, muito pelo contrário.

O passo seguinte parecia ser o casamento e, aqui para nós, após três anos juntos, dois deles na mesma casa, todos pareciam pensar que era só uma questão de quando e não de se. E por todos, refiro-me, claro, à minha família, mas também à dele, sobretudo a mãe que já via um futuro cheio de netinhos.

Confesso que hesitei, vieram-me à mente todas aquelas histórias da minha infância, todos os filmes Lifetime que vira para fazer companhia à minha mãe e irmãs. Sabem quais são, rapaz encontra rapariga, odeiam-se e / ou têm todo o tipo de problemas, mas depois caem em si e casam-se – fim da história, ficando subentendo o “felizes para sempre”, claro.

É que com a nossa relação tempestuosa havia o receio, bem lógico, de que, uma vez casados, tudo isso desaparecesse e a vida passasse a ser um mar de rosas... pois, e ainda me acusam de não ser romântica! No mínimo, havia o perigo muito real de tudo se atenuar, vira-o em vários casais da família e de amigos que, após o casamento, tinham entrado numa rotina sem sobressaltos de maior, em absoluto contraste com a sua relação anterior. Pior ainda, afirmavam ser felizes assim.

Não sei se por inércia se por estar farta de tantas indiretas – quando não eram mais do que diretas – acabei por concordar em dar o nó, estipulando, como única condição, nada ter a ver com o dia em si. No fundo, foi um modo de fugir ao inevitável, é que tinha a certeza de que, no entusiasmo de me verem mudar de ideias, todo o clã deitaria mãos à obra e as minhas opiniões pouco ou nada contariam. Assim, o meu papel ficava reduzido, à partida, a aparecer no momento e local escolhidos e no vestido certo, digamos.

O que me leva ao “drama” desta manhã, de recuso a responsabilidade, pelo menos total. A culpa é toda de uma das minhas tias, mais uma vez não sei bem de que género, é que aplicávamos o termo a vários adultos de certa idade e que suspeito que eram, de facto primos. Mas adiante.

A tia em questão vivia bastante longe, por isso raras vezes a víamos, até porque odiava viajar. Mas nunca faltava a casamentos, batizados e, claro, funerais, de que não houvera nenhum há já bastante tempo. Tinha-me, pois, quase esquecido dela, era apenas mais um número entre os muitos convidados.

Só que foi tudo menos isso.

Mal chegou, na véspera bem cedo, para estar fresca para o grande dia – palavras dela – começou imediatamente a querer saber da vida de todos, leia-se, das tragédias e desgraças que poderiam ter ocorrido sem ela saber. E tudo muito bem explicadinho, não era pessoa para se contentar com “Fulano divorciou-se de Sicrana”, nem pensar, com ela só relatórios completos.

Dissecada toda a família, o que levou uma boa parte do dia, sentou-se ao meu lado para o que seria o meu último jantar de solteira. É que por insistência da família voltara para casa uma semana antes, para me manter afastada de Pedro e, segundo o que ouvi dizer, “manter o mistério entre os noivos”...

Conhecendo-a como a conheci, preparei-me mentalmente para uma dissecação total do meu emprego e, sobretudo, da minha vida amorosa. Qual não foi, pois, o meu espanto quando se limitou a dizer-me, com um sorriso de orelha a orelha que deixava bem à vista a caríssima dentadura demasiado branca para parecer natural:

- Sabes, conheci o teu Pedro e gostei muito dele. Tenho a certeza de que vão ser felizes para sempre!

E admiram-se por eu ter rompido o noivado?

Luísa Lopes

Imagem: QuickWrite





quarta-feira, 3 de julho de 2024

1902 - DRUMMOND - 1987


Aqui jaz a poesia

em sua forma mais

plena e vigorosa.

Não há, no mundo,

notícias de que ela

tenha sido

melhor cultivada

do que nas terras

ferrosas dos canteiros

de Itabira.