A viola

 

A família Lopes tinha feito a sua primeira viagem ao Leste europeu e logo a Berlim. Voltava a Portugal com as retinas cheias das imagens deslumbrantes que os enormes e ricos museus do Estado da antiga Alemanha de Leste lhe tinham posto ao alcance. Corria o ano de 2001, mas ainda não acontecera o 11 de setembro; os viajantes percorriam os aeroportos com a displicência da (in)consciência tranquila, antes de a América os fazer sentir terroristas em potência.

O vaivém de ligação do hotel, no centro da cidade, ao aeroporto foi apanhando muitos outros turistas, mas não demorou mais de quarenta minutos, muito a tempo da hora do embarque. À chegada, gerou-se o pequeno burburinho habitual; os mais apressados a querer despachar-se a sair, os outros a esperar e a observar. O senhor Lopes deixou a atenção prender-se no pequeno grupo de jovens que, em pé, na zona central, compunham um quadro de informalidade, com os seus cabelos compridos e as suas mochilas e viu-os sair, alegres, mas com alguma pressa.

Mas, de repente, reparou na viola que deixavam no chão do autocarro. Ainda ensaiou um Hei!, mas que não surtiu efeito. Nem os gritos em Português da mulher e do filho pós-adolescente.

Então, com o autocarro a ficar vazio, foi tomado pelo frenesim de fazer rapidamente tudo o que era preciso: apanhar aquela viola, para não ficar ali, carregar as próprias malas e ver se ainda conseguiam alcançar o grupo dos jovens.

Mas, cá fora, presa às próprias bagagens, a família já não avistava o grupo.

«E agora, o que fazer?», interrogavam-se. «Levamos tudo para dentro; entretanto, talvez os vejamos.»

Mas não viram. Nem o balcão da Lufthansa conseguia dizer em que avião ia embarcar aquele grupo animado de cabeludos.

Entretanto havia que fazer o check-in. «Onde é que está a pastinha de mão com asas onde temos os bilhetes e os passaportes? Não, não está aqui, não a temos, não a tirámos do autocarro; Holy shit! Com a confusão da viola, ficou em cima do banco. E agora?»

Expuseram o caso no balcão da companhia; «Só comprando novos bilhetes.» «Mas os passaportes também ficaram na pasta», gemeram. «Falem além no balcão dos autocarros pendulares.»

No balcão não sabiam de que autocarro se tratava, nem tinham contacto direto, mas iam falar com a sede. «Mas, se saiu daqui agora, vai demorar uma hora e meia a fazer a volta.»

Pouco depois, uma boa notícia, mas inútil: «O avião atrasou; só partirá daqui a cinquenta minutos», informou a companhia aérea. «De qualquer modo, estamos tramados», concluíram.

Estavam metidos numa situação angustiante, num país estrangeiro e sem grande capacidade de manobra. Talvez tivessem de recorrer à embaixada e sabia-se lá com que demoras. Entretanto, pagar hotéis, pagar bilhetes de avião. Uma gaita! Desde que não tivessem de dormir nos bancos do aeroporto...

Daí a pouco, de regresso ao balcão dos vaivéns, foram informados que já tinham contactado o condutor do autocarro. Mas não sabiam dizer mais.

Não havia mais nada a fazer senão esperar. Aproveitaram para ir comer qualquer coisa, que já passava do meio-dia.

Naquele apaziguamento de mastigar uma sandes alemã, o senhor Lopes foi tentando perceber como que é que tinha acontecido aquele desagradável esquecimento. Foi então que vislumbrou a cobiça embrulhada no novelo da barafunda da saída de um autocarro. «Eu cobicei esta viola. Eu prestei mais atenção à viola do que ao resto. Fui vítima auto-infligida do processo ilusionístico: chama-se a atenção para um ponto, enquanto a manobra se executa noutro ponto. Queria tanto ser eu a apanhar a viola, provavelmente, na esperança inconfessada de ficar com ela, que descurei o devido cuidado com a própria bagagem. Acho que até o meu Hei! foi gritado com pouca convicção. E a oportunidade de ficar com a viola não me deixou lançar gritos mais estridentes para chamar a atenção do grupo.»

Assim que terminaram a refeição, foram entregar a viola na secção de perdidos e achados. De qualquer modo, só estava a atrapalhar. Não lhes garantiram que seria entregue aos donos, mas se alguém a reclamasse, ali estaria. E podia até ser enviada para o aeroporto de destino do grupo.

Entretanto, abria-se uma janela de esperança: o avião atrasara mais três quartos de hora. Já dava para a chegada do autocarro. Só faltava que ninguém tivesse levado a pastinha esquecida num banco e o condutor tivesse dado com ela. E realmente, à hora prevista, lá vinha o autocarro; e lá vinha a pastinha azul encostada ao para-brisas. E lá estavam os bilhetes e os passaportes.

O contentamento interior não tinha comparação com outros momentos daquela viagem. Provavelmente, nem em confronto com a contemplação da porta babilónica de Ishtar. Agradeceram efusivamente em Português ao condutor alemão; a Dona Lopes deu-lhe mesmo um abraço.

Depois, foi a descompressão. Sentirem-se a regressar do fundo de um poço. Terem agora passaportes e bilhetes, poderem apanhar o mesmo avião para o qual os bilhetes tinham sido comprados… Tinha sido um drama com um final feliz.


Memória, memória… acabou-se a história.

Joaquim Bispo

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Imagem de IA.

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